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Recensões

A Comunicação e a Literatura Popular de Alexandre Parafita

Plátano, 1999, 160 págs

Como todas as coisas sujeitas às peripécias e necessidades do tempo e do lugar, também os conteúdos dinâmicos da memória social e dos saberes colectivos – sobretudo quando se transmitem por via oral – se alteram ou acabam por se ver relegados ao desuso e esquecimento. Contudo, é sabido que nas sociedades tradicionais, nomeadamente camponesas (como é o caso da sociedade rural transmontana), a transmissão tradicional do saber passa pela oralidade, que assim se constitui não apenas como veículo privilegiado de identidade, comunicação e reprodução sociais mas também como meio de desenvolvimento humano e de construção de uma dada imagem do mundo, em nada inferiores, sabe-se hoje, aos das sociedades da escrita, embora estas disponham de um sofisticado e hegemónico arsenal de suportes de produção e comunicação.

Neste contexto, porém, a oralidade enquanto tal, como meio predominante de criação e transmissão do saber, está por certo condenada a desempenhar um papel cada vez menor, tanto mais que tende a ser considerada pela cultura dominante – a elite letrada urbana – como vestígio residual, apanágio ancestral dos iletrados ou marca de uma inferioridade sociocultural. Entram nesta categoria contos, lendas, mitos, lengalengas, provérbios, orações, cantigas e romances, que constituem o «corpus» ainda vivo, embora ameaçado e até mesmo em completa via de extinção, da «literatura popular de tradição oral», um conceito integrador e esclarecedor cuja importância Alexandre Parafita (docente de Comunicação, investigador, jornalista e escritor de obras infanto-juvenis) defende neste estudo a propósito do que ainda subsiste e que se torna urgente preservar na cultura oral de Trás-os-Montes e Alto Douro. Quanto mais não seja porque, como sublinha Paul Connerton, citado no prefácio por Donizete Rodrigues, «a oralidade é a possibilidade de salvar do silêncio a história e a cultura dos grupos subordinados».

O livro de Parafita não se limita, pois, a relatar em segunda mão. Fala de experiência no terreno, contextua1iza o produtor ainda vivo da literatura popular de tradição oral de Trás-os-Montes e Alto Douro, assim como as suas produções, um legado cultural, prenhe de significado e inquietação, que se transmite de geração em geração: «É lavrador, pastor e artesão. Nas horas vagas é filosofo e poeta e, o entardecer da vida, contador de histórias. Histórias de vida, quase sempre; e, quase sempre também, de proveito e exemplo. Histórias que transmite aos netos, e, com elas, fá-los herdeiros da sabedoria ancestral de que é fiel depositário.»

Nesta medida, a obra de Parafita assume os contornos de uma vasta operação de resgate dos meios de transmissão intergeracional da tradição popular, especialmente da sua literatura oral, contribuindo deste modo para demonstrar a eficácia e a força comunicativa da literatura popular e para a (re)definir como objecto pertinente de estudo. Diz o autor: «O objectivo fundamental deste trabalho é, justamente, tentar contribuir para um reforço da cientificidade da interpretação da literatura popular como veículo de comunicação. (...) A opção por esta região (Trás-os-Montes e Alto Douro) prende-se com a circunstância de se tratar de um espaço particularmente rico neste género de literatura e, apesar disso, continuarem a faltar os estudos sobre ela, uma vez que o conhecimento que existe se esgota em alguns levantamentos de pendor especialmente etnográfico.»

O plano da obra desdobra-se em seis capítulos recheados de ponderada informação (que traduz uma consulta bibliográfica exaustiva), obviamente incontornável para quem deseje entrar no mundo da literatura popular de tradição oral com um método de trabalho fiável. Não surpreende, pois, que os capítulos se estendam a questões fulcrais, tais como: a arte popular como estética de vida e prática social; identificação e caracterização da literatura popular de tradição oral; a região como factor de criação e permanência dessa «arte da memória» que é a literatura popular; caracterização dos géneros desta produção literária dos meios rurais (com particular incidência no conto e na lenda, de que são dados dois textos, considerados paradigmáticos pelo autor); por fim, são equacionadas a vocação e as virtualidades da comunicação oral numa perspectiva de relacionamento com todo o sistema semiótico deste tipo de literatura.

Enfim, um estudo de referência, dada a sua importância para os professores, alunos e outros interessados em ciências da comunicação, literaturas. linguística, semiologia, antropologia cultural e outras disciplinas que com estas façam fronteira.

VÍTOR QUELHAS (in “Expresso”, 26/7/1999)


O Maravilhoso Popular – Lendas, Contos Mitos de Alexandre Parafita

Plátano, 2000, 192 págs.

Se o primeiro livro de Alexandre Parafita – A Comunicação e a Literatura Popular (Plátano, 1999) – surpreendeu, esta sua nova obra, consagrada ao maravilhoso e ao fantástico que povoam o imaginário rural de Trás-os-Montes e Alto Douro, veio confirmar a qualidade do seu trabalho de campo relativamente à recolha e ao estudo da literatura oral popular. Dada a erosão acelerada e incontornável de tal tradição, trabalhos (que malfadadamente não são assim tantos) como os de Alexandre Parafita, jornalista, autor de literatura infantil-juvenil e docente do ensino superior, respondem à extrema urgência de fixar a natureza cada vez mais volátil deste património por todas as razões inestimável.

Quem teve o bom fado de escutar junto da lareira, quando criança ou mesmo na idade adu1ta (ou tiver ainda o condão de se deixar seduzir por um mito, uma lenda ou um conto de tradição ora1), algumas das narrativas do maravilhoso popular transmontano ou das suas variantes reportadas por Parafita não deixará de nelas reencontrar ecos desse deslumbramento e prazer, pois de puro prazer se trata. Se o leitor for professor, educador ou mesmo investigador de uma disciplina que tenha como objecto de estudo este universo narrativo prenhe de ancestra1idades, ambiguidades e fronteiras subtis, não deixará por certo de encontrar nesta obra abundante material de trabalho.

Alexandre Parafita desdobra perante o leitor uma galeria de personagens literário-orais, algumas já habituais outras de espécie menos comum, que são: a alma penada, a bruxa, a diabo, a fada, a lobisomem, a morte, a moura encantada, o o1harapo e o trasgo. são os «nove seres sobrenaturais» (na ordem estabelecida pelo autor), corno refere João David Pinto-Correia (professor da Faculdade de Letras de Lisboa), no prefácio, e que das narrativas e deles diz: «(...) revelam poderes inatingíveis pelos humanos, matizam-se com dádivas e ameaças, com terrores e vinganças, mas igualmente com brincadeiras e brejeirices.» Por outro lado, Parafita, ao tecer considerações sobre o rnaravi1hoso popular e as suas funções, diz deles também: «A superstição e a crença nestes seres, que em muitos casos o homem rural aceita sem reservas, tem contribuído para a preservação, no seu próprio ‘habitat’ de uma literatura oral caracteristicamente transmontana.» Prosseguindo: «A região, pelo isolamento das suas comunidades rurais, pelas características da sua paisagem e ambientes nocturnos de medo e soturnidade, tem favorecido, de resto, essa preservação, criando cenários que permitem os equívocos entre o real e o fantástico.»

Porém, nem tudo no imaginário popular foi ou é redutível a pura fantasia, a superstição ou a hitória moral exemplar. Depois dos estudos da psicologia analítica sobre o inconsciente e a sincronicidade e dos contributos da psicologia transpessoal sobre a amplitude do campo da consciência e das percepções, poder-se-ia afirmar que muitos dos conteúdos das narrativas populares de tradição oral correspondem, pelo menos na origem da sua transmissão, a experiências arquetípicas subjectivamente autênticas. Ou seja, foram vivenciadas, não sem inquietação ou deleite, como extensão dos limites convencionais da realidade e, portanto, como experiências individuais ou colectivas psicologicamente significativas, sendo em seguida revestidas com as roupagens apaziguadoras e socia1mente admissíveis do mito, da lenda e do conto. Nesta medida, a recolha e o estudo de Parafita, sem o querer, pois o seu objectivo é outro, constitui também um contributo importante para melhor se entenderem os mecanismos psicológicos e transpsicológicos envolvidos na elaboração do «inexplicáve1», do «feérico» e do «sobrenatural» na tradição oral popular. E de referir, ainda, pois seria injusto não o fazer, a excelente qualidade gráfica das ilustrações de Manuel Trovisco, que no seu estilo «naïf», constituem um poderoso suporte imagético às narrativas do maravilhoso que o livro dá a conhecer.

VÍTOR QUELHAS (in “Expresso”, 8/7/2000)


Antologia de Contos Populares – Volumes I e II de Alexandre Parafita

A memória ancestral dos povos, pela via dos contos populares de tradição oral, é um suporte altamente volátil. Confrontada hoje com a supremacia imperial dos “media”, esta delicada memória, se não fosse entretanto fixada em suportes mais duradouros, como a escrita, perder-se-ia irremediavelmente e com ela uma parte importante da consciência colectiva e até da nossa consciência enquanto indivíduos. Parafita é um dos estudiosos, entre os poucos que em Portugal se dedicam a esta árdua tarefa, que se tem batido pela integridade deste género narrativo (é proposta dele designá-lo, dignificando-o, por “Literatura popular de tradição oral”) ainda considerado por muitos como subliteratura, portanto prescindível. O que e r um conto popular? De resposta aparentemente simples, a questão é, contudo, complexa. Na sua Antologia de Contos Populares em dois volumes (o último saído em fins de 2002), A. Parafita procura uma rigorosa e (quase) exaustiva definição de conto popular – entre outros géneros de conto –, prosseguindo uma demanda, agora cem instrumentos mais incisivos de análise, de que foram pioneiros Adolfo Coelho e Teófilo Braga. Além da excelente introdução («Achegas para um Estudo dos Contos Populares»).a antologia contém variado reportório de narrativas que se dividem tematicamente em contos religiosos, contos novelescos, contos de fadas ou do maravilhoso e contos do ogre, também conhecido por demónio estúpido. O posfácio de Ana Paula Guimarães é de leitura obrigatória. Indispensáveis são também, para quem se interesse pelo destino do conto popular português, outras obras do autor – A Comunicação e a Literatura Popular e O Maravilho Popular -Lendas, Contos. Mitos.

Vítor Quelhas, em Expresso, 1 de Março 2003

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