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Recensões


José Anastácio da Cunha
Obra Literária
Porto, 2001, Campo das Letras
Edição de Maria Luísa Malato Borralho
e Cristina Alexandra de Marinho

Obra Literária
de José Anastácio da Cunha


1. Exemplaridade da reedição de um clássico: Somos levados imediatamente a reconhecer que estamos perante um trabalho modelar do que deve ser a edição de um clássico da Literatura Portuguesa. Cuidadosamente preparada por Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandra de Marinho, e não se limitando à tarefa mais ou menos fácil de reproduzir anteriores edições, esta reedição da Obra Literária de José Anastácio da Cunha é um belo exemplo de como reeditar hoje, de modo dedicado, escrupuloso e não menos apaixonado, um autor quase esquecido. A obra singular de José Anastácio da Cunha e o séc. XVIII em geral bem merecem este cuidado e rigor metodológicos.

José Anastácio da Cunha (1744-1787) é, sem dúvida para ninguém, um dos mais interessantes poetas da segunda metade de Setecentos. Nascido em Lisboa, estuda Humanidades nos Oratorianos. A carreira militar leva-o até Valença do Minho, onde terá vivido “publicamente amancebado” com uma moça de nome Margarida. Porém, esses amores serão interrompidos, quando o José Anastácio deixa as funções de militar minhoto para assumir se transformar num lente coimbrão. De facto, com uma rara inteligência, uma boa formação em línguas estrangeiras e uma assinalável capacidade para as ciências exactas, é convidado pelo Marquês de Pombal para professor de Geometria na Universidade de Coimbra. A par de homens como o Abade Correia da Serra, é um digno representante do racionalismo setecentista português. Nesta área das ciências matemáticas, publica mesmo alguns trabalhos (Princípios Matemáticos, em 1790, com ed. fac-similada em 1987; e Carta Físico-Matemática, 1839). Além da criação poética, dedicou-se à tradução (de Racine, Voltaire, Pope ou Haller), tendo ainda composto umas Notícias Literárias de Portugal 1780 (com edição de Joel Serrão, em 1966).

Com a morte de D. José e a queda do Marquês tudo se precipita. A sua arguta inteligência e sobretudo certa heterodoxia intelectual, nomeadamente em matéria filosófica, tornam-no suspeito aos olhos da Inquisição. Antes e sobretudo durante a instrução do processo inquisitorial, amigos e camaradas acusam-no acusa de boémio e de herege (“espírito herético e libertino”, nas palavras de um camarada de armas). Afastado da actividade docente, o temido tradutor de Voltaire chega a ser condenado à reclusão em Lisboa e em Évora, depois de ter saído no último auto-de-fé realizado em Portugal. Indultado ao fim de alguns anos, ainda trabalha como professor da Real Casa Pia, fundada por Pina Manique. Porém, acaba por morrer pobre e desiludido, aos 42 anos, apenas dois antes da Revolução Francesa. À História da Literatura Portuguesa, este poeta-matemático acaba por legar uma singular obra poética, independente do Arcadismo e manifestamente pré-romântica. Afinal, um destino semelhante ao de outros contemporâneos, que tiveram a infelicidade de nascer numa “terra pequena de gente pequena” (na feliz e amarga expressão garrettiana).

Sem se limitar à repetição de algumas ideias do percurso biográfico de José Anastácio da Cunha, as organizadoras desta reedição da Campo das Letras não se pouparam a esforços para reconstruir, através de bibliografia e documentação rara, as circunstâncias da vida, interrompida. Como? Através da aturada pesquisa em arquivos e bibliotecas, fundamentando-se em testemunhos directos, em cartas expressivas, em fontes bibliográficas credíveis. Onde? Por exemplo, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com destaque para as importantes informações do processo inquisitorial de que foi alvo o escritor; ou no Arquivo Distrital de Braga, onde as organizadoras desta reedição encontraram uma preciosa colecção de manuscritos no fundo pertencente ao Conde da Barca.

Só este tipo de pesquisa permite coisas tão importantes como clarificar dúvidas antigas, confirmar ou infirmar suspeitas, esclarecer anonimatos, revelar inéditos, como é o caso do presente trabalho de Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandra de Marinho. Este tipo de trabalho é absorvente e sedutor, e no caso de autores como José Anastácio da Cunha, ainda incompleto, pelo que a publicação desta Obra Literária não é ainda a esperada obras completas do autor. Infelizmente, cada vez mais solicitados por dispensáveis e estéreis tarefas burocráticas e de gestão académica corrente, os docentes universitários tem cada vez menos disponibilidade para esta tarefa tão básica e fundamental: a pesquisa em arquivos e bibliotecas. Mas isto é já uma outra conversa...

2. Dois exemplos de recepção romântica: Não resistimos a citar dois exemplos bem elucidativos da recepção crítica da obra de José Anastácio da Cunha, com a singular particularidade de partirem de dois consagrados escritores românticos, também eles ocasionais críticos literários. No seu Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa – introdução à antologia parisiense Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos Autores Portugueses antigos e modernos... (1826), que reproduz um poema de José Anastácio –, Almeida Garrett não podia esquecer a modernidade do “infeliz engenho” (“infeliz” pelas adversas circunstâncias biográficas, naturalmente) revelado pela pena pré-romântica de José Anastácio da Cunha, escrevendo:

“De José Anastácio da Cunha, que das matemáticas puras nos deu o melhor curso que há em toda a Europa, desse infeliz engenho (que talento houve já feliz em Portugal?) a quem não impediam as rectas de Euclides, nem as curvas de Arquimedes de cultivar também as musas; de tão ilustre e conhecido nome que direi eu senão o muito que me pesa da raridade de suas poesias? Todas são filosóficas, ternas e repassadas duma tão meiga sensibilidade algumas, que deixam na alma um como eco de harmonia interior que não vem do metro de seus versos, mas das ideias, dos pensamentos. Todavia há mister lê-lo com prevenção, porque (provavelmente estropiada de copistas) a frase nem sempre é portuguesa de lei”.

No comentário garrettiano, temos pelo menos quatro ideias interessantes a reter: i) a afirmação da infelicidade que marcou a existência de José Anastácio, e, de modo geral, de todos os escritores, segundo a psicologia romântica, sempre tão atentamente simpática diante dos artistas ignorados, perseguidos ou exilados; ii) o reconhecimento da invulgar junção, na mesma pessoa, da formação científico-matemática e da vocação poética; iii) o elogio da singularidade da expressão poética de José Anastácio, marcada pela sensibilidade e cunho filosófico; iv) por fim, o problema da fiabilidade das reproduções de alguns poemas de José Anastácio da Cunha (como na colectânea intitulada Collecção de Poesias Inéditas dos Melhores Authores Portuguezes (Lisboa e Londres, 1810-12), antes ainda da pioneira edição organizada por Inocêncio F. Silva em 1839, como referido detalhadamente nesta reedição.

Por sua vez, no Curso de Literatura Portuguesa (1876), num subcapítulo intitulado “Poetas estranhos à Arcádia”, Camilo Castelo Branco refere-se assim ao pobre condenado José Anastácio da Cunha, a partir da notícia bibliográfica de Inocêncio (Dicionário Bibliográfico, tomo IV, págs. 221-231): “No seu estimável Dicionário encontramos a sentença do Santo Ofício que condena José Anastácio a ouvi-la em auto público da fé com hábito penitencial. A sentença confisca-lhe todos os bens, encerra-o por três anos na Congregação do Oratório com dois dias de penitência em cada mês no primeiro ano: passante o triénio da reclusão, des­terra-o por quatro anos para Évora, e veda-lhe perpetuamente o ingresso em Coimbra, onde ensinara Geometria, e em Valença, onde estivera aquartelado como tenente de artilharia do Porto. Comple­tados os três anos penitenciais, requereu José Anastácio à mesa do Santo Ofício que lhe comutasse o desterro dos quatro anos em resi­dência na Congregação do Oratório. O tribunal condescendeu.”

Mais adiante, deixando as circunstâncias bibliográficas, Camilo refere-se explicitamente ao valor estético da obra de José Anastácio da Cunha e, sobretudo, ao inovador pré-romantismo da sua escrita poética (“laivos de poesia romântica, um ideal melancólico”), antecipando-se assim ao conceito de proto-romantismo que Teófilo Braga proporá: “O insigne matemático e apreciável poeta faleceu aos quarenta e três anos em Lisboa. Em 1839 vieram a lume algumas das suas composições poéticas. Subsistem inéditas outras, e ainda em 1874 apareceu um poema satírico respondendo a outro de Francisco Dias Gomes. Nas poesias daquele aluno da escola francesa há um colorido de sentimento delicado, triste e meigo que não pertence à filosofia rançosa dos seus contemporâneos que toda se cifrava em louvores à sã virtude, e à parca frugalidade dos lavradores, ao passo que tais filósofos pediam talher na mesa dos fidalgos, e contenta­vam-se em aparecer no fim dos jantares para glosar os motes. Em José Anastácio vislumbraram-se uns clarões da poesia romântica, um ideal melancólico – de que não conhecemos senão raros exem­plos em algumas odes de Filinto Elísio – e uma nobre independência que o salvou da gafaria dos mendicantes. As traduções do inglês deno­tam quanto lhe eram mestres na elevação do espírito os poetas britânicos, e na filosofia os mais famigerados da escola da Enciclopé­dia. Conhecia de fundamento os principais idiomas, e verteu de Virgílio algumas éclogas em hexâmetros portugueses com admirável concisão, fidelidade e um sabor campesino de encantadora graça”.

Como vemos, além dos interessantes juízos estéticos, as considerações camilianas têm ainda a particularidade de se referirem à querela poético-literária entre José Anastácio da Cunha e Francisco Dias Gomes (convidando o leitor para o fascículo X das Noites de Insónia, págs. 36-47), cujos textos são agora republicados nesta edição. Ainda nas páginas do seu Curso, perante o estro poético de José Anastácio, Camilo reconhecerá que o “detractor” e crítico literário Francisco Dias Gomes “levava-lhe vantagem no predicado da filologia”. Referia-se Camilo à assinalável Memória académica em que o crítico “Analisou e combinou filosoficamente, como ele disse, as locuções de Miranda, Ferreira, Bernardes, Caminha e Camões” (remetendo para o tomo IV das Memórias de Literatura da Academia Real das Ciências, pp. 26-305.).


Contudo, depois dos reparos ao referido trabalho académico, e discordando das apreciações excessivamente elogiosas de Herculano, Camilo é peremptório juízo crítico: “Francisco Dias Gomes, como poeta, é um metrificador gélido que contava as sílabas, e submetia o sentimento aos códigos de Longino e Aristóteles, nunca empregando uma figura que pudesse desavir-se com outra, se a Poética de Cândido Lusitano legislasse o contrário”. E em nota de rodapé, acrescenta Camilo: “A respeito de Francisco Dias Gomes e da sua sátira contra José Anastá­cio da Cunha, veja Noites de Insónia, Tomo IX, págs. 18 a 231”.

3. Méritos mais salientes da presente reedição: Contrastando com outros escritores neoclássicos e arcádicos, a obra de José Anastácio da Cunha ainda hoje continua a atrair não só os leitores, mas também os estudiosos, como se comprova pela bibliografia crítica que se tem vindo a publicar e de que esta reedição nos dá conta. Exemplifiquemos rapidamente, sem alongarmos a nossa atenção ao que se tem publicado no Brasil ou noutros lugares. A sua obra poética fora publicada postumamente pelo bibliógrafo Inocêncio Francisco da Silva, sob o título de Composições Poéticas (1839). Cerca de um século depois, foi reeditado por Hernâni Cidade, em Obra Poética do Dr. José Anastácio da Cunha (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930). O mesmo historiador e crítico volta a referir-se à obra de José Anastácio da Cunha nas páginas do vol. II das Lições de Cultura e Literatura Portuguesas (6ª ed., Coimbra Editora, 1975, pp. 386-395).

Mais recentemente, a poesia de José Anastácio da Cunha mereceu a perspicaz análise crítica de Jacinto do Prado Coelho, quer em “O Amor em José Anastácio da Cunha: a volúpia inocente” (estudo recolhido em Problemática da História Literária, 2ª ed., Lisboa, Ática, 1961, pp. 127-131); quer ainda na breve, mas bem elaborada antologia dos Poetas Pré-Românticos (2ª ed., Coimbra, Atlântida, 1970). Há alguns anos apenas, era publicado também um interessante volume, intitulado José Anastácio da Cunha (1744-1787), Matemático e Poeta (Lisboa, IN-CM, 1987), com a contribuição de vários estudiosos, a par da exposição de homenagem ao poeta-matemático, organizada pela Biblioteca Nacional, a pretexto do bicentenário da sua morte. A presente reedição da Obra Literária de José Anastácio da Cunha vem ocupar um justíssimo lugar de destaque nesta bibliografia sobre o poeta de Setecentos.

Enquanto aguardamos com vivo interesse a publicação do segundo volume, neste vol. I da Obra Literária (afinal, a 3ª edição do poeta até ao momento), o leitor depara-se com os textos poéticos (éditos e inéditos), da autoria de José Anastácio da Cunha, vazados em vários géneros (soneto, cantata, elegia, idílio, madrigal, ode, sátira, epístola,...). Apesar da relativa fidelidade aos códigos e géneros clássicos, pressente-se na sua escrita uma ânsia de liberdade formal e imagética, já salientada por vários críticos, e, aliás, censurada pelo formalismo dogmático do “Doutor Botija”, Francisco Dias Gomes, como lhe chamou Camilo, num dos textos antes referidos. Para o vol. II, como anunciado, reservam-se as traduções dos poemas líricos ou dos textos dramáticos, bem como os (supostamente) apócrifos e dos textos em prosa.

Além do sugerido, esta reedição da obra de José Anastácio da Cunha conta entre os seus méritos mais salientes: primeiro, os dois informados textos introdutórios, da autoria de Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandra de Marinho, traçando um abrangente e sedutor percurso biográfico e crítico de José Anastácio da Cunha. A primeira investigadora intitula o seu texto “Some Dreams of Humanity... Vida de José Anastácio da Cunha” (pp. 9-59), reconstruindo as circunstâncias da vida atribulada do poeta-matemático, através de uma sólida fundamentação informativa e bibliográfica. À segunda autora, devemos o texto “Um Ponto, no Século XVII, em Portugal” (pp. 61-82), vazado num estilo bem diferente, menos ancorado em documentação arquivística e mais centrado na heterodoxia do intelectual racionalista, nos admiráveis trabalhos do tradutor e na subjectiva modernidade literária do poeta.

Em segundo lugar, nesta reedição também é digno de rasgado louvor o aturado confronto entre as várias edições ou colecções de manuscritos (cuidado bem visível nas abundantes notas de rodapé, apontando variantes ou assinalando dúvidas), o que pressupõe um enorme trabalho de cotejo e, ao mesmo tempo, aproxima esta reedição de uma verdadeira edição crítica.

Finalmente, um terceiro grande mérito desta edição é a publicação de textos inéditos do poeta, alargando assim o relativamente pequeno corpus poético de José Anastácio da Cunha. Aliás, nem outra coisa se esperava de quem já tem créditos formados no estudo do período neoclássico, nomeadamente ao debruçar-se sobre a obra de Manuel de Figueiredo ou de D. Catarina de Lencastre, como é o caso de Maria Luísa Malato Borralho.

Parabéns, pois, às diligentes organizadoras desta reedição, que deste modo dignificam as instituições em que trabalham; bem como à editora Campo das Letras, que assim enriquece o seu catálogo. É com trabalhos desta natureza que decididamente se contribui para o avanço do conhecimento histórico-literário, ao mesmo tempo que se presta um inestimável serviço à Cultura Portuguesa.

Cândido Martins, Março de 2002

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