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Antologia de Contos Populares (Vol.2) de Alexandre Parafita

(Plátano Editora, 2002)

Há textos que, por natureza, sempre fugiram das páginas dos livros como o diabo da cruz. São textos que nasceram na oralidade e para a oralidade. Textos que ganham vida nas asas da memória, que se enriquecem ao galgarem fronteiras, países, gerações. E hoje onde estão eles? Hoje, em que a modernidade parece fazer tábua rasa da memória, especialmente de uma memória que sustenta as fórmulas mais sugestivas da cultura de um povo?

Felizmente, vão aparecendo alguns (poucos) contributos como o do escritor e estudioso da literatura oral tradicional Alexandre Parafita, que acaba de acrescentar mais um volume a uma rigorosa Antologia de Contos Populares, que vem construindo a partir dos testemunhos orais do povo, colhidos, directa ou indirectamente, com critério científico, em aldeias, vilas e lares de 3ª idade da região transmontano-duriense.

Em 2001, saiu a público o 1º Volume, contendo 90 contos populares apresentados como os “ordinary folk-tales” segundo a classificação de Aarne e Thompson, e, por isso, subdivididos em ciclos de contos religiosos, contos novelescos, contos de fadas e contos do demónio estúpido. Este Volume, para além do posfácio de Ana Paula Guimarães, é acompanhado de um extenso estudo introdutório sobre contos populares, onde o autor realça a importância deste género narrativo da tradição oral com objecto de estudo multidisciplinar.

Quanto ao 2º Volume, agora publicado – sob a chancela, tal como o anterior, da Plátano Editora, através da sua colecção “Tesouros da Memória” –, o autor persiste na proposta classificatória de Aarne e Thompson e apresenta os textos sob a designação genérica de “Contos Jocosos e Divertidos”. Ao todo são 224 contos populares, que se distribuem por sete ciclos (ou sete capítulos): 1 – contos de padres; 2 – contos obscenos; 3 – contos de mulheres de mau génio, comilonas, preguiçosas e linguareiras; 4 – contos de doidos e de avarentos; 5 – contos de galegos e de povos vizinhos e rivais; 6 – contos de crítica de usos e costumes; 7 – outros contos jocosos e divertidos. Alguns têm correspondência com versões-tipo apresentadas na classificação internacional de Aarne e Thompson, o que Alexandre Parafita não deixa de assinalar em cada um deles, demonstrando-se assim a fluidez transfronteiriça de muitos dos textos da literatura oral tradicional.

Onde se fala no humor de Herman José

No prólogo deste Volume, o autor introduz algumas achegas teóricas sobre contos jocosos e divertidos, o seu valor formativo, o efeito desinibidor que produzem, a relação entre contos populares e anedotas, a contextualização das figuras da mulher e do padre nos contos, etc. Mas procura também teorizar sobre o humor, tentando uma aproximação do humor popular tradicional com o humor mediático. “O humorista é um filósofo pragmático” diz Alexandre Parafita, ao elencar três patamares diferentes de humor (1 – rir de..; 2 – rir com...; 3 – rir por...). Um desses patamares, o mais nobre, ilustra-o com exemplos como o de Herman José. E diz: “Quando [H. José], num quadro humorístico, descai para uma situação imprevista e embaraçosa, tem sempre a capacidade imediata de contornar ou sublimar os contratempos, de repor as coisas no seu lugar, introduzindo variantes de humor que lhe permitem o controlo permanente da situação”.

Contos que foram censurados no passado

Mas a pertinência desta obra reside também no facto de muitos dos textos, sobretudo os contos jocosos, terem sido censurados no passado nas compilações de conhecidos autores, como Adolfo Coelho, Teófilo Braga ou Leite de Vasconcelos. É convicção de Alexandre Parafita que “a ausência destes contos nas colectâneas publicadas no passado deve-se a razões de pudor e moralidade, que motivaram, à partida, uma censura dos compiladores ou uma auto-censura dos informantes”. Sabendo-se que grande parte das fontes eram padres e antigos professores primários dos meios rurais, tal poderá ter contribuído para que “fossem ocultados os textos susceptíveis de afectar os dogmas da religião dominante ou de contrariar os desígnios da moralidade e dos bons costumes que a instituição educativa procurava então promover”.

Alexandre Parafita, autor de uma vasta e reconhecida obra, quer no domínio dos estudos da literatura oral tradicional quer no domínio da literatura infantil e infanto-juvenil, oferece agora, com mais este livro, um valioso contributo para que as sociedades modernas não deixem de reconhecer a memória como parte significativa do património cultural de um povo. Ainda que, nas páginas de um livro, os contos tendam a cristalizar como “pedra mármore”, sempre é preferível isso do que deixá-los esboroarem-se na penumbra da memória. Até porque nos restará sempre a esperança de que, um dia, os mesmos contos possam “voar” das páginas do livro, e regressar à memória das comunidades para aí se renovarem no acto de contar.

Armindo Mesquita, em Notícias do Douro, 27/12/2002

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