Letras & Letras

Recensões

Histórias de Natal contadas em verso

de Alexandre Parafita (Âncora Editora, 2000)

Contos, lendas ou outros tipos de narrativas e sobretudo rimas, são textos que têm como objectivo principal divertir todas as faixas etárias mas essencialmente crianças. Produzem ou excitam emoções, relaxam, libertam, maravilham e produzem o incomparável prazer da fruição do texto fictício, alimentando todas as fantasias. Acompanham o ritmo e a cadência de outras actividades, aligeiram o trabalho quando executadas paralelamente a fainas agrícolas ou domésticas e estruturam o jogo, nomeadamente o jogo infantil.

Mais directamente relacionado com o nosso trabalho de hoje, o texto poético é, em si, um jogo verbal susceptível de determinar e desenvolver um comportamento lúdico. Na realidade, o jogo pressupõe uma estrutura e um suporte ainda que meramente ideológico, tal uma linha traçada sobre o solo a separar os jogadores de dois campos adversos.

A persistência da tradição oral, mesmo em textos poéticos, verifica-se até nos países onde predomina uma poderosa literatura escrita com é o caso da Rússia. Escritores como Pouchkine, Tolstoï, ou Gogol beberam a sua inspiração no folclore. A velha ama de Pouchkine, Arina Rodionova e os camponeses de Tolstoï são tão célebres e disputam de tanta consideração como os seus confrades escritores. Na Rússia, não existe uma diferença fundamental, uma separação absoluta entre a literatura escrita e a literatura oral. No que diz respeito à literatura infantil, na sua maior parte é escrita em verso. Esta relação entre o escrito e o oral foi perpetuada pelos americanos que criaram, sob o impulso de Sara Cone Bryant, a hora do conto: o prazer de ouvir posto no mesmo plano que o prazer de ler. Ou seja, a tomada de consciência da importância do ritmo, condição essencial à poesia. A poesia para crianças tem que forçosamente ser linguagem ritmada, exigir a participação do ouvido para se tornar mais acessível a uma camada populacional de reduzido nível etário que uma literatura destinada apenas a ser lida. A prova evidente de tudo o que fica dito é o sucesso incontestável que matêm ainda hoje as fábulas de La Fontaine.

O conto tradicional possui uma estrutura rígida; pode essa estrutura tornar-se mais flexível através da poesia? A poesia actualiza o conto, tornando-o em certa medida um anticonto pois ao tempo mítico substitui-se um tempo vivido, fluido, imprevisível e este é o primeiro passo que o poeta dá na conquista da realidade.

Existem fortes laços entre a criança e a dimensão poética da linguagem, pelo que seria natural a sua apetência pela poesia e suas diversas manifestações constituindo assim, de certo modo, uma tautologia falar-se em sensibilização à poesia na idade infantil. Na realidade, os primeiros textos que surgem na vida de um ser humano enquanto ainda bébé são as rimas infantis, interpretadas por um adulto, tradicionalmente a mãe, cantando canções de embalar para acalmar, adormecer (cite-se, a propósito o texto do livro que aqui nos traz hoje, intitulado “O Menino Dorme...”), afastar os papões que povoam o mundo da infância, os medos ou as febres que mais não exigem que a segurança e o carinho maternos... Estes textos, fazem apelo aos sentidos e às emoções (a criança começa por apreender o mundo através dos sentidos) aspectos conseguidos através da sonoridade e do ritmo. A pouco e pouco, o pequeno ser vai-se apropriando dos sons, da voz, da fala e vai progressivamente construindo a sua gramática implícita, instrumento que regulará o domínio linguístico pela vida fora. A expressão rimas infantis recobre, como sabemos, toda uma série de outros termos: lengalengas, parlendas, adivinhas, trava-línguas, provérbios, canções de roda, rimas e jogos infantis, orações e orações jocosas, romances infantis, canções de embalar, anfiguris, rimas de fim de conto, etc., etc., etc. Esta dimensão com que a poesia aqui é abordada vem, talvez, a contrario da ideia que usualmente fazemos ou das palavras que revelam o conceito que temos da palavra poesia. A poesia é, quase exclusivamente, definida como expressão da sensibilidade e, consequentemente, concebida como uma linguagem de iniciados. Todavia, a poesia, na sua origem, constituía uma linguagem geral. Era verso tudo o que se pretendia guardar tal e qual na lembrança, o que significa que aquilo a que chamamos poesia não nasceu como prazer, mas sim como utensílio. Ainda hoje, em muitas regiões do globo, as línguas faladas não se escrevem e na maior parte dessas regiões (de que podemos citar a África Negra, os países do Magrebe ou certas repúblicas Sul-Americanas com uma grande percentagem de população índia como por exemplo a Bolívia) permanece uma forma de memória colectiva «falada», transmitida de boca em boca pelos contadores, cantores, feiticeiros, etc. É, por conseguinte, possível imaginar, com prudentes reservas, que, antes da escrita, o utensílio mnemotécnico constituído pela linguagem poética permitiu conservar e transmitir tudo o que assegura a perenidade de uma cultura. Talvez seja mais fácil compreender, neste momento que, de pela sua natureza, também se chega à poesia através de uma forma racional (a origem da palavra poesia encontra-se no verbo grego poiein que significa fazer). Na verdade, além de o poema resultar, entre outros factores, da inspiração, resulta ainda de um trabalho, de um labor poético sobre a língua e seria talvez essa faceta a mais destacada no que respeita ao trabalho sobre a poesia com crianças. A poesia é ritmo e rima e deve, nas palavras de Nelly Novaes Coelho, nascer de um “olhar inaugural”. Quem, coloca-se a questão, como as crianças, é capaz de descobrir, com simplicidade e verdade, a raiz das coisas, para revelá-las de uma outra maneira?

No presente contexto, esclareçamos um pouco mais a utilização do vocábulo poesia pela abrangência textual que geralmente assume. Estamos perante o livro “Histórias de Natal contadas em verso”, ou seja, perante um texto que reconta, recorrendo à rima, eventos alusivos à época natalícia e que deverá ser integrado no género narrativo, tendo em atenção as suas dominantes técnico-compositivas. Trata-se de um conjunto de poemas narrativos onde a linguagem poética se associa a imagens essenciais do nosso quotidiano cultural infantil nortenho como sejam o jogo do pião, a deslocação dos rebanhos fora do povoado, a figura do pastorinho, as personagens típicas ligadas às mais variadas actividades rurais tais a moleirinha, a costureirinha, o peliqueiro, o ferrador, o gaiteiro e as figuras emblemáticas do natal cristão com ênfase especial sobre o Menino Jesus e os três Reis do Oriente. Não faltam ainda a neve, a cabana e a estrela que guiou Maria e José na caminhada para Belém.

Ora, não é fácil estabelecer a fronteira entre prosa e poesia quando um texto narrativo é dito em verso e utiliza, consequentemente algumas das especificidades do discurso poético para crianças:

1– O enraizamento no quotidiano rural (Natal de um pastorinho: Pela serra acima / vai o pastorinho, / Leva o seu bornal  bem recheadinho! / Batendo os tamancos, / Lá vai p’la manhã, / Vestido de croça / E gorro de lã!...);

2 – A função lúdica (Natal de um palhacinho: Pela rua abaixo / Vai o plhacinho! / Onde é que ele irá tão / apressadinho? / De laço dourado, / Peruca amarela, / Olhinhos de prata, / Nariz de canela... Na mão a cartola / Da cor do lilás, / Mais as pantominas que só ele faz!);

3– O jogo com as palavras e a sua musicalidade, o som e o ritmo ( Textos “Minha Mãe, Uma Estrela”), etc., etc., etc.

Em sentido mais lato, teremos então que poesia para crianças será sobretudo aquela que elas lêem e lhes agrada como aconterá, certamente, com o livro que aqui nos traz hoje. Ou seja, citando Isabelle Jan, “a verdadeira poesia para crianças encontra-se quer nas obras-primas, quer nas robinsonadas que a nossos olhos de adultos se encontram já ultrapassadas; nas histórias de piratas e de índios, nos livros de imagens e até na banda desenhada. Não estará, certamente, nalguns dos poemas que lhes são propostos e impostos.” Estaremos então, para utilizar a terminologia de Juan Cervera, perante o grupo de poesia para crianças a que poderíamos apelidar de narrativa, dado incidir preferencialmente nos factos e na acção, conduzindo por essa razão a um maior dinamismo e objectividae, sem no entanto nos encontrarmos perante a ausência completa do elemento lírico? Recordemos, a este propósito, que a poesia é emoção de quem escreve e de quem lê.

Debruçando-nos um pouco mais sobre as histórias-poemas alusivas à quadra natalícia do livro de Alexandre Parafita, podemos constatar que, no plano temático, os elementos colhidos no real incidem essencialmente sobre:

1 – A natureza (basta ler a introdução do teatrinho de Natal onde deparamos com uma aldeia, branquinha de neve e maravilhada com a boa nova do nascimento do Menino);

2 – A presença animal ( da qual se destaca o nascimento do cordeirinho);

3 – A criança e o adulto (Menino – Olhem que eu sou pequenino, / Não me deixem cá ficar! / Levem-me a ver o Menino / Para ter com quem brincar! Lenhador – Deixai-me ir também a mim. / Eu cá sou o lenhador. / Vou acender-lhe a fogueira / P’ra que tenha mais calor.).

4 – As questões sociais (Texto: “Natal de um menino de rua” e o “Natal do Gaiteiro”).

5 – Os já focados temas alusivos à quadra natalícia, tão do agrado das crianças (“Loas ao Menino” e “Os Três Reis do Oriente”).

Em termos formais, a meio do livro deparamos com um Teatrinho de Natal (para salientar a importância deste facto, relembremos que a maior parte da literatura destinada a crianças pertence aos géneros narrativo e dramático e o quanto as mesmas aderem à dramatização em contexto de aula); a meio do livro, dizíamos, deparamo-nos com um Teatrinho de Natal intitulado: “À Procura de uma Estrela”, concebido para ser representado em qualquer sala de aula, em qualquer biblioteca ou noutro palco qualquer. É uma história onde um grupo de personagens (um pastor, uma moleirinha, uma costureira, um peliqueiro, um lenhador, uma vendedeira de fruta, uma florista, um vendedor ambulante, uma lavadeira, um ferrador, um palhaço, um menino e um pobre da rua para além do narrador) parte para visitar o Menino e lhe levar o que cada um de melhor tem após a notícia desse nascimento especial. “E lá foram”, nas palavras do narrador. “O caminho? Está bom de ver que o encontraram. O ideal que os havia juntado iluminou-lhes os passos. Nele descobriram, afinal, a tal estrelinha: a mesma que conduziu os Reis Magos a Belém”.

Os restantes contos são narrados em poemas mais ou menos longos de acordo com o enredo da história, recorrendo o autor à quadra e à quintilha, encontrando-se mais raramente estrofes de 6 ou 7 versos, ou seja, existe de facto e de acordo com o espírito do texto, uma aproximação à forma poética popular mais tradicional (a quadra). No que respeita à métrica, temos versos de redondilha maior e menor com excepção do último poema que fecha o livro de forma exemplar. Trata-se de uma história de Natal “Natal na Capelinha!” que cabe num soneto decassilábico e à qual Miguel Torga tinha anteriormente dado a forma de conto e o título “Natal”. Aliás, a inscrição destas “Histórias de Natal contadas em verso” na tradição nortenha vem no seguimento de outras obras publicadas pelo autor e no seguimento do trabalho de pesquisa e estudo científico sobre os contos populares da tradição transmontano-duriense que desenvolve na qualidade de investigador de literatura oral tradicional do Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa. Essa linha de trabalho é corroborada nomeadamente nas notas de roda-pé dos contos em verso “Alta vai a Lua” e “Os três Reis do Oriente” onde pode ler-se “Adaptado da tradição oral transmontana.” Nos aspectos lexicais, salientemos a tendência para a concreção através do uso de nomes concretos e de verbos de acção e o uso do diminutivo, onde o texto ganha uma boa parte da dimensão afectiva que se coaduna com esta época festiva.

Estamos, pois, perante aquilo a que poderíamos apelidar de reinvenção da tradição, isto é, a escrita de versões próximas de textos tradicionais existentes como já tinha acontecido com outro livro do mesmo autor, intitulado “A Lenda da Princesa Marroquina”. O que nos permite concluir que a reescrita de contos em verso, que pertencem ou pertenceram à tradição oral, constitui um modo de transmissão original e com grande receptividade por parte do público infantil. Através do filtro da memória reconstrói-se uma nova história, cem vezes contada, cem vezes ouvida, mas que lemos sempre e ouvimos sempre como se fora pela primeira vez...

Altina Fernandes, em A Voz do Olhar, Instituto Piaget, Janeiro de 2001

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