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Recensões

Diabos, Diabritos e outros Mafarricos

de Alexandre Parafita (Texto Editora, 2003)

Quem nunca leu (ou ouviu contar) histórias de “duendes”? Certamente que todos os reconhecem como aquelas figurinhas astutas e buliçosas que a literatura infantil e, ultimamente, o cinema, através da saga do “Senhor dos Anéis”, foram buscar à mitologia dos países nórdicos e difundiram, massivamente, um pouco por todo o mundo.

O que muitos não saberão é que, também nas montanhas do Norte de Portugal e especialmente na Região de Trás-os-Montes, existe, ainda hoje, na memória oral dos mais idosos uma raça de figurinhas míticas, semelhante aos “duendes”, que o povo identifica como “trasgos”. São seres fantásticos, rebeldes, de pequena estatura, usam gorro vermelho e são dotados de poderes sobrenaturais.

O escritor e investigador de literatura oral tradicional Alexandre Parafita, que há anos faz pesquisas sobre mitologia popular, tendo já publicado neste domínio interessantes trabalhos, acaba de lançar uma curiosa obra para a infância, intitulada “Diabos, diabritos e outros mafarricos”, onde os “trasgos” estão presentes com todo o seu mistério e rebeldia. Apresentado pela “Texto Editora”, na sua colecção “Contos e Lendas de Tradição Oral”, o livro contém histórias tão sugestivas como “O diabo e o lavrador”, “O diabo e os garotos”, “Um corvo na igreja”, “O diabo e as amêndoas”, “O menino e o espirro”, “O diabo, a menina e a ponte”, “A velha e o trasgo”, “O moleiro e o trasgo” e “O menino de vermelho”, entre outras.

E o que é, afinal, o “trasgo” na memória oral transmontana? O escritor di-lo nesta obra (pág. 24): é uma figurinha rebelde que aparece “a fazer judiarias às pessoas, partindo louça, arrastando os móveis, atirando pedras aos vidros, espalhando a cinza, despejando os sacos das nozes...” E diz também que, segundo as antigas crenças religiosas, são pequenas “almas penadas”, isto é, “meninos que morreram sem serem baptizados e cujo ‘espírito’ regressa depois às casas onde viveram, ou então para junto de antigos familiares” e que ninguém os pode levar a mal “pois, tendo morrido enquanto crianças, também não têm culpa por não terem sido baptizados”.

 Assim acontece, por exemplo, no concelho de Vimioso, onde existem as ruínas do chamado “moinho dos trasgos” (pág. 26), que foi abandonado pelo seu moleiro por não poder suportar as travessuras de um que com ele partilhou o mesmo habitáculo. Curiosa é também a postura de um desses “duendes” referenciada no concelho de Vinhais (pág. 30), onde uma velhota se queixava de que todas as noites era incomodada por ruídos de bancos a arrastar de um lado para o outro em sua casa. Resolveu por isso procurar outra casa para se mudar. E quando estava nas mudanças, a carregar as louças, móveis e outros haveres, encontrou no percurso entre as duas casas um menino de vermelho com um banco às costas. A velhota, muito admirada, perguntou-lhe: “– Olha lá, esse banco é meu! Para onde vais com ele?” E o rapaz, também admirado, exclamou: “– Então não estamos a mudar de casa?”

 Estas e muitas outras histórias são praticamente desconhecidas nas sociedades modernas – ao contrário do que sucede com os “duendes”, “elfos” ou “gnomos” das florestas e montanhas de Inglaterra e Noruega – porque a sobrevivência dos “trasgos”, especialmente em Portugal, está circunscrita à cultura popular oral, subalternizada e desprestigiada nos dias de hoje.

Fez bem Alexandre Parafita ao avivar-nos a memória, refrescando-a com estas histórias que, embora se dirijam aos mais novos, vão de encontro à matriz de um imaginário que nos identifica a todos.

Armindo Mesquita, em Poetas e Trovadores, Julho/Setembro de 2003

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