Letras & Letras

Recensões


Dá-me com a noite
Alberto Augusto Miranda
Edição bilingue
Tradução de Silvia Zayas Serra
Ediciones Leteo. 2001

Dá-me com a noite de Alberto Augusto Miranda

Dá-me com a noite, título de livro, e de poema ( p. 53 ), matriz duma existência diferenciada. " Noite " , símbolo de um percurso, das negações da vida, em planos temporais e espaciais, de efémeros e eternos, de próximos e distantes, de eu e outros, de física e metafísica, de fissuras entre o sentir e o pensar, num pontilhismo de formas e conteúdos. Mas também não será de afastar, num outro plano, um poema endereçado, sem outro endereço além de um "tu". Mas "tu", ainda será uma das faces do poliedro da " Noite "

O Alberto escreve pelo lado obscuro do texto, que quer recuperado em cintilações, para além das quais haverá o vácuo, onde as palavras não se ouvem, nem os gestos se vêem. Não há uma preocupação filosófica, mas uma intenção satírica, que é intervenção da sua dor, da sua revolta, da sua indignação, sem vínculos éticos ou ideológicos, sem marcas normativas, o que se ajusta melhor à melhor sátira.

É uma poesia sofrida, no singular e no plural pelo lado da solidariedade, ângulos de uma tristeza profunda, " choro enorme // no estertor da neve / recolhida para escrever / o coração " (p. 52 ), que não é lamentação masoquista, mas revolta, que também é súplica: " dá-me com a noite / esbofeteia a fresta, / o Real diante de mim " (p. 53). O "Real" que vai cintilando ao longo da obra: o amor, a morte, o destino, o silêncio, a solidão, o mistério, o nada, como se não bastassem os "marchands" e as "múmias", e os seus opostos "miseráveis" e "escravos", tecido social onde acenam anjos e crianças.

A maneira de estar do Poeta é de confronto, radical, iconoclasta, tudo está mal: "enorme charco de boca aberta " (p. 57). Excepção, as verdades do corpo e das ânsias, quando estão de acordo com a natureza. E de confronto também é feita a sua escrita, sempre na transgressão, num combate cerrado às normas, quer as sintagmáticas, sintagmas sincopados, opostos ou apostos, quer nas criações lexicais, retirando, assim, um pasto verdejante para linguistas e críticos. Um Poeta que se quer nunca comprometido, porque nada tem a ver com a traição humana, nem com a palavra que lhe é decorrente: " multidrama, / nenhuma língua é franca " ( p. 40). Um Poeta que procura a destruição de qualquer estética, criando a sua própria, que a si própria também se destrói, perseguição quase patológica, que uma psicanálise revelaria, mais uma vez, a sua revolta. Não é de caos que se trata, mas de uma desorganização organizada, ou que se procura organizar na negação de qualquer sistema.

Há um pessimismo profundo em Alberto, mas não fechado, conhece os caminhos da inocência e nela marca os seus passos : " eu vou com a criança que está / a nascer depois da ponte " (p. 58).

Joaquim Matos, Pedrouços, 25 de Novembro de 2001

Voltar à página inicial

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras