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Recensões


Rainha D. Teresa (Antologia de Textos Ilustrados)
Amândio de Sousa Vieira
Ponte de Lima, Edição Foto Lethes, 2000

Reabilitação de D. Teresa

1. Não se trata de nenhum estudo de historiografia sobre D. Teresa, mas antes, conforme se lê no subtítulo, de uma antologia ilustrada sobre a figura e acção política da mãe no nosso primeiro monarca. Qual a razão para Amândio de Sousa Vieira, conhecido autor de outros louváveis trabalhos de divulgação, realizar mais esta bela obra? Por vários motivos fundamentais: primeiro, porque se completam 875 anos da atribuição do Foral à vila de Ponte de Lima, outorgado em 1125, pela rainha D. Teresa e seu filho, antes mesmo da fundação da própria nacionalidade; segundo, porque se vivem tempos de reapreciação da nossa História e das suas mais emblemáticas figuras. Esse renovado interesse histórico é ainda mais notório quando incide sobre personagens que tinham sido objecto, ao longo de séculos, de algumas ideias-feitas, injustas e preconceituosas, muitas vezes sem fundamentação historiográfica. Se a cidade de Guimarães celebrou recentemente, e com toda a justiça, a figura e o papel de D. Afonso Henriques, a vila de Ponte de Lima só se dignifica nesta cativante evocação da figura de D. Teresa, a sua "mãe e madrinha", nas palavras do poeta limiano João Marcos.

Com esta dupla intencionalidade (celebrar a outorgação do foral e contribuir para a renovação do interesse por D. Teresa), Amândio de Sousa Vieira organizou uma interessantíssima antologia composta por quase uma centena de páginas, ricamente preenchidas por textos e imagens, distribuídos tematicamente e com apurado gosto. Entre os méritos deste oportuno trabalho, de irrepreensível qualidade gráfica, avultam dois: 1º) a boa escolha de textos, desde os historiográficos aos de criação poético-literária, citados e apresentados criteriosamente; 2º) a excelente qualidade e variedade das fotografias e gravuras, antigas e modernas, com destaque para o belíssimo trabalho de iluminuras de uma jovem e prometedora artista, Susana Espadilha.

De entre as dezenas de textos transcritos, como não apreciar Fernando Pessoa, por exemplo, relendo o belo poema dedicado a "D. Tareja" na Mensagem? Recordemos apenas a primeira estrofe: "As nações todas são mistérios./ Cada uma é todo o mundo a sós./ Ó mãe de reis e avó de impérios,/ Vela por nós!". Esta bela antologia, difícil de organizar (reconheça-se), é preenchida, no campo literário, por nomes tão diversos como, a título de exemplo: Camões, F. Pessoa, António Ferreira, Conde d'Aurora, João Marcos, José Saramago. Já no domínio histórico-cultural, aparecem-nos textos de: Frei António Brandão, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Cardeal Saraiva, Magnus Bergstom, José Hermano Saraiva, Joaquim Veríssimo Serrão, José Mattoso, Almeida Fernandes, entre outros.

É tempo de recuperarmos a nossa memória histórica, com rigor e sem preconceitos, conhecendo melhor figuras e épocas fundamentais do nosso passado. Caso contrário, continuaremos a fazer a triste figura do país mais subdesenvolvido da Europa comunitária, cujas figuras maiores da sua História chegam a ser mais conhecidas e celebradas noutros países do que na terra onde nasceram e viveram.

Vem a propósito desta reabilitação da figura de D. Teresa recordar uma curiosa afirmação de Diogo Freitas do Amaral, em recente entrevista ao JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias (de 20 de Set. de 2000): foi tão relevante a acção da condessa D. Teresa (neta da homónima rainha agora celebrada e filha mais nova de D. Afonso Henriques) na Flandres, que todos os anos ela é celebrada, oito séculos depois, na importante cidade de Bruges, desfilando na "figura da condessa Mahaut (como ela é lá conhecida!) montada a cavalo com a bandeira das quinas!".Quem a conhece e evoca em Portugal?

2. Como sugerido antes, assistimos, nos últimos tempos, a um saudável movimento de releitura e reinterpretação da História de Portugal, quer dentro da própria ciência historiográfica; quer extramuros, ao nível das obras de divulgação histórica, e até da própria criação literária, com destaque para o renovado romance histórico. A História pátria continua, portanto, a afirmar-se como fonte inesgotável de temas, de personagens, de ambientes e de lições. Esta revalorização do conhecimento histórico é extremamente oportuna, sobretudo num tempo em que o ensino desta e de outras matérias atravessa momentos de crise, dramaticamente visível no alarmante nível de ignorância demonstrada pelos alunos, nos mais diversos graus do nosso sistema de ensino.

Entre os temas de renovado interesse da História de Portugal, avulta esse longo e rico período da Idade Média, e, mais precisamente, os alvores da nacionalidade portuguesa. Uma elucidativa prova deste facto está patente, por exemplo, na recente realização do II Congresso Histórico de Guimarães. Teve como enquadramento temático-cronológico principal o séc. XII e a carismática figura de D. Afonso Henriques. Seguiu-se-lhe a esperada publicação das monumentais Actas, em 7 volumes. Recorde-se, aliás, que o vol. 3 dessas Actas é justamente dedicado a D. Afonso Henriques na História e na Arte. Aliás, outros estudos sobre esta figura e esta época, de especialistas vários, nos aparecem nos outros volumes. Este grande evento científico foi presidido pelo Prof. Diogo Freitas do Amaral, autor de uma recente biografia sobre o nosso primeiro monarca — D. Afonso Henriques. Biografia (Bertrand / Círculo de Leitores, 2000) — já com várias edições, a atestar a qualidade da obra e a excelente receptividade do público leitor.

Ora, neste movimento de evocação e reinterpretação de figuras do nosso passado histórico, ganharam algum realce as de D. Afonso Henriques e de D. Teresa. Neste último caso, temos assistido a uma reavaliação despreconceituosa da mão de D. Afonso. Segundo relatos cronísticos vários, além de ter sido uma bela mulher, a rainha D. Teresa é cada vez mais apreciada como hábil diplomata no complexo jogo de interesses geo-políticos da época, estando profundamente ligada ao processo de autonomização do território português. Falar de D. Afonso e de D. Teresa, da sua acção política e pensamento estratégico, é uma forma de pensar Portugal e as suas origens como realidade geográfica, religiosa e política.

Neste movimento de reinterpretação, foi também destacada a figura de D. Teresa, filha de D. Afonso Henriques e de D. Mafalda, Esse destaque de uma apagada figura da nossa História ficou a dever-se a Maria Roma (esposa de Diogo F. Amaral), num estudo apresentado ao referido II Congresso Histórico de Guimarães e inserta no vol. 2 (A Política Portuguesa e as suas Relações Exteriores, Câmara Municipal de Guimarães / Universidade do Minho, pp. 457-468). Esta comunicação tem o sugestivo título de "Teresa de Portugal, Condessa da Flandres, Duquesa da Borgonha". Aí nos é traçado a vida e o perfil da filha predilecta de D. Afonso Henriques. A jovem e bela princesa, "mulher cheia de orgulho e de uma energia viril", da fibra da sua avó, vem a casar, em 1185, na catedral de Bruges, com Filipe da Alsácia. Com este oportuno enlace mnatrimonial, alcança D. Afonso uma importante aliança com a Flandres. Por isso, como foi referido antes, e é evocado no texto desta comunicação, a cidade de Bruges ainda hoje celebra carinhosamente esta Infanta de Portugal.

Ainda bem que numa época de crescente ignorância histórica e de alarmante globalização económica e tecnológica, há pessoas cultas e dedicadas, como o limiano Amândio de Sousa Vieira, que se devotam deste modo à divulgação do nosso passado histórico, quer na sua dimensão mais nacional, quer nas suas articulações com uma cultura regional, empenhadamente dinâmica, mas sem nunca perder a memória histórica.

Cândido Martins, Outubro de 2000

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