Letras & Letras

Recensões


Onésimo Teotónio de Almeida
No Seio desse Amargo Mar (Peça em Três Actos)
Lisboa, Edições Salamandra, 1992

A identidade de Portugal, eis a questão

Não admira que a multifacetada actividade de Onésimo Teotónio de Almeida, como prestigiado professor, crítico, escritor, etc., quer no espaço da L(USA)lândia americana, quer pelo mundo em pedaços repartida, se espraie por géneros tão diversos como o ensaio académico, a conferência, a apreciação literária, a crónica, o teatro, entre tantas e tão diferenciadas formas discursivas. Infelizmente, só há bem pouco tempo, no encontro de escritores da Póvoa de Varzim, tive o verdadeiro prazer de encontrar esta obra dramática. Um dos grandes perigos da actividade crítica é o de não ver ou não valorizar a tempo o que se vai publicando; outro, dentro da avalanche de livros novos, será  o de avaliar erradamente. Aliás, o actual circuito livreiro detém um poder perverso sobre a efémera vida dos livros, restringida pelos próprios canais de distribuição.

No meu caso, pretendo tão-só dar conta de algumas impressões de leitura, num tempo e numa cultura em que se escreve e se lê cada vez menos teatro. Afinal, mau grado a imparável Babel da Crítica e dos Estudos Literários,  quase todos partilhamos de alguns princípios lapalissianos: 1º) uma boa obra não envelhece, ou quando muito, acontece-lhe como ao bom vinho espirituoso – a passagem do tempo acrescenta-lhe uma vida insuspeitada; 2º) nunca é tarde para descobrir o prazer de ler, de modo despreocupado, sem o peso das leituras de obrigação profissional ou académica; 3º) a crítica pode legitimamente revestir a feição de partilha desse prazer, sem com isso renegar a sua natural vocação judicativa.

No Seio desse Amargo Mar é uma obra dramática estruturada em três actos, cujo título se inscreve directamente sob o signo poético de Antero de Quental, citado em epígrafe, a partir do poema “Sepultura Romântica”. Cerca de 100 anos depois do suicídio de um dos mais eminentes poetas e pensadores da cultura e literatura portuguesas, açoriano de origem, como tantos outros que essa singular cultura nos tem dado, Onésimo T. Almeida teve uma feliz ideia: homenagear, com graça e seriedade, uma plêiade de vultos açorianos. Eles têm em comum o facto de serem ilustres açorianos falecidos (no 1º e 3º Actos), embora de épocas e gerações bem diferenciadas.

O dramaturgo decidiu assim insuflar-lhes vida, pondo-os em palco através do onírico devaneio de um jovem que, em transe alucinado, os imagina numa interessante tertúlia na “Casa dos Açores da Atlântida” – mundo de sombras existente na profundidade do mar, ponto de encontro de espíritos superiores. Apesar do seu estado, eles não resistem a espiar, através de um mágico periscópio, sobretudo ao serão, o mundo dos vivos que abandonaram mais ou menos pacificamente, numa sucessão de comentários ora sérios, ora divertidos, enfim à boa maneira açoriana, num agradável encadeamento de “memórias e historietas”.

Essa visão que os pretéritos mortos têm do presente mundo dos vivos, que atrai mais uns do que outros, permite ao dramaturgo curiosas aproximações e contrastes. Podemos dizer que toda a peça é o espelho de uma nação que tem dificuldade em analisar-se. É uma contínua conversa sobre o passado e o presente de Portugal, um país com embaraços para compreender a sua real identidade. No que respeita a tagarelice, ninguém vence o inveterado conversador Vitorino Nemésio, que só se cala quando pega na guitarra. Assinalando a aproximação do autor de  Mau Tempo no Canal, Roberto de Mesquita exclama para os interlocutores: “Se ele começa, nunca mais acaba”.

Já as hegelianas preocupações filosóficas são encarnadas pelo angustiado e venerando Antero, cuja vida íntima não escapa às observações brincalhonas dos comparsas. Preso às constrições positivistas do Comtismo e longe das preocupações metafísicas de Antero, o republicano Teófilo mantém as suas fricções com o antigo colega de geração coimbrã. Antero não hesita em chamá-lo de “meu Augusto Comte lisboeta”.

Aliás, sobre o imparável polígrafo da monumental História da Literatura Portuguesa, referindo-se jocosamente à sua “fase de produção descomunal”, dispara Nemésio uma pergunta, provocando os conhecidos humores teofilianos: “É verdade que, enquanto uns amigos te elogiavam dizendo que não havia no país rotativas a trabalhar com velocidade bastante para te acompanharem a imprimir o que escrevias, um outro amigo, muito sensato e bom crítico, a cada livro teu que ia saindo fazia votos de que fosse o último?”. Antero expressava nos angustiados sonetos “as dores de uma inteligência”. Por  isso, na simpática escrita memorialística, Raul Brandão lhe chama “pobre Antero, exilado e em debate com uma sombra com que não podia arcar”. Já a postura de Teófilo não disfarçava, no entender de Côrtes-Rodrigues, as “dores de cotovelo”. Acima de tudo, jogando com a maior ou menor enciclopédia do leitor, estas figuras aparecem-nos como homens indiscutivelmente cultos, é certo, mas sobretudo humanos, conversando e rindo amenamente.

Da narrativa ao teatro, lembramo-nos automaticamente de enredos ficcionais construídos post-mortem, como as sedutoras Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, ou a surrealizante Torre da Barbela de Ruben A. Não é o momento para explorar paralelos. Em todo o caso, anotemos que de comum com a obra de Onésimo, a narrativa fantástica de Ruben A., habitada por espectros trágico-cómicos oriundos da História de Portugal, tem a humorada reflexão sobre a identidade nacional, assente no tríptico Deus, Pátria e Família, valores que, simbolicamente, configuram a torre triangular existente nesse Portugal rural da Ribeira Lima.

No entanto, a dificuldade que se colocava a Onésimo era considerável. Idealizada a forma geral de congregar esses nomes maiores da cultura açoriana e portuguesa, restava o mais difícil do processo: recriar a psicologia individual de cada figura, as dominantes do seu temperamento, os tiques estilísticos de cada um, os tópicos do seu discurso. Creio que Onésimo conseguiu realmente vencer esse desafio, captando traços individualizantes de cada personalidade, reproduzindo os seus interesses e comportamentos, recriando as suas obsessões temáticas.

A dificuldade aumenta quando essas figuras de açorianos célebres que figuram em tão singular academia são (incluindo os já nomeados) o poeta Armando Cortes-Rodrigues, o poeta Roberto de Mesquita, o poeta, romancista e ensaísta Vitorino Nemésio, o poeta e filósofo Antero de Quental, o historiador e político Teófilo Braga, o pintor Domingos Rebelo, o músico Francisco de Lacerda a poetisa e jornalista Alice Moderno e o poeta J. H. Santos Barros. Parafraseando o nemesiano Mau Tempo no Canal, poderíamos quase afirmar que a efabulação de No Seio desse Amargo Mar nos evoca a xácara dos mortos-vivos. As personalidades que Onésimo aqui imortaliza pertencem ao rol dos açorianos imortais: “Poucos são os que escaparam/ Debaixo da terra fria”, reza a toada popular citada por Nemésio no romance.

Cada um das figuras recriadas por Onésimo “cumpriu o seu tempo”, garante Antero, o único que sente o verdadeiro apelo do regresso: “Eu vou lá cima acabar o meu tempo!”. Daí o apelo, vagamente irónico, de Nemésio: “Coração liberto, porque não dormes connosco o teu sono eternamente?”. Para o leitor menos informado, é útil o conjunto de notas biográficas sobre cada um destas personagens, ou mesmo sobre outros apenas referidos. A única dificuldade insuperável poderia ser a da especificidade dos costumes e tradições das diversas ilhas açorianas. Porém, a peça não se destina exclusivamente a um leitor açoriano.

Naturalmente, um atento e culto leitor açoriano poderá fazer um tipo de leitura diferente, a partir de subentendidos e alusões, embora o desconhecimento dessas especificidades não constitua obstáculo à compreensão e plena fruição da peça. Afinal de contas, o que mais importa é reparar que estamos perante açorianos que ganharam uma projecção cultural e literária que ultrapassa as circunstâncias do seu nascimento como ilhéus – afinal, como se lê na peça, pela boca de Antero: “Universalizar é crescer a partir das raízes”.

Uns saíram da Mãe-Ilha, outros nem tanto; mas a viagem cosmopolita ou a pacata permanência no torrão natal não os impediu de serem grandes, sem nunca renegarem as suas origens. Ao contrário de algumas tendências da Cultura portuguesa, mais do que importar acriticamente, para estas almas açorianas, o importante “é crescer a partir de dentro”, como assevera Nemésio. Mais relevante ainda, todos estes espíritos oriundos de ilhas com “pouca terra e muito mar” contribuíram decisivamente para a abordagem do magno problema da realidade ontológica de Portugal, nomeadamente no momento crítico da segunda metade do séc. XIX.

Nesse desafiante processo de ficcionalização dramática, Onésimo recorre a um processo de verdadeiro entrelaçamento textual, configurador de um prolongado imbricamento de informações verosímeis. Fá-lo através de alusões refinadas, de referências explícitas ou não a factos histórico-culturais, bem como a títulos de obras, de citações mais ou menos disfarçadas, de paráfrases do pensamento, da imitação do estilo, num cuidado e continuado pastiche (à maneira de...). Não faltam ainda as convocações de outros autores e obras, com ligações mais ou menos estreitas aos residentes da Atlântida ou mesmo às ilhas atlânticas, como Oliveira Martins, Raul Brandão (o das tocantes notas de viagem sobre As Ilhas Desconhecidas), Fernando Pessoa ou Natália Correia (colada à figura da deputada Fernanda Vieira, como é facilmente reconhecível).

No Seio desse Amargo Mar é um texto que naturalmente se alimenta de outros textos e discursos, mas sem a voragem textológica e autofágica, tão endeusada pelo estruturalismo kristeviano e não só. Aliás, metadramaticamente, uma das personagens (Roberto de Mesquita) refere-se mesmo ao angustiante tema da originalidade literária, em tempos de inflações crítico-intertextuais: “Isso também é demais! Nada é original! Há sempre um universitário a vir descobrir que já Fulano havia escrito isso e aquilo, em qualquer coisa que um pobre desgraçado escreva”. Nemésio remata jocosamente: “Intertextualidade, intertextualidade, tudo é intertextualidade”.

Parafraseando o autor d’ As Ilhas Desconhecidas, poderíamos dizer que, na construção dramática de Onésimo, os mortos e os vivos formam um corpo, não sendo fácil distinguir a fronteira da irrealidade desta coabitação, tal é a grandeza dos mortos e tão gritante a vacuidade dos vivos. Mesmo através do cómico, constitui um sentido monumento do homem açoriano. Se ironia está omnipresente ao longo dos diálogos do 1º e 3º Actos, o 2º Acto, situado de permeio, constitui o decisivo contraponto satírico-jocoso. O jovem cujo processo alucinatório desencadeia a visão da Atlântida submersa vem ao continente assistir a um congresso, dominado por uma temática tão ampla e vaga como “O Espírito Santo dos Açores, Portugal, a Europa e a identidade nacional”. Um alargado conjunto de intelectuais aparece nessa reunião científica, mas manifesta e escandalosamente não chega sequer a saber qual é o tema em questão, ou a equacioná-lo de modo propedêutico.

De facto, quando esses académicos e intelectuais falam, personificam o Barroco intemporal da nossa cultura, usando um estilo “curvo, redondo e farfalhudo”. Falam muito (da espiritualidade de Antero e do rebanho de Pessoa, da Saudade e do Quinto Império, da identidade açoriana e portuguesa e da língua, do nacionalismo e do sebastianismo), mas sem dizer realmente nada de substancial, minimamente articulado. Desde o hilariante moderador, com a patologia linguística dos “portantos, à ideologia místico-nacionalista do professor J. Sardinha, ou à chocante superficialidade da jornalista Marta Celeste, “uma das mais polivalentes jovens intelectuais portuguesas”, todos se apresentam terrivelmente superficiais, ridiculamente ignorantes ou doentes de retórica. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei...

A finalizar, nesta reunião científica dos intelectuais, a obra de Onésimo tem também o tentador picante de desafiar o leitor/espectador para descortinar e associar estas personagens do 2º Acto a modelos vivos, com relativa facilidade e não menor efeito hilariante. Desafia-o ainda a estabelecer legítimas e fecundas articulações temático-ideológicas, nomeadamente entre alguns pontos de vista subjacentes a esta peça e o conhecido pensamento de Onésimo Teotónio de Almeida sobre a questão da singularidade da cultura açoriana, tal como exposto, por exemplo, numa das obras anteriores a esta peça teatral, Açores, Açorianos, Açorianidade: um espaço cultural  (1989).

Neste momento, aliás, do mesmo Onésimo, reeditam-se as estórias de (Sapa)teia Americana, com prefácio de João de Melo. Ilustrando a visão açoriana da América de hoje, a nova edição aparece em atraente e cuidada edição do Círculo de Leitores (Lisboa, 2002; fora do clube: 2ª ed., Lisboa, Salamandra, 2000). Aqui fica o apelativo convite para a leitura do mais cosmopolita açoriano dos nossos tempos em dois géneros distintos, mas unidos pela mesma temática de fundo.

Cândido Martins, Março de 2002

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