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Recensões

Half a Life de V. S. Naipaul

Metade de uma vida: chegar aos quarenta anos, olhar para trás e pensar que, se calhar, o que se viveu não foi a nossa vida, mas a de outra pessoa. O último romance de V(idiadhar) S(urajprasad) Naipaul, o mais recente laureado do Nobel da Literatura, é um romance sereno, mas perturbador. Isto, se por serenidade tomarmos a narração fluida, quase num só fôlego, alheia a hesitações, ainda que assumindo diversas vozes e enquadramentos, e por perturbação, a sólida, irónica impressão de que a vida é incontrolável, inapreensível, em última análise: invivível.

A história de Willy Somerset Chandran começa na Índia, passa por Londres e termina na colónia portuguesa da África oriental (Moçambique, apesar da ausência teimosa do nome). Termina, num sentido apenas narrativo, pois o protagonista continuará o seu percurso, não sabemos muito bem onde (ao que tudo indica, algures na Alemanha), depois de um divórcio que marca (serenamente também), mais do que o esgotar de uma relação e de um momento histórico, o esgotar de uma ‘meia-vida’ com a qual o protagonista não se identifica. É verdadeiramente espantosa a diversidade de realidades que o autor consegue evocar nestas duzentas e tal páginas: desde a Índia recôndita dos Marajás e dos ascetas, à Índia de Gandhi, dos movimentos populares e independentistas (que, uma vez mais, recebem do autor um tratamento fortemente irónico), tocando a Índia do Império Britânico (empurrada para uma condição de quase irrealidade), até à Londres dos anos 50 – dos bolseiros oriundos das ex-colónias, das noites boémias, e dos primeiros conflitos raciais. De forma inesperada, a narrativa conduz-nos ainda ao colonialismo persistente e, por isso mesmo, tragicamente naiv, dos portugueses em África, com a chegada da independência e o romper da guerra a coincidir com o final abrupto do romance.

Não obstante a ausência até à data de tradução (compreensível numa obra que apenas agora completa um ano de publicação), que se acredita, de resto, garantida, a terceira parte do livro poderá constituir uma atracção acrescida para um leitor português. É com curiosidade que acompanhamos o olhar estrangeiro do protagonista sobre personagens e factos que, apesar dos traços mais ou menos universais, imediatamente reconhecemos como portugueses: a ambição trágica dos Correias; o complexo de superioridade, solipsista e vão, dos Noronhas; a voluptuosidade irresponsável do capataz Álvaro, com a sua interminável prole de filhos ilegítimos; o casamento falhado (minado pela pobreza e pelo álcool) de Graça e Luis; a impudência rebelde da filha do empregado negro (a anunciar uma geração de colonizados claramente menos dócil e acomodada); a miséria e o ódio do meio-irmão mestiço, cuja paternidade não foi reconhecida. Ou ainda, em padrões mais amplos: o abandono dos filhos dos colonos a colégios internos na Europa, a lonjura da autoridade da metrópole, com mecanismos alternativos, mas nem por isso menos eficazes, de manutenção e exercício do poder na colónia; a corrupção fácil; a vacuidade e superficialidade das relações humanas; a ameaça crescente das guerrilhas anti-colonialistas; a certeza da guerra. Há dois temas reincidentes que percorrem todo o romance e, de certo modo, o unificam. Por um lado, a idéia de que a vida é também um fardo involuntário, legado inalienável dos pais e da história, que no romance emerge na questão da mestiçagem, do desconforto sentido por muitas personagens por estarem ‘entre (pelo menos) dois mundos’ (Moçambique é descrita como uma terra de ‘metades’ – “a half-and-half world” – p. 160). O segundo tema é o da questão da responsabilidade trágica daqueles que não são capazes nem de reconhecer, nem de reagir às mudanças (até que ponto evidentes?) da história – ou por apego a privilégios, ou por inércia, ou por pura insensatez, vivendo, nas palavras de uma das personagens “in a fool’s paradise” (p. 194). Acontece ao avô do protagonista, incapaz de antecipar a desgraça dos Hindus após a conquista Mughal da Índia; acontece ao pai de Willy, quando não apreende a verdadeira dimensão do seu acto ‘rebelde’ de desposar uma mulher de casta inferior; acontece a grande parte da comunidade portuguesa em África, e até a Willy, quando consente prescindir daquilo que teria sido a sua vida, em favor da da sua mulher, Ana.

Apesar de, em várias ocasiões públicas, ter anunciado a falência do romance como um género literário, Naipaul regressa com um trabalho inovador, que tem recebido, por parte da crítica em geral, o epíteto de ‘estranho’ (Jason Cowley chamou-lhe “strange”; Paul Theroux, “the weirdest [book Naipaul has ever written]” (1)). Com efeito, se o estilo preciso, atento, e anti-complacente de Naipaul se mantém inalterável e imediatamente reconhecível (mesmo o humor de obras mais antigas como Miguel Street ou A House for Mr Biswas faz uma aparição discreta, sobretudo no episódio burlesco em torno do escritor Somerset Maugham), também é verdade que Half a Life adopta uma técnica narrativa longe de tradicional. A narração de terceira pessoa que inicia o romance é interrompida por duas longas ‘sub-narrações’ na primeira pessoa que dão lugar à voz do pai do protagonista (da página 1 à página 35), e ao próprio protagonista (da página 140 até ao fim), e que, curiosamente, são introduzidas entre parêntesis, ao jeito de anotações cénicas: “(Willie Chandran’s father said)”; “(said Willy)”. No centro da narrativa de terceira pessoa está o acto de contar uma história (a história da vida do contador), o que confere ao romance uma tensão e um ritmo muito próximos do drama.

Ainda que firmemente arraigado na idéia de incompletude e insuficiência, Half a Life é um romance de fartura, a abarrotar com personagens e situações variegadas, com os excessos que caracterizaram e caracterizam a experiência migratória e pós-colonial de milhares de pessoas por toda a segunda metade do século vinte, até aos nossos dias – a chamada ‘diáspora pós-colonial’, da qual a vida de Naipaul, repartida entre a Índia, Trinidad e o Reino Unido, é, afinal, um exemplo acabado. Por detrás das peripécias que perfazem a vida do protagonista, as preocupações de Naipaul revestem-se, porém, de um teor mais universal. O romance convida à reflexão sobre o(s) sentido(s) da vida, sobre a fragilidade da consciência humana, tão facilmente soterrada pelas forças circunstanciais da história e pelos mistérios do estar vivo.

Quer pela escrita admirável (o autor tem sido aclamado como o maior escritor de língua inglesa da actualidade (2)), quer pelas histórias que conta, Half a Life merece uma leitura atenta. E uma tradução urgente.

V. S. Naipaul, Half a Life, Londres, Picador, 2001.


(1) Veja-se as respectivas recensões: Jason Cowley, “Life after death”, in The Observer, Sunday August 26 2001; Paul Theroux, “Into the lion’s den”, in The Guardian, Saturday September 1 2001.

(2) Derek Walcott, Prémio Nobel de 1992, chamou-lhe “our finest writer of the English sentence” (cit. Robert McCrum, “Inimitable and truly great” in The Observer, Sunday October 14 2001).

Paula Sofia Ramos Sousa Sampaio, 2002

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