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Recensões

Antologia de Contos Populares (Vol.1) de Alexandre Parafita

(Plátano Editora, 2001)

Na linha de trabalhos anteriores (“A Comunicação e a Literatura Popular” e “O Maravilhoso Popular”), Alexandre Parafita acaba de publicar o primeiro volume de uma obra que poderá impor-se pelo seu pioneirismo no panorama do que se tem publicado  em Portugal sobre Literatura Popular de Tradição Oral. Trata-se da obra “Antologia de Contos Populares”, cujo 1º Volume apresenta como sub-título “Contos Religiosos, Contos Novelescos, Contos de Fadas e Contos do Demónio Estúpido”, e tem a chancela da Plátano Editora, que a inclui na colecção “Tesouros da Memória”.

Na verdade esta obra introduz uma prática que não é frequente ver aplicada em publicações de literatura oral tradicional, pelo menos em Portugal. Os contos populares (90 ao todo) aparecem munidos, todos eles, da respectiva contextualização sociológica, ficando o leitor a saber: quem conta (nome e idade do/a informante), onde conta (aldeia/vila, concelho), quando conta (ano da recolha), para além de incluir as notas respectivas sobre o ambiente etnográfico reproduzido nos contos.

Numa época em que os processos de massificação conduzem à degradação das identidades culturais, perdendo-se a genuinidade de muitos bens, sobretudo quando respeitam à memória oral dos povos, uma obra concebida e apresentada desta forma torna-se fundamental. Isto porque bem sabemos como vão circulando por aí os contos e as lendas sem que se saiba, em muitos casos, qual a sua origem (alentejanos, beirões, minhotos?). São contos de levar e trazer, acrescentados aqui, miscigenados ali, que pouco ou nada servem para um estudo futuro.

Alexandre Parafita, valendo-se da sua ascensão académica e científica (é doutorando da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e investigador de literatura oral tradicional do Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa), inclui ainda nesta obra um estudo preliminar sobre os contos populares, onde faz uma delimitação dos géneros narrativos da literatura popular, define o género conto popular e faz ainda uma análise sobre a estática, a estética e a ética dos contos, bem como sobre a sua multidisciplinaridade. Ao mesmo tempo reflecte, muito oportunamente, sobre o modelo classificatório de Aarne e Thompson, aproveitando a sua aplicação aos quatro grandes grupos que vão compor os vários volumes desta Antologia: 1º Volume – Contos Propriamente Ditos (contos religiosos, contos novelescos, contos de fadas e contos do demónio estúpido); 2º Volume – Contos Chistosos e Divertidos; 3º Volume – Contos de Animais e Contos de Fórmula.

Este trabalho é servido ainda de um posfácio de Ana Paula Guimarães (Professora da Universidade Nova de Lisboa e Directora do Instituto de Estudos de Literatura tradicional), que reconhece bem a importância do conto popular, contado e recontado, como forma de preservação e valorização da cultura rural, mas também de um bem estar físico e moral de quem conta e de quem ouve. Esta Antologia é, para A.P.G, uma partitura, um pretexto para resgatar alguns textos dessa extinção que a tantos assusta.

Em síntese, este livro de Alexandre Parafita propõe-se “consagrar os conteúdos da memória de um povo como parte significativa do seu património cultural”. Saiba agora a nossa sociedade, moderna dizem, aproveitar as pistas que esta Antologia oferece.

Armindo Mesquita, Jornal de Letras, 9/1/2002


Apresentação da Antologia de Contos Populares

Conheci Alexandre Parafita numa relação de professor/aluno, no longínquo ano lectivo de 1975/76 – um ano aliás bem difícil, perturbado por todas as paixões políticas. Eu leccionava então na Escola do Magistério Primário de Vila Real, e ele estudava na mesma esco1a.

Mas já então se notava que Alexandre Parafita não estava destinado a passar o resto dos dias a ensinar o B-A-BA a meninos – destino que tanto pode ser o mais gratificante de todos os destinos, como o mais frustrante, dependendo primeiro que tudo da disposição íntima de cada qual.

À margem do curso ia-se dedicando um pouco à política (creio não estar a ser indiscreto; de resto, quem não tinha alguma actividade política em 1975?) e sobretudo ao jornalismo, chegando a ser por essa a1tura e nos anos seguintes joma1ista profissional sucessivamente de dois diários do Porto. A esta actividade jornalística deu mais tarde sequência natural, ao licenciar-se em Jornalismo Internacional pela Escola Superior de Jornalismo do Porto e, mais tarde ainda, ao fazer um Curso de Pós- Graduação em Direito da Comunicação na Universidade de Coimbra.

Mas ainda à margem do currículo do Magistério Primário ia-se dedicando a uma terceira actividade, que aliás foi a que veio a prevalecer sobre todas as outras: a escrita. Escusado dizer que as suas melhores notas eram a português – precisamente a minha cadeira, mas devo reconhecer que o mérito era dele, não meu.

Iniciou-se pois por essa altura um percurso literário que, à semelhança do que é corrente entre os escritores portugueses, começou pela poesia. Ah, Trás-os-Montes! foi o livro de estreia. Anunciava já (até no próprio título) algo que viria a ser recorrente, quase exclusivo, para não dizer mesmo obsessivo, na obra hoje diversificada de Alexandre Parafita: a atenção à realidade transmontana e alto-duriense. Aos 18 ou 20 anos, aborda essa realidade pela via da poesia lírica. Mas outras abordagens estavam para vir, como veremos.

Saúde-se desde já esse pendor. Trás-os-Montes, como matéria-prima literária e antropológica, bem merece e precisa que lhe seja dada voz através da voz dos seus escritores.

Alexandre Parafita publicou depois diversos outros trabalhos, ainda e sempre, ou quase sempre, sem perder de vista Trás-os-Montes. O leque dos géneros começa a abrir-se. Continua a publicar trabalhos em poesia, mas também em conto (como a colectânea Retalhos deste Povo, título também por si só significativo) e em crónica e ensaio jornalístico.

Então, já na década de 90 do século passado, descobriu subitamente uma nova vocação, também esta ligada, como veremos, à província natal. Essa nova vocação, a que se dedicou com afinco e assiduidade, é a de escritor para a infância.

Neste género, publica sucessivamente Uma Andorinha no Alpendre; A Lenda _da Princesa Marroquina; O Segredo do Vale das Fontes (que aliás também me tocou a mim apresentar, em 1996); Chovia Ouro no Bosque; A Princesinha dos Bordados de Ouro; O Ultimo Gaiteiro; As Aventuras de Rick e Rock (este em co-autoria); Historias de Natal Contadas em Verso e As Três Touquinhas Brancas.

De que modo está esta produção em literatura infantil ligada à realidade trasmontana ?

As histórias que Alexandre Parafita conta às crianças não são, evidentemente, uma simples restituição de histórias que ele próprio ouviu contar a seus pais e avós. Não, são histórias que ele inventa, constrói e conta com mestria.

Mas é impossível deixar de notar que ecoa nelas a antiga arte de contar do povo transmontano. Não é por acaso que este livro que hoje se apresenta vem dedicado à memória de seu Pai e Avós – aqueles a quem, cumprindo o ciclo eterno das gerações, pertenceu inocular-lhe, pelo exemplo, o gosto de contar. E também não é por acaso que adivinhamos que alguns dos seus heróis de palmo e meio são decalcados da sua própria experiência de menino nascido e criado no mundo rural. O menino cujo historial de convívio com a natureza se lê no conto "O Pote de Ouro", por exemplo:

Menino de palmo e meio, ali vivi rodeado de paisagens de flores, de belas árvores, de mantos de searas e dourados vinhedos. Convivia a todo o tempo com a natureza, e, quando não, dormia no seu regaço. Ouvia cantarolar os riachos à minha beira, acordava ao som de mil chilreios, jogava às escondidas com as lebres no monte, via passar as águias e as cegonhas à distância de um assobio, os melros faziam ninho nas aradeiras da minha porta e havia sempre ninhos de chapins e pintarroxos num marmeleiro que crescia atado por uma guita à janela do meu quarto. A caminho da escola, coaxavam-me as rãs nas regueiras, os grilos trilavam nos lameiros, os cucos e as poupas desafiavam-me do alto dos negrilhos e à minha passagem vinham sempre cumprimentar-me sardões e lagartixas que, timidamente, espreitavam nas fendas dos muros.

Permiti-me fazer esta longa citação, porque me parece vir a propósito do que quero demonstrar. Reparar-se-á na cumplicidade da vida animal com o pequeno herói (jogava às escondidas com as lebres... coaxavam-me as rãs... os cucos e as poupas desafiavam-me... vinham sempre cumprimentar-me sardões e lagartixas...). Esta cumplicidade aproxima-nos da visão cosmogónica do povo, em que é perceptível um como que sincretismo primordial entre gente, bichos e natureza. Os contos de Alexandre Parafita são assim como que uma derivação genética dos contos autenticamente populares, embora naturalmente carregada de sinais de literariedade e outros, atribuíveis à idiossincrasia do Autor e do seu tempo.

Reparar-se-á também que o texto que citei é, à sua maneira, uma evocação saudosa, quase um hino de amor à terra e à infância – digamos, com propositada ambiguidade, a terra encantada da infância.

Esse amor e este engodo pelas histórias populares, presentes nas histórias infantis de Alexandre Parafita, acabaram por ter uma consequência importante na actividade de Alexandre Parafita. Criaram nele o gosto já não apenas afectivo, de quem pratica e frui, mas intelectual, de quem observa e interroga, por aquilo a que ele, num trabalho de 1999, intitulado A Comunicação e a Literatura Popular, chama "literatura popular de tradição oral". Ou seja, o vasto conjunto de textos produzidos pelo povo e que são por ele, povo, transmitidos da maneira que sabe: de viva voz. Contos, lendas, mitos, quadras, rimances, provérbios, lengalengas, orações, fórmulas mágicas, etc.

Alexandre Parafita tem-se dedicado a recolher essa Literatura, e em especial aquilo a que eu gosto de chamar etnoficção, com tudo o que o termo tenha de arbitrário e inexacto: ou seja, os contos populares. É um trabalho paciente, moroso, difícil, para etnógrafos e etnólogos, na esteira do que fizeram antes dele Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira, José Viale Moutinho e também, noutro plano epistemológico e até talvez noutro plano ético, tantos estudiosos da estirpe de Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal), do Abade Tavares, de Firmino Martins, de Joaquim Manuel Rebelo, de Hirondino Femandes, de António Lourenço Fontes, etc, etc.

Esta tarefa da recolha de textos é, por si própria, urna actividade meritória, uma espécie de trabalho de caboucagem e um contributo essencial para o melhor conhecimento da matriz cultural popular. Mas para muitos desses recolectores – e felizmente que assim é – é um trabalho que não se esgota em si próprio. Digamos que é apenas o primeiro passo, a obtenção de um corpus de matéria-prima. Depois de recolher e inventariar, há muitíssimo mais a fazer: há que analisar, comparar, sistematizar, descobrir padrões, eventualmente formular leis (mesmo sabendo quanto é arriscado formular leis fora do âmbito das ciências exactas...).

É este o caso de Alexandre Parafita. Ele não se limita ao trabalho de campo, a ouvir da boca dos velhos contadores de histórias, perdidos nos refegos da ruralidade transmontana e alto duriense, as velhas contas, nem a transcrever/transmitir aquilo que ouve. Ele estuda o fenómeno da literatura popular de tradição oral, aproveitando as formulações dos cientistas da especialidade, nomeadamente quanto à difícil e de modo algum pacífica classificação do conto popular. Tornou-se investigador do Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa. No doutoramento que actualmente prepara em Cultura Portuguesa, certamente estarão na primeira linha das suas preocupações estes testemunhos da riquíssima tradição oral portuguesa. Esta sua actividade é conhecida e apreciada nos meios ligados ao estudo da cultura popular. Vítor Quelhas, numa recensão à sua obra acima citada, A Comunicação e a Literatura Popular, publicada no prestigioso semanário "Expresso", afirma que a obra de Alexandre Parafita assume os contornos de uma vasta operação de resgate dos meios de transmissão intergeracional da tradição popular, especialmente na sua literatura oral, contribuindo deste modo para demonstrar a eficácia e a força comunicativa da literatura popular e para a (re)definir como objecto pertinente de estudo.

Este passo é todo ele significativo, mas registo dois momentos que me parecem especialmente importantes: uma vasta operação de resgate e para a (re)definir como objecto pertinente de estudo. E importantes porque fazem justiça ao labor de Alexandre Parafita. É um pouco o reconhecimento desta revalorização, desta luta pela conquista (ou reconquista?) de um estatuto para a literatura popular, desta sua recondução à dignidade original que Alexandre Parafita tem empreendido, desde a publicação de A Comunicação e a Literatura Popular para cá. É assim que em 2000 publica uma obra que de algum modo anuncia a que hoje apresentamos. Chamava-se O Maravilhoso Popular – Lendas. Contos. Mitos e, tal como esta de hoje, reúne as duas valências: a recolha e o estudo.

Dá-nos agora, cerca de um ano depois, o primeiro volume de uma Antologia de Contos Populares. De facto, trata-se de uma antologia, mas não apenas disso. Nele o Autor apresenta uma generosa colheita de contos: religiosos, novelescos, de fadas e do demónio estúpido. Em volumes futuros, já anunciados e aguardados com expectativa, apresentará contos jocosos e divertidos, contos de animais e contos de fórmula.

Este primeiro volume recolhe 90 contos, dos quais a grande maioria são contos de fadas ou do maravilhoso. Mas – tão importante como isso – Alexandre Parafita faz uma extensa introdução, a que chama "Achegas para um estudo dos contos populares", destinada a dar ao leitor comum as coordenadas fundamentais para se movimentar no mundo do conto popular.

Aí se refere, logo a abrir, aquilo a que o autor chama ''as reticências da literatura", querendo significar o estatuto de menoridade que às vezes a chamada literatura institucionalizada atribui à literatura popular. A simples alusão a este facto é eticamente óbvia: Alexandre Parafita está ao lado da literatura popular (sem que isso signifique estar contra a literatura "institucionalizada") e exprime desse modo a sua revolta perante o aviltamento a que aquela é por vezes sujeita.

Tenta a seguir a definição (difícil) de conto popular, aborda a sua estática, estética e ética, e propõe uma classificação (já não apenas difícil, mas dificílima e geradora de polémica e discordâncias entre os especialistas), acabando por adoptar a classificação de Aarne e Thompson (filólogos da chamada escola finlandesa), segundo a qual estrutura a sua obra.

E serve-nos depois a iguaria maior, isto é, os próprios contos, saborosíssimos, irónicos, maliciosos, satíricos, piedosos, edificantes, etc, etc, munidos das notas de contextualização sociológica e linguística que o autor achou indispensável fornecer.

Numa nota de pé-de-página, já no final da introdução, Alexandre Parafita escreve estas sombrias palavras de aviso:

Convém aqui anotar que muitos destes narradores [os seus informadores] talvez venham a ser já os últimos intérpretes da mui valiosa literatura oral transmontana. Aliás, alguns deles faleceram pouco tempo depois de nos confiarem os seus contos. Os meios rurais já não têm juventude, e são hoje habitados quase exclusivamente por pessoas muito idosas. O tempo dos fiandeiros, em que os novos fiavam o linho e os velhos desfiavam as memórias, já desapareceu. Por isso, com muita tristeza nossa, os contos populares desta Antologia, grande parte da qual foi reunida nesta transição do milénio, podem muito bem ser; definitivamente, a última colheita.

Há talvez um pessimismo um nadinha exagerado nesta nota. Mas o perigo  real. O tempo em que se fiava o linho e se desfiavam memórias já lá vai. Como também já lá vão os serões familiares à lareira e os adjuntos das noites de verão no largo da aldeia, que favoreciam a interacção entre pelo manos três gerações: avós, pais e filhos. Quer dizer, em suma, que já lá vai o ambiente natural em que nasceu, se desenvolveu e prosperou a literatura popular.

E por isso não podemos deixar de pensar que é urgente que se prossiga este trabalho enquanto há trabalho a prosseguir. Alexandre Parafita é credor da nossa gratidão por um tão valioso contributo para a salvaguarda e estudo da cultura popular transmontana. Caso para lhe dizer: ainda bem que esteve lá; procure estar por lá mais vezes. E dê-nos conta daquilo que apurar.

A. M. Pires Cabral, Tellus, nº 37, Novembro de 2002

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