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Doze Anos na Infância do Mundo
Philippe Le Guillou
Lisboa, Temas e Debates, 2000

Doze Anos na Infância do Mundo
de Philippe Le Guillou

Mesmo num cenário de propalada crise generalizada, ou justamente por causa dessa sintomatologia, a cultura ocidental continua a ser profundamente moldada pela fecunda influência do génio do Cristianismo. Mesmo no campo da escrita ficcional, continuam a publicar-se romances inspirados mais ou menos directamente quer na figura e mensagem libertadora de Jesus Cristo, quer nas verdades e valores da fé cristã, quer ainda sobre os grandes problemas existenciais, de fundo humanista e religioso. Entre as várias obras, destacamos o romance Doze Anos na Infância do Mundo, de Philippe Le Guillou.

O autor é um romancista francês contemporâneo, nascido na Bretanha, com vários romances e ensaios publicados, alguns dos quais traduzidos em várias línguas. Ao longo de sete capítulos breves (número perfeito, de ressonância simbólica, tão explorada nos textos bíblicos), este romance ficcionaliza os primeiros anos da vida oculta de Jesus, quase silenciados pelos evangelhos canónicos e, opostamente, tão desenvolvidos por evangelhos aprócrifos, como o do Pseudo-Tomé.

Chamam-se evangelhos canónicos aos relatos sinópticos de Mateus, Marcos, Lucas, mais o de João. Integram o cânone do Novo Testamento, sendo reconhecidos pela tradição teológica e oficial como os textos verdadeiros e inspirados. Já se denominam evangelhos apócrifos a um conjunto de narrativas de origem nubelosa, mais ou menos fragmentárias e fantasiosos. O termo "apócrifo" significa justamente "coisa escondida, oculta". À imagem de muitos outros textos apócrifos, não são integrados pela autoridade da Igreja no cânone bíblico das Sagradas Escrituras.

O próprio romancista apresenta e justifica assim esta sua obra: "achei que chegara o momento de revisitar o substracto onde as minhas fibras cristãs se enraízam. E estes doze anos sobre os quais pouco ou nada se sabe, a meu ver, podem constituir o ponto de partida de um sonho inventivo e devoto. Eis o sentido e o espírito da história que se segue". Ao perfazer dois mil anos depois, propõe-se escrever "quadros, fragmentos de evangelhos imaginários".

Como confessa no "Post-Scriptum", há tempo que acalentava a ideia de um regresso à nascente: "Explorar estes doze anos na infância do mundo, os doze primeiros anos da vida de Cristo". Acha (e achamos nós) significativo que a publicação do livro coincida com a chegada do terceiro milénio: "Seria um testemunho, um acto de fé, a última — e a primeira — forma de empenhamento".

O romancista bretão evita assim o exercício arriscado, e naturalmente controverso, da reescrita da "vida pública" de Cristo. Prefere aventurar-se na "vida oculta" do Menino Jesus, ficcionalizando com interesse esses primeiros anos da sua infância. Nesta conseguida narrativa, cabe-lhe contar um capítulo da vida do Menino-Deus, através da imaginação, mas sem os excessos fantasiosos e miraculosos dos textos apócrifos: "Este tecido de milagres é explorado complacentemente pelos Evangelhos da sombra e da infância, sujeitos ao exagero e à simplificação". O desafio não era fácil, mas esperava-se talvez uma maior criatividade e desenvoltura nesta recriação ficcional.

O cenário é o da distante Galileia, mais concretamente o da aldeia de Narazé. À imagem do grande Templo de Jerusalém, também aqui, na pequena sinagoga nazarena, religiosamente enrolado e envelhecido, o Livro sagrado (Tora) ocupa um lugar absolutamente central. A partir daquele templo rústico, a Lei rege o dia-a-dia de um povo simples que conheceu múltiplas tribulações.

Jesus é ainda uma pequena criança. Limita-se a ver o pai a fazer os seus trabalhos de carpinteiro. Entretem-se a brincar com madeiras, serradura e ferramentas. Na sua atracção por objectos de culto, gosta imenso de dois objectos de madeira construídos e oferecidos por José: uma pequena arca, tão rica de simbolismo entre os judeus, e uma mão esculpida em oliveira, obrigatória para ler o Livro sagrado. Quando completa sete anos, num Sabat gelado de Inverno, vai com a família ao templo e ouve a leitura da Palavra com um indisfarçável brilho nos olhos.

Assim começa o romance de Philippe Le Guillou, preocupado em nos dar os pormenores da vida quotidiana e íntima de uma criança que brincava e sonhava como as outras crianças. Nasce no seio de uma família idêntica aos demais e tem uma vida regida por valores e rituais típicos do seu tempo e da sua cultura, próprios de uma sociedade religiosa e patriarcal, um povo em viagem e à espera do seu Salvador.

Aplicado na instrução religiosa, este Jesus é uma criança precoce e inquiridora, com apreensiva consciência do "mistério da sua diferença". Ouve enlevadamente as histórias dos Patriarcas e dos Profetas, operando os primeiros milagres. Jovial e brincalhão, também gostava do isolamento meditativo. Maria, a sua presdestinada mãe, era a única que captava "a luz secreta de Jesus". De uma serenidade inquieta, José sentia-se ultrapassado pelo mistério de Jesus. Mais discutível é a interpretação literal dos "irmãos" de Jesus.

Dois mil anos depois, a memória das origens do Cristianismo desperta as nossas memórias da infância. Recuamos a um tempo mágico, a uma memória que marcou o advento de uma nova era, revolucionada por uma esperada Boa-Nova. Ora, esta mensagem de Amor e Esperança é justamente protagonizada e anunciada por um homem que também foi criança, uma criança desejada desde o princípio do mundo.

Cândido Martins, Setembro de 2000

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