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Recensões

A mala vazia - algumas histórias de tradição oral

de Alexandre Parafita (Âmbar, 2003)

Este livro, com notáveis ilustrações da autoria de Pedro Serapicos, surge na continuidade de outros de Alexandre Parafita dirigidos à infância e à juventude, constituindo um conjunto de histórias contadas em verso que atravessam um imaginário tradicional tão caro a este autor, reconhecido, nacional e internacionalmente, pelos contributos que tem dado no âmbito da investigação que desenvolve em literatura oral tradicional no Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa.

Em «A mala vazia» encontramos três grandes linhas de força merecedoras de atenção especial, sendo elas a dicotomia entre a fantasia e a realidade na construção do texto poético, a referência a valores e a utopias e a persistente e sempre necessária divulgação de uma cultura popular enquanto parte integrante da nossa matriz civilizacional.

1 – No que concerne ao primeiro aspecto, a dicotomia entre a fantasia e a realidade no texto poético, deve referir-se que só se é consequente com a utilização de uma expressão fantasiosa se, de algum modo, e ainda que no plano das emoções, o leitor puder encontrar alguma verdade nessa expressão, acreditando na fantasia evocada como elemento essencial para a concretização do espectáculo no seu sentido mais lato e a que se associa a literatura. Ou seja, a fantasia a encontrar uma comunicação estreita e a sustentar-se no espírito humano, nas suas vivências, nas suas crenças, nos seus valores, enfim, a encontrar um lugar de equilíbrio e interiorização no seu universo simbólico. A fantasia nas histórias para crianças tem sido um condutor privilegiado na construção de vontades e de sonhos, enquadrando-se naquilo que são os desejos mais íntimos dos seus leitores, aspirações que têm motivado a acção assim como os modos de pensar e sentir o universo. É talvez por isso, que os livros acrescentam ao mundo. Como este. No seu primeiro poema, na sua primeira história contada em verso, Alexandre Parafita invade o universo infantil com a recorrente figura do palhaço que não tendo «um circo que lhe dê guarida,/ somente lhe resta/ o circo da vida», circo esse onde se move  e actua, trazendo para cena o mistério associado a uma mala de cartão que chama a curiosidade de todos. «– Ó senhor palhaço,/Que traz aí dentro?/ – Trago alguns dos sonhos/ Com que me alimento!» Mais à frente lê-se que: «Certo dia a mala/ Caiu e abriu-se,/ E envergonhado/ O Palhaço riu-se.// Tão cheia de sonhos,/ E alguma magia,/ Afinal a mala/ Estava só vazia!...». Uma belíssima metáfora sobre a capacidade empreendedora dos Homens, sobre o espírito criativo, enfim sobre o que se não vê, o que parece vazio materialmente, mas que através do sonho e do querer acaba por alimentar os dias, acaba por alimentar a vida.

O coelhinho branquinho e a formiga rabiga», evidenciam-se valores de coragem e solidariedade numa história carregada de simbologia, onde os mais fortes e imodestos reagem cobardemente, surgindo inesperadamente a ajuda solidária da pequena e empenhada formiga que, com a razão e o coração do seu lado, enfrenta o perigo para salvar o coelho a quem a cabra cabrês roubara a casa. No texto «Cavalinho de pau» há uma intenção clara em alertar para a urgência de pôr fim a tiranias e a violências que repetidamente marcam a agenda da História. Sob o ponto de vista pedagógico, este texto tem a virtude de suscitar a reflexão em torno das questões da paz e do respeito pelos direitos humanos, matérias sobre as quais não deverão existir constrangimentos etários. Lê-se então: «Leva-me à Guerra de Tróia/ À Judeia, à Palestina/ À terra dos tiranos,/ Que nunca ninguém domina!» Curiosamente, este texto termina com uma interessante reflexão acerca do passar do tempo e das diferentes idades, acerca da capacidade que temos de nos batermos pelas causas que consideramos justas, pelos desafios que consideramos inadiáveis. Numa espécie  de crítica e desencanto Alexandre Parafita termina referindo «Corre, corre, cavalinho,/ Meu cavalinho de pau!...// E depressa, bem depressa,/ Antes que acabe a ilusão:/ Se hoje sou um sonhador,/ Amanhã serei ou não!».

3 – O terceiro ponto prende-se com a divulgação de um número extenso de quadros pertencentes à nossa cultura, alguns deles derivantes de histórias de tradição oral. O recurso às rimas e ao lúdico neste tipo de trabalhos torna a obra apetecível e apropriada ao universo a que se destina. São recriadas, com movimento e cor, situações de vida menos usuais nos dias que correm, mas que dão conta de um passado comum que enriquecerá o imaginário destas e das gerações vindouras. Na história da relação entre um rapaz e o seu pião, o autor demonstra o quanto a poesia para a infância está longe de ser apenas um conjunto de versos rimados entre si. Nesta obra, o que Alexandre Parafita oferece ao leitor é  poesia no seu sentido mais genuíno. Ao longo do texto «Era uma vez um pião», conseguimos sentir não só a descrição dessa brincadeira, de algum modo caída em desuso, mas também de todo um conjunto de emoções a ela subjacente, justificando assim a tradição que a manteve anos a fio no dia-a-dia de tantas crianças. Cenários protagonizados por animais do campo servem de mote a uma descrição interior de um espírito de equilíbrio e de contentamento do Homem para com a natureza. Mais uma vez, são tratadas as emoções, aquilo que é imperceptível aos olhos mas reconhecido pelo coração. O campo de que aqui se fala é o campo que poderia existir nos corações dos meninos da cidade. Poderá ser também o reforço do sonho e do elemento fantástico dos meninos do campo que nunca tiraram partido dele, desta forma. Mais uma vez, os livros a acrescentarem mundo ao mundo. A musicalidade destes textos é notável, abrindo com facilidade portas a que se possa recorrer à transformação dos poemas em verdadeiras canções podendo, sob outra forma, integrar actividades onde seja pertinente a apreensão dos temas tratados. No plano pedagógico, a riqueza da descrição destes textos torna-os um precioso elemento de trabalho para educadores e professores. Em «Balada do Pastorinho», por exemplo, é recriada com detalhe a pastorícia através de vocábulos que, embora em desuso, fazem parte do inesgotável património linguístico de que somos herdeiros. Em «Barquinho de papel» as possibilidades para o ensino da geografia e da multiculturalidade são inúmeras.

Em síntese, esta é uma obra que demonstra um cuidado notável ao nível da intenção autoral, associada às exigências próprias deste género literário. Valores, Fantasia e Cultura reunidos com a genuinidade que advém das tradições, sem se afastarem do tempo actual. Não são poemas de costas voltadas para o presente, são poemas onde se relembram e trazem para a actualidade as nossas raízes, de modo a que possamos marcar, sem pejo e com convicção, as diferentes culturas locais no processo de globalização em marcha. «A mala vazia» é pois um lugar cheio de memórias trazidas para alimentar o futuro, um futuro onde possamos manter um rosto, uma fala, onde possamos ouvir ainda com o coração as palavras dos que, antes de nós, projectaram parte do nosso sonho.

Pompeu Miguel Martins, em Poetas e Trovadores, Abril/Junho003

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