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Recensões


A Vingança de Maria de Noronha
Armando da Silva Carvalho
2ª ed., Lisboa, Vega, 1989

A Vingança de Maria de Noronha
de Armando da Silva Carvalho

Inspirado no estoicismo grego, sustentava Quevedo numa peça teatral de 1635: "A vida é uma comédia; o mundo, um teatro; os homens, actores". Pela mesma altura um outro dramaturgo espanhol escrevia: "(...) como sempre se viu,/ o que mais alegrou e distraiu/ a representação muito aplaudida/ (e é representação a humana vida)/ uma comédia seja/ a que hoje o céu em teu teatro veja./ Se a festa é minha e eu sou o Autor,/ meus actores a farão com meu fulgor./ E, dado que escolhi entre os primeiros/ os homens, e eles são meus companheiros,/ eles, no teatro/ do mundo, que apresenta partes quatro,/ com estilo apropriado/ hão-de representar".

Convocado pelas próprias personagens, numa curiosa antecipação de Piranndello, é o próprio Autor que dirige a uma outra figura (Mundo) este propósito duma singular representação teatral. O escritor deste alegórico auto sacramental, significativamente intitulado O Grande Teatro do Mundo, é Calderón de la Barca, nascido precisamente há 400 anos, nome grande do Siglo de Oro espanhol. Esta sua peça é um texto maior na rica tradição literária que configura o tópico do theatrum mundi, ou metafórica da vida como teatro, que Ernest R. Curtius magistralmente sintetizou. Instaura um jogo especular: a ideia do teatro como representação do mundo, ficção da ficção.

Vem esta convocação de um ancestral topos literário, actualizado sobretudo pelo grande dramaturgo da Contra-Reforma, a pretexto de um romance que tem como pano de fundo o mais apreciado drama do Romantismo português. Numa relação intertextual de natureza especular, a intriga e as personagens deste trabalho ficcional de Armando Silva Carvalho (n. em 1938, Óbidos) constituem a projecção especular das conhecidas acção e personagens centrais do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. Este exercício de singular reescrita ou revisitação "pós-moderna" do drama garrettiano, aparentada com o furor iconoclasta dos surrealistas, contempla naturais homologias e nexos intertextuais, a par de outros tantos distanciamentos irónicos e parodísticos. Contudo, como sabemos, a mais corrosiva paródia não deixa de constituir uma homenagem mais ou menos velada ao escritor visado, Almeida Garrett (1799-1854), de quem se acaba de celebrar o II centenário do nascimento.

Num misto de intriga policial e melodrama, desenrola-se uma história em que uma actriz, Filipa Montês, se prepara para desempenhar a personagem de D. Madalena de Vilhena, numa encenação moderna do Frei Luís de Sousa. Quem é esta reputada actriz de telenovelas, tão pouco maternal, sem valores religiosos ou dramas morais de consciência? "Mulher de Carlos Aquiles, actor retirado. Amante oficial de Francisco d’Ávila, jornalista. Mãe duma filha única, Clara Rialto". Em lugar de um velho aio (Telmo Pais), tem a servi-la uma diligente governanta, Luísa.

Sob a aparente identidade de perfis ou papéis, patenteia-se a ironia de um enorme distanciamento entre duas mulheres, duas mundividências: uma, figura-chave de uma família romântica oitocentista, assente nos velhos valores católicos (como a indissolubilidade do casamento), honesta e temente a Deus; a outra, uma mulher contemporânea, com uma família desfeita. Estes sugestivos paralelos e dissemelhanças poderiam estender-se a outras tantas personagens do romance de Silva Carvalho e suas correspondentes garrettianas.

A nova Madalena de Vilhena sente-se insatisfeita com a vida. Tem um marido (Carlos Aquiles) também ele actor e meio desaparecido, que vivia fora do tempo, como um "fantasma dentro dum castelo". Também já não ama o seu amante que, indiferente, a trocou pela antiga amante... Agressiva e esquiva, a filha também a abandonou, saindo de casa. Quem é a sua filha, que se chega a indentificar com Maria de Noronha, ao maratonista brasileiro e pelo próprio encenador, que a convida a representar esse papel na peça de Garrett? Uma jovem independente e bem pouco casta, descrita como uma figura estranha, calada e misteriosa, desconhecida da própria mãe, que não teve tempo para a criar.

É a própria Filipa Montês que confessa a amigos, num movimentado bar "gay", a sua infelicidade de falsa Medeia: "Não tenho a mínima intenção de matar a minha filha pelo homem que nem sequer já amo. Também não estou à espera que ela me venha a morrer aos pés, num ataque de tísica". É esta nova Madalena de Vilhena que se auto-define, entre preocupada e displicente: "Viúva sou de um vivo. Mulher que sou de um morto ausente em parte incerta. E mãe que estou a ser de uma adolescente que tem corpo e alma para os outros, mas que para mim é uma aparição".

Um dia, Carlos Aquiles, homem de longas barbas que vivia mumificado fora do tempo, sente-se ressuscitar depois da aparição na sua vida da jovem Clara Rialto e de uma sedução quase incestuosa. Este D. João de Portugal resolve voltar para ir ao encontro da "Madalena de Vilhena da sua vida real". A própria actriz principal (e protagonista da narrativa) tem a irónica e amarga consciência de confundir os trabalhos da sua profissão com o "palco da vida". Só que esse regresso do primeiro marido não chega realmente a materializar em nenhuma anagnórisis trágica. Não deixa, porém, de ser fatidicamente cómico, já que o pobre homem é atropelado à porta da casa da sua primeira mulher, justamente pelo amante desta... E não há nenhuma filha inocente, para ser imolada, pois a ovem Clara Rialto acaba por ir para o Brasil.

De cena em cena, de episódio em episódio, vai o leitor sendo tentado ou convidado a "tropeçar nos séculos e a trocar as palavras", descobrindo constantemente o texto de Garrett no novo tecido e distinto contexto. Esta constante relação intertextual não impede o estabelecimento de outras referências ocasionais e expressas a vários textos e autores: Sófocles, Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Vieira, Bocage, Eça de Queirós, Tchecov, Jorge Luís Borges, ou Teixeira de Pascoaes.

O palco da vida contemporânea é o ponto de partida para revisitar a História pátria, sobretudo nos seus lances mais cinematográficos. A jovem Clara Rialto gosta de História, tal como o primeiro marido da sua mãe. Gostam de evocar certas cenas mais medodramáticas , ressaltando-lhes o ridículo quando vistas com os olhos do presente. "O espectáculo do mundo não está no mundo do espectáculo". É neste cenário que assistimos à montagem do "projecto de montar um Frei Luís de Sousa, aberto ao modernismo, virado ao actual".

O capítulo 14 é o mais interessante e mais denso nesta leitura intertextual, que transforma a narrativa numa farsa especular. É nesta passagem do romance que mais se fala da peça garrettiana e das suas várias leituras interpretativas, sobretudo pela boca e perspectiva do encenador. Vejamos, a título de exemplo, como Armando Silva Carvalho põe na boca deste encenador a interpretação psicológico-biografista do drama – o Frei Luís de Sousa seria a projecção dramática de um caso pessoal: "Documentem-se, digo eu aos actores. Toda a gente sabe que Almeida Garrett lutava com problemas de consciência relativamente à amante, Adelaide Pastor, com quem não podia casar e de quem tinha uma filha. Se Maria de Noronha anda há mais de seis anos a tossir no palco e nele acaba por morrer, isso deve-se ao facto de ter existido Maria Adelaide, filha bastarda do Visconde, órfã de mãe a partir de Junho de 1841".

Como se vê, é justamente nesta reescrita do texto dramático de Garrett que reside o manifesto registo paródico do romance de Silva Carvalho. O mundo do teatro garrettiano, paradigmaticamente sintetizado no Frei Luís de Sousa, é lido através da lente transformadora do contemporâneo teatro do mundo. Trata-se de um diálogo especular, enformado pela paródia, entre a fábula dramática garrettiana e o palco da vida actual ("theatrum mundi"). Também o teatro shakespeareano deixou exarado: "The world is a stage, the stage is a world".

Por outras palavras, sob a aparência da semelhança, afirma-se ironicamente a diferença. O mundo de hoje ("scena vitae") não se compadece com a idealização romântica e moralista tal como aparece no drama garrettiano. A Providência justiceira do Deus do passado, que sanciona a ilicitude de um matrimónio, deixa de ter lugar no presente: "Neste reino da Terra, o deus judaico já não tem complacência". O mundo de hoje é outro, decadente, permissivo e ateu, graças a Deus... Aliás, já Garrett reescrevia, com olhos românticos, uma história dramática de finais do séc. XVI.

O drama garrettiano é, assim, reinterpretado a uma nova luz, projectado no espelho deformante de uma história contemporânea, de fundo inegavelmente grotesco. À escrita de Armando Silva Carvalho se poderia aplicar o pensamento de Séneca: "Esta é a farsa da vida humana, que nos atribui papéis que desempenhamos mal". A ideia da vida como uma imensa comédia estava profundamente enraizada na espectacularidade da sociedade barroca. Caracterizada em múltiplos aspectos por um neobarroquismo, também a cultura contemporânea está perpassada por idêntico estilo de teatralidade.

Cândido Martins, Setembro de 2000

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