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Onésimo Teotónio Almeida, Que nome é esse ó nézimo?

No século XV, quando os Portugueses já haviam iniciado a época dos descobrimentos, D. Duarte encarregou Fernão Lopes "de poer em caronyca as estorias dos Reys, que antygamente em Portugal foram: e esso mesmo os grandes feytos e altos do muy vertuoso, e de grandes vertudes, El-Rey seu senhor e padre".

No último quartel do século XX, Onésimo de Almeida descobre a L(USA)lândia, nas comunidades portuguesas da América, e ele próprio incumbe-se de registar, em crónicas, o quotidiano dos habitantes da décima ilha, assim como "uma miríade de transformações ocorridas neste final de milénio". Por palavras suas: "...deixei nestas crónicas tudo o que me pareceu capaz de subsistir para além do seu tempo de publicação. Talvez porque sempre supus que alguma coisa da vivencia pessoal nelas narradas poderia ser eco das experiências de muita gente." É assim que surgem vários livros de crónicas do autor. Acabo de ler um desses livros: "Que nome é esse ó nézimo?"

Neste livro de crónicas, o autor trata de assuntos como o aparecimento de novas tecnologias e o impacto linguístico das mesmas. Versa problemas relacionados com a cultura, obsessão pela mesma, o frenesim de saber, a especialização e o trabalho de rotina. Dedica um capítulo à Portugalidade como doença, em que discorre sobre verdades e mitos do português em diferentes partes do globo.

O inventor da L(USA)lândia cumpre o seu papel de manter informadas e vivificadas a terra Lusa e a USA. Ele vive em ambas, experimenta e executa as notas do bilingualismo e aculturação nos seus tons mais altos. As experiências pessoais, que o autor reflecte, são as de um catedrático - e da Brown - profundamente informado e universalmente viajado. Quer em matérias académicas, quer em meras ocorrências do dia-a-dia, as citações do Onésimo multiplicam-se em números inconcebíveis. - Tão inconcebíveis que, a certa altura, eu resolvi testar quão possível era o impossível. Então, ao acaso, tomo algumas das suas citações e ponho-as à prova na Internet. Ao chegar à quinta citação, com um resultado positivo, rendi-me à evidência da extraordinária memória do escritor.

O autor foi academicamente treinado em moldes clássicos e culturalmente estruturado por um sistema de expressão em que o orador, enroupado de escuro, em solenidade transcendental, prostrava, em reverência incontestável, elementos da audiência, com a introdução de uma frase em latim ou até mesmo em francês. Agora, neste livro de crónicas, o autor fala, descontraidamente, dos assuntos mais profundos - Existencialismo, Fenomenologia, Metafísica, Epistemologia, Lógica, etc., etc. - em tom humorístico, anedótico, e mágico. Ele senta-se no restaurante "Caverna de Platão", onde o lema é o velho princípio "Primum vivere, deinde philosphare", (Primeiro viver, depois filosofar".) É aqui que ele e outros doutorados, em conversa amena - onde a divergência de opinião, mais que aceitável, é bem-vinda - saboreiam uma "sandwiche metafísica". Onésimo expressa a sua admiração e sedução pelas palavras de Chisholm, seu famoso professor de Filosofia, que logo na primeira aula alerta os seus estudantes para dois factos - que não era necessário usar big words em filosofia e que os grandes problemas filosóficos se formulavam em linguagem simples. E foi em linguagem assim simples que o professor prosseguiu falando do essencialismo mereológico. Onésimo vai um passo à frente - filosofa humoristicamente.

O autor não faz questão em rir-se de si próprio. Começa no próprio título do livro - "Que nome é esse ó nézimo?" O Onésimo chegou a compilar uma lista de sessenta versões diferentes do seu nome. Fê-lo com divertimento e sem tirar partido algum da origem grega do vocábulo que, como adjectivo, significa: "útil, proveitoso". Ainda no Carnaval do Rio, quando ele dá consigo a desfilar perante 250 mil espectadores e consciente da sua falta de habilidade pessoal para sintonizar com o ritmo do samba, comenta: "Eu não sambo, descambo." O filósofo-cronista está absolutamente convencido da função salutar que os psicólogos atribuem ao riso quando, a uma das suas crónicas, dá o título de "Rideo, ergo sum". "Eu rio, portanto existo."

Poder-se-á dizer que o humor e a aventura caminham de mãos dadas. Foi o que aconteceu com o Onésimo quando viajou da Madeira para Lisboa com destino a Boston. Trazia consigo um ramo de orquídeas que ele apostou fazê-lo acompanhar até a um ponto limite. Tanto na Madeira como em Lisboa, no balcão de embarque, no controlo de passaportes, na porta de embarque e, mais tarde, no avião, funcionários, hospedeiras e passageiros lembram-lhe repetidíssimas vezes que as leis alfandegárias proibiam a entrada de flores nos States. Com uma determinação quixotesca, a todos respondia: "Eu sei, mas nunca ouvi dizer que fosse proibido viajar com elas no avião." A resposta, para seu agrado, desconcertava todos os seus interlocutores. Finalmente, o avião aterra em Boston - o que poderia ser o fim da odisseia! No aeroporto, depois do desembarque, um funcionário advertiu-o de que iriam confiscar as flores na Alfândega. Muito cortesmente, o Onésimo responde-lhe que já sabia e não havia problema. Dá uns passos em frente e encara com o funcionário que faz a vistoria das malas e pede-lhe para trocar uma breve palavra com ele. O funcionário acede e o Onésimo explica-lhe: " A minha mulher e eu estamos à beira do divórcio. Ontem, ofereci-lhe estas flores e ela ficou profundamente comovida. Gosta muito delas e teve pena de deixá-las atrás. Acha que é possível fazer alguma coisa?" Com espanto para o Onésimo, o funcionário dirige-se a um gabinete para que um técnico inspeccione as flores. Minutos depois, volta e, batendo levemente nas costas do Onésimo, diz-lhe em voz baixa: "Boa sorte! Boa sorte!" - A epopeia chegara ao fim, com um grande sorriso no rosto do herói e um ramo de orquídeas nas mãos da heroína.

Frequentemente, nos seus escritos, o Onésimo recorre a efeitos linguísticos - fonéticos - para singularizar o humor. É o caso do capítulo "Gloria In Excesso" para evidenciar a "quadra da comezaina" que vai de Thanksgiving ao Natal.

O humor para o Onésimo não é nem um princípio, nem um fim, nem sequer um derivativo, mas é sim um processo total. Por exemplo, ao lado do gozo que ele teve nas noites e manhãs de Carnaval no Brasil, ele escreve: "Meia dúzia de dias no Carnaval do Rio foram-me um tratado não apenas sobre o Carnaval mas também sobre uma faceta básica da sociedade brasileira." - O Carnaval foi festa para o Onésimo, mas foi também motivo de estudo sociológico. As lides académicas, seja qual for a sua natureza, são motivo de estudo profundo para este professor, mas o anedótico estará sempre presente em medida comensurada. A cátedra nunca se afasta do humor, mas o humor, também, nunca se separa da cátedra. A aptidão do Onésimo, para emoldurar "o sério" com "o humorístico, é única. Neste sentido, a Natália Correia nunca poderia dizer do Onésimo: "Os intelectuais são uma chatice, com que o Criador não contava."

"Que nome é esse ó nésimo?" é mais um livro de crónicas da autoria de Onésimo Teotónio Almeida. (O Onésimo admite que "Teotónio" também tem os seus problemas...mas não tão graves...). O autor mexicano Octávio Paz disse que a biografia de um escritor é a sua obra. O Onésimo, nas suas crónicas, projecta-se num écran de Humanismo e Humorismo. Ultrapassa a saudade, sem se separar dela, para viver em dois mundos. No seu livro, em epígrafe, lê-se: "A terra é real, especialmente quando se tem um bocadinho no olho, R.H. Blyth, autor Zen."

As crónicas de Onésimo formam uma unidade de tal maneira coesiva que o leitor esquece-se das partes para abraçar o todo. A realidade está sempre presente e agradavelmente polvilhada de humor. Os factos sucedem-se uns aos outros. As citações multiplicam-se. E até muitas vezes, no fim da crónica, aparece a moralidade própria das fábulas.

Nuno A. Vieira

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