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Recensões

Branca flor, o Príncipe e o Demónio

de Alexandre Parafita (Asa, 2001)

É com muito gosto que venho apresentar aos ilustres participantes no Congresso, neste espaço distinto que é a Aula Magna da UTAD, o último título de autoria de um professor sobejamente conhecido em Trás-os-Montes, dado o especial empenho com que tem recolhido e estudado a riquíssima literatura popular da região. A sua tese de mestrado no domínio das ciências da comunicação mostra-nos alguém preocupado com o nosso património e com a sua preservação e transmissão às gerações futuras; note-se que parte significativa da literatura que tem publicado para crianças se centra fundamentalmente nos contos da tradição popular.

A obra que vamos hoje conhecer tem por título “Branca Flor, o Príncipe e o Demónio”; trata-se de uma recriação de um conto popular muito divulgado, presente na tradição oral de numerosas regiões do nosso país, cuja fixação por escrito se deve primeiramente a Adolfo Coelho a partir de uma versão recolhida na zona de Coimbra. Alexandre Parafita trabalhou o documento oral produzido pela informante Filomena Rodrigues, uma anciã de 63 anos, residente em Carviçais (Moncorvo). Registo a particularidade de apontar a sua origem oral imediatamente antes do texto, pois parece-me muito válida esta demarcação autoral relativamente ao contador que é, como todos sabemos, um intérprete pontual da tradição.

Que marcas de originalidade poderemos detectar neste texto que se afasta, em muitos momentos, da versão de Adolfo Coelho? Rogo-vos alguns minutos de atenção para podermos compreender o modo como se elaborou esta recriação.

Era uma vez... – a fórmula mágica de iniciação é preservada, garantindo-nos o in illo tempore indispensável à entrada no universo ficcional do conto tradicional. Logo nas primeiras linhas, introduz-se a figura do Diabo que aparece devido a uma simples nomeação, o que vai ao encontro da tradição que recomenda não pensar nele, quanto mais nomeá-lo; curiosamente, surge todo vestido de negro – mau augúrio, como é óbvio  – a caçar almas, sendo desta vez escolhida a menina de quem vai ser padrinho. Este é um primeiro afastamento do texto de Adolfo Coelho, dado que nele encontramos como pólo negativo, equivalente ao diabo, o rei, indivíduo desonesto e maquiavélico. Este distanciamento também e visível na personagem apresentada logo a seguir, a fada-madrinha; assumidamente substituta da mãe, o que contrasta com a entidade-mãe presente no texto do século XIX que, tendo os poderes de feiticeira, vai ser um factor de oposição à felicidade da menina. Esta fada vai conservar Branca Flor até aos doze anos, o tempo da infância preservado pela força protectora maravilhosa. A introdução contém, assim, as diferenças estruturais mais substantivas e originais que se verificam entre esta nova recriação e a versão de Adolfo Coelho.

Gostaria de sublinhar nesta apresentação certos elementos, presentes no texto em análise, que me parecem traduzir o facto de, ao longo do tempo, os contadores inculcarem, na história narrada, marcas sugestivas do imaginário popular e que Alexandre Parafita soube preservar e trabalhar com fina sensibilidade. Notemos, então, que o castelo do Diabo se chama Irás e não virás, o que mostra a irreversibilidade da queda no inferno, muito presente no imaginário colectivo da nossa cultura judaico-cristã; nesta linha se pode enquadrar o nome de Pedro, dado ao Príncipe, sempre associado à pedra e ao protagonismo. Ele vai superar os inúmeros obstáculos que lhe são colocados, com a ajuda decisiva de Branca Flor – o querer aliado ao poder mágico, que mais não é do que a eterna luta entre o Bern e o Mal. É de registar que o diabo aparece referido, de forma aparentemente redundante, como o diabo em pessoa, expressão frequente nos registos orais de numerosas situações coloquiais.

Branca Flor não manifesta inicialmente poderes mágicos, dispondo da informação necessária à superação das dificuldades; o saber equivale aqui ao poder, o que entronca na sabedoria popular. As duas primeiras provas são superadas com êxito, graças ao saber; as seguintes, porém, exigem muito mais, ou seja, vão implicar uma força mágica que aquela menina possui. É aqui notamos uma flagrante proximidade com a versão recolhida por Adolfo Coelho nas provas que o Diabo impõe a Dom Pedro – a sementeira e colheita impossíveis de realizar na brevidade de um dia, a recolha de um anel no fundo do mar, a gota de sangue como marca indelével. Esta proximidade vai manter-se na narrativa dos acontecimentos após o casamento, em que está em jogo a sobrevivência de ambos – vejam-se os casos do cavalo como meio de fuga, da horta e da igreja como cenários de disfarce.

A reso1ução do conto passa por uma solução na linha ex machina do teatro clássico: o aparecimento súbito da fada-madrinha. Curiosamente não recorre a nenhum meio só acessível a uma fada, mas a um mero estratagema da tradição popular para afastar o diabo – cruzes, feitas pelos talheres, exorcizam radicalmente o demónio, levando-o a estoirar (uma imagem bem popular da destruição do demónio). É, no fundo, a pacificação do leitor ao saber que o agressor desaparece para sempre. Alexandre Parafita escreve este texto para um público-leitor infantil e, por isso, trabalha este final de forma a ir ao encontro da satisfação que qualquer criança sente ao verificar que o mal é castigado e que o casamento (agora sem o perigo trazido pelos perseguidores), forma de reconhecer o triunfo do herói, é finalmente vivido. Contrastivamente, o final que conhecemos do texto recolhido por Adolfo Coelho é substancialmente diferente pois incide sobre a memória e o reconhecimento, elementos presentes em muitos outros contos populares, e que tem a virtude de alimentar a expectativa do receptor até ao alívio resultante do final feliz, traduzido no casamento do protagonista com Branca Flor.

Desta breve leitura comparativa, creio que a Constatação da existência de momentos de aproximação e afastamento nas duas versões nos mostra que a riqueza da cultura popular, expressa na narrativa maravilhosa, é algo que continua a surpreender-nos e a cativar a nossa atenção. Alexandre Parafita ouviu e soube preservar neste texto o encantamento de quem recebe, ressoando em todo o seu corpo as palavras do contador.

As ilustrações de Pedro Morais integram-se no corpo do texto, complementando-o, sem perturbarem a imensa força da narrativa; com traço seguro, capta alguns dos momentos mais significativos do conto e permite ao leitor breves momentos de pausa na recepção dos acontecimentos vividos pelo par protagonista. A capa apresenta-nos, num envolvimento central, a figura de Branca Flor, sozinha num cenário de profundidade, convidando o potencial leitor à entrada no território da imaginação.

Edições ASA continua a apostar numa das melhores colecções que foram publicadas em Portugal, a Colecção ASA Juvenil, coordenada, durante largos anos, pela grande escritora Ilse Losa. O livro, agora apresentado, da autoria de Alexandre Parafita, proporciona-nos uma sensível e diferente recriação do famoso conto popular português, agora com uma roupagem nova e cativante para os jovens leitores.

Rui Marques Veloso, em Pedagogias do Imaginário – Olhares sobre a Literatura Infantil, ASA, 2002

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