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Recensões


El-Rei no Porto
Fernando Venâncio
Porto, Edições Asa, 2001

El-Rei no Porto
de Fernando Venâncio

Ridendo castigat mores

Na minha modesta opinião, com poucas excepções de mérito relevante, que mereciam melhor recepção além fronteiras, a nossa ficção, apesar das lições de Eça e de Camilo, peca por falta de força, de domínio da arte de narrar que prende o leitor pelos seus conteúdos e pelos seus temperos. Aos primeiros, falta-lhes o lado da dramaticidade, aquilo que num tema, qualquer que ele seja, se sobressai pela dinâmica que adquire, libertando-se da insípida banalidade. A arte, antes de mais, é isso, transformar o real em ficção, ou dar o sabor de ficção ao real, explorando os canais emotivos do leitor para neles se instalar, dominadora. E não me canso de repetir a receita de Racine : " Il faut toucher pour plaire ". Aos segundos, falta-lhes os segredos da língua, dos seus recursos estéticos, das especiarias em suas proporções qualitativas e quantitativas, que dão o sabor que abre o apetite. Ler um livro de autor português é quase sinónimo de seca. Na era tecnológica, com todas as suas aliciantes, o divórcio entre livro e leitor é acelerado por um " bem " escrever fastidioso.

É necessário que isto se diga, depois de ler El-Rei no Porto , porque esta obra tem a força das molduras narrativas que as tornaram arte por excelência. Lê-se sem bocejar, com deleite, e fica-se a saborear e a pensar. Se assim se escrever, não temos que recear a desertificação literária trazida pela escrita ultra-light, sucedânea da pop arte.

Fernando Venâncio nasceu em Mértola em 1944, é professor universitário em Amesterdam, é crítico, ensaísta, tradutor e ficcionista. publicou Um selvagem ao piano, contos, 1987, e Os esquemas de Fradique, romance, 1999. Agora, em Edições Asa, em plena primavera de 2001, sai o seu terceiro título, El-Rei no Porto, romance.

Quem sabe do seu traquejo nas análises literárias, não estranhará que se augure El-Rei no Porto como uma referência nas nossas letras. Desgarrado de qualquer escola ou movimento, actualmente fora de moda, cada escritor procura a sua identidade entre os seus do mesmo ofício. Fernando Venâncio revela-se um escritor com oficina própria, com uma linguagem solta, de comunicação directa, a linha da frente, e com uma retaguarda couraçada de humor, que investe numa peleja social de âmbito nacional, com um tratamento que nos leva às Guerras do Alecrim e Manjerona , de António José da Silva.

O romance desenvolve-se em dois planos, num interseccionismo perfeitamente conseguido, numa malha desportiva, o futebol . Dois planos, duas paixões, um enredo de uma Márcia com um Ricardo e um enredo de um Norte com um Sul.

No primeiro caso, o autor recorre a uma estética pontilhista, a Márcia perde-se em pigmentos descontínuos para ser recuperada na nitidez de um retrato de traços e cores vivas, um visualismo da " carónica" antiga, que se adivinha pela presença constante da ausência, assim assegurando uma unidade narrativa aparentemente quebrada. Os dois planos anulam-se num tecido semiótico por onde o conceito de fluência se define por novos recursos. Tratamento trans-sintagmático em que a protagonista Márcia nasce e cresce em intensidade narrativa, criando um suspense que prende o leitor da primeira à última página num dizer predominantemente elíptico, de apreensão imediata, mobilizando o leitor para outras camadas hermenêuticas, onde o humor substitui segmentos narrativos ou superfícies descritivas. As "deixas" pontilhadas fermentam uma linha contínua , evitando enchidos estáticos, pois a Márcia e o Ricardo estão embutidos num painel polémico Norte-Sul, que obriga a uma leitura global de intenção cubista. Note-se, como pertinente, a vigilância política como operadora da presença na ausência, em que o leitor é levado a construções hipotéticas, tornando-se cúmplice narrativo, evitando cortes na acção e ficando a ela vinculado, preso. Note-se, também, que é através de Sara, pau-de-cabeleira de Márcia, que a tal ausência se anula. Sara cria a presença no nexo de duas confidências, Márcia e Ricardo, com ressonâncias do coro da tragédia grega.

Morfologicamente, Márcia é uma personalidade analítica, embora aparentemente sintética ou elíptica. Permite focagens diversas. É pragmática, entre a paixão e a estabilidade da vida, prefere esta, a segurança, o bom enquadramento social. Tem uma vontade forte, é determinada, a razão comanda os sentimentos, com a mesma facilidade com que vai com Ricardo para a cama, faz o cerco ao futuro rei do Norte, Rodrigo, que poderá ocultar o nome do presidente de um clube ou de um autarca do Norte. E será coroada de êxito nos seus planos. Márcia não é uma mulher fútil, ou leviana, no sentido corrente dos termos, é um produto dos jogos de interesses sociais, um conceito bem acabado da mulher anti-romântica. A mulher que gere os seus dotes femininos no sentido das mais valias. Também não será impensável ver nela alguma simbologia. Ela, nortista, provavelmente de antepassado celta, é possuída por um sulista, o jornalista Ricardo, provavelmente de um antepassado de mouro, que, em linguagem brejeira, metafórica, se poderá traduzir pela acopulação do Norte pelo Sul, a submissão. E já no seu papel de rainha, como símbolo da emancipação regional, ela surge ao lado da primeira ministra do governo do Sul, de igual para igual, repetindo as pompas e as circunstâncias do velho Portugal uno. A submissão à cópula é recompensada pelo poder ostentado pelas ruas de Lisboa, esquecido o Norte, lá no Norte.

O problema dos dois portugais parece ser mais de natureza política, de governação, de poder, do que propriamente de etnias.

Márcia acaba por simbolizar a época pós-romântica, do tempo acelerado pelas novas tecnologias, que anulam progressivamente na existência os espaços do passado e do futuro, o sonho retrospectivo e o sonho projectivo, cedendo ao presente a exclusividade, o profiter la vie, domínio da razão sobre os sentimentos.

Os amores entre Márcia e Ricardo, a cenoura que o leitor persegue com a saliva na boca, não é mais que o veículo utilizado pelo autor para a "contenda" Norte-Sul, sua intenção, creio.

Fernando Venâncio faz uma caricatura do confronto sem excluir verdades, algumas, confrangedoras, o que dá ao romance um sabor trágico-cómico.

À superfície da narrativa assomam as cores das camisolas, das etnias, celtas e mouros, clubistas, bairristas, no jeito da caricatura satírica do nosso António José da Silva das Guerras do Alecrim e Manjerona . Se tal conflito era caricato no séc. XVIII, mais o é no séc. XXI. O que não apaga, de qualquer maneira, os sentimentos dos intervenientes, que são a razão, a motivação, da obra que se pretende catártica.

Julgo, e penso não andar longe da intenção do Autor, que o problema é essencialmente de gestão política. Tem sido sempre assim em todos os tempos até aos nossos dias de Iras e de Etas. Quando o poder central, governante, não faz uma assimilação política correcta, de deveres e direitos igualitários, vêm à tona as diferenças étnicas e culturais. No fundo, as assimetrias funcionam como um colonialismo que nunca foi aceite por nenhum povo. É nesta perspectiva que a regionalização ganha peso, como esperança, apenas, pois acredito que a existir, as coisas não melhorariam, o caciquismo local seria mais nefasto que o central, em lugar de um rei, teríamos muitos reizinhos. Uma política global não implica que culturas diferenciadas se anulem, ou que culturas afins, como o Norte de Portugal e a Galiza impliquem a formação de um estado. De celtas e de mouros, de desprotegidos e protegidos, e até de monopólio de interesses selvagens, poder-se-á falar e deve-se falar, mas não de mãos nas ancas e aos berros, como os naturais das lotas e dos mercados. Haverá sempre um transmontano, um minhoto, um beirão, um alentejano, um algarvio, cujas diferenças são uma mais valia, mas que estão inexoravelmente unidos por um esforço colectivo histórico que definiu uma fronteira. El-Rei no Porto atinge certa tragicidade, pelas tensões que cria tão reais quanto indesejadas, próximas do ridículo, mas também de revoltas justas.

Dada a natureza do assunto, Fernando Venâncio encontrou o discurso certo, a coerência entre o conteúdo e a forma, a anedota em lugar da solenidade, o riso em lugar da lágrima: ridendo castigat mores.

Joaquim Matos, Setembro de 2001

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