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Os Caracteres
Teofrasto
Lisboa, Relógio d'Água, 1999
(Trad. e introd. de Maria de Fátima Silva)

Teofrasto: Os Caracteres

Mais celebrizado pelo nome de Teofrasto – que significa: "o que tem dons divinos no uso da palavra" –, Tírtamo de Éreso (370 a. C. – 288 a. C.), foi um dos mais conhecidos colaboradores de Aristóteles no Liceu. Deste dinamizador da escola peripatética, destacado filósofo, considerável cientista e notável orador, a quem são atribuídas inúmeras obras, destaca-se este pequeno opúsculo, acabado de traduzir para português, numa cuidada edição de Maria de Fátima Silva.

A obra inicia-se com um breve Proémio, dirigido a um interlocutor (Pólicles), onde Teofrasto elucida o leitor da natureza e objectivos da sua obra. A metodologia fora a observação da natureza humana, posteriormente tipificada em categorias psicológico-sociais. O propósito que o moveu foi a sintética exposição desses tipos de personalidade e o modo como actuam.

A obra é constituída por um conjunto de trinta retratos de tipos sociais e humanos. Cada perfil inicia-se por uma definição muito sumária. Segue-se a caracterização de cada perfil, com elucidativos exemplos retirados do quotidiano. Através desta dupla metodologia, num misto de reflexão ética e de escrita dramatúrgica, o leitor vê recriados diante de si, como num palco, três dezenas de perfis humanos, como o bajulador, o tagarela, o parolo, o descarado, o mesquinho, o inoportuno, o autoconvencido, o pedante, o forreta, o gabarola, etc. São tipos humanos realmente intemporais, delineados com extraordinária finura. Fruto da observação directa, esta admirável e cómica descrição de costumes imortalizou o seu autor.

Assim, em jeito de aperitivo, da vida pública ateniense e da concorrida ágora, salienta-se o dissimulado. Definido como um tipo afectado, aparenta uma falsa inferioridade. É caracterizado como um falso, que diz o que verdadeiramente não pensa e finge o que não sente, conforme os seus interesses: "Na presença dos interessados, dirige elogios àqueles mesmos de quem acabou de dizer mal pelas costas; e se os vê na mó de baixo, manifesta-lhes solidariedade".

Aparentado com este tipo, parece ser o maledicente, a quem tudo pode ser pretexto para dizer mal de alguém: "Faz dessa actividade da má-língua o sal da sua vida". Gosta de estar com quem, como ele, cultiva a maledicência. Por exemplo: "Quando está sentado numa roda de amigos e um se levanta, é menino para se pôr a falar dele; e depois de começar, nunca mais acaba, até a família do tipo mete ao barulho".

Por fim, o pedante, homem dominado pela ridícula mania da superioridade: "Se o convidam para um jantar, há-de arranjar maneira de se sentar ao lado do dono da casa". Esta doentia pretensão manifesta-se na procura de lugares de destaque, em privado e sobretudo em público, bem como na constante ostentação. Tudo nele é pretexto para aparecer, para desfilar e se auto-glorificar.

Os antigos tratadistas de Poética defendiam que a Literatura deveria ser norteada por duas grandes funções: deleitar, isto é, proporcionar prazer estético; e instruir, ou seja, contribuir para a formação do leitor. Horácio dirá, paradigmaticamente, que a boa literatura teria de ser útil e agradável. Como vemos, esta dupla funcionalidade encontra plena concretização neste texto de Teofrasto, misto de ensaio ético e de texto retórico-teatral.

Estes tipos humanos são arrancados da Atenas conquistada por Alexandre. Estão plenos de vitalidade, no perfil realista com que são traçados. É cativante o poder de recriação de episódios e situações quotidianas, ora do domínio público, ora privado. Pela vivacidade com que aparecem, cada retrato é uma autêntica e contagiante cena teatral. Nesta admirável reconstituição da sociedade do seu tempo, cada perfil de Teofrasto é um verdadeiro pedaço de realismo literário.

Escusado será acrescentar que os tipos humanos verbalmente desenhados constituem vícios ou maus caracteres. O mesmo é dizer que, numa visão ético-moralizadora, estes trinta retratos configuram o reverso de outras tantas virtudes. Contudo, este propósito morigerador é mais visível na gravidade conceptual com que o autor apresenta cada um dos perfis. Já na exemplificação aflora sobretudo uma tendência estética, servindo-se de um estilo cómico-teatral e de uma linguagem humorada, perpassada de ironia e de sátira.

Em face do que fica escrito, é compreensível a influência multissecular d' Os Caracteres de Teofrasto. Esta singular obra erigiu-se como um dos textos mais inspiradores das inúmeras tipologias literárias de todos os tempos, nomeadamente ao nível do teatro cómico e mesmo do romance. Constituíu-se também como uma das grandes fontes de outros tratados preceptivos sobre perfis ético-sociais. Foi ainda traduzida e ampliada pelo setecentista francês La Bruyère, em 1688. Por consguinte, não surpreende que ainda hoje esta pequena obra do séc. III a. C. proporcione uma agradabilíssima leitura.

Mudam-se os tempos, alteram-se os costumes, mas o homem permanece igual a si mesmo, nas suas virtudes e nos seus defeitos. Em face de textos clássicos como este, como é verdadeira a consensual afirmação que garante: é possível conhecer melhor a natureza humana através da Literatura do que a partir de eruditos tratados de Psicologia.

Cândido Martins, Outubro de 2000

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