Onésimo Teotónio Almeida, Livro-me do Desassossego
Onésimo Teotónio Almeida é um infatigável viajante, no mais lato sentido da palavra “viajante”: atravessa oceanos, rios, lagos, continentes, países, cidades, praias, mas atravessa, com igual ímpeto e brio, livros, línguas, culturas, literaturas e filosofias. De tudo isso nos dá depois conta nas suas crónicas ou dia-crónicas, nas quais, com uma desenvoltura fácil ou com uma força leve, nos oferta, aos baldes, sabedoria séria assim como quem se diverte (e nos diverte). Nos países de gente muito séria ou mesmo zangada, o espírito e o humor são mercadorias desvalorizadas. Os “clowns” de serviço, mesmo quando se chamam George Bernard Shaw ou P. G. Wodehouse, dão para rir mas não dão para serem levados demasiado a sério. É que não se avalia de que profundidades abissais pode arrancar o humor, nem que fundas melancolias presidem por vezes ao “espírito”. De aí que o grande humorista e enormíssimo escritor que foi Mark Twain e os do Nobel, é evidente, ignoraram-no tenha afirmado que “a fonte secreta do humor é, não alegria, mas sim a tristeza.” E acrescentava: “Não há humor no céu.” Já os antigos tinham percebido que é a brincar que se castigam os (maus) costumes. William Zinser observava também com carradas de razão: “O que eu quero fazer é pôr as pessoas a rirem para que possam encarar as coisas com seriedade.” Por outras palavras, não há como o espírito e o humor para se ir ao fundo fundo dos problemas. Algum Islão tem dificuldade em compreender isto e zanga-se no preciso momento em que devia rir. É que quem não tem dentro de si algum humor acolhe mal o humor dos outros. O sempre prestável Lord Chesterfield gostava de dizer que “um homem deve ter ele próprio uma boa dose de humor para aguentar uma boa dose dele nos outros.” Onésimo tem doses pantagruélicas de humor dentro de si, com o resultado previsível de aguentar muito bem o humor (e até a falta dele...) em terceiros.
Leitor omnívoro e viageiro incansável, detentor de um invejável “stock” de informação bem arrumada e sempre à mão de semear, o autor deste recente Livro-me do Desassossego gosta de cultivar a humilde crónica que define desenfastiadamente como “ensaio em mangas de camisa.” Como gosta também de nos brindar com saborosas anedotas “a propósito de” (modo certeiro de melhor iluminar um pensamento ou um conceito), aqui lhe sirvo uma, a propósito do seu “ensaio em mangas de camisa.” Em Lourenço Marques, a partir de certa altura do meu regresso à cidade do Índico, em 1955, costumava encontrar-me, no café Scala, com o Dr. Fernando Ferreira, médico psiquiatra de grande gabarito profissional, fabulosa cultura e aceradíssimo espírito crítico. Numa mesa, não muito longe da nossa, costumava sentar-se um certo senhor C., abrutalhado de seu porte e alambazando-se, normalmente, com torradas e bolos que devorava alarve e ruidosamente, em magas de camisa, devido ao calor. Observava Fernando Ferreira, com o olho a luzir de maldade: “Lá está o C. em calças de camisa...”
A crónica começou por ser o que hoje não é. Tenho em casa uma quantidade enorme de dicionários de termos literários, em várias línguas, mas sirvo-me agora, com expediente e proveito, do que nos deu Massaud Moisés, por me parecer muito bom e bastante exaustivo. A crónica começou, diz ele, por “designar uma lista ou relação de acontecimentos, arrumados conforme a sequência linear do tempo. (...) Em tal acepção, a crónica atingiu o ápice na alta Idade Média, ou seja, após o século XII.” Porém, continua o nosso amigo brasileiro, “a crónica de feição moderna, via de regra publicada em jornal ou revista e muitas vezes reunida em volume, concentra-se num acontecimento diário que tenha chamado a atenção do escritor e semelha à primeira vista não apresentar carácter próprio ou limites muito precisos. Na verdade, classifica-se como expressão literária híbrida, ou múltipla, de vez que pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista, invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo, em torno de personagens reais e / ou imaginárias, etc.” E conclui: “ A análise destas várias facetas permite inferir que a crónica constitui o lugar geográfico entre a poesia (lírica) e o conto.” É precisamente esta “expressão híbrida, ou múltipla,”, esta variedade de formatos e de propósitos, esta paleta variada de seduções que encontramos, livro após livro, nos textos com que Onésimo polvilha as suas obras, que se situam, “geograficamente”, entre a “poesia (lírica) e o conto”, como diz Massaud Moisés. Tudo serve de pretexto a Onésimo para encetar com o leitor uma conversa saborosa e eminentemente civilizada. Usa, aliás, para isso, de todos os recursos retóricos que os bons narradores, ao longo dos séculos, foram congeminando: a começar pelo começo, que nunca deixa ao acaso, encontrando toda uma variedade de eficazes substitutos para o milenar “Era uma vez...”. Realmente, o autor de Livro-me do Desassossego, gosta de “agarrar” o leitor logo no primeiro parágrafo ou simplesmente período do seu texto. Por exemplo: “O tema era Jornalismo e Ficção, tratado em mesa redonda”, assim como se fosse Maupassant, a dizer qualquer coisa como isto: “Era numa noite de inverno, à volta de uma lareira, onde um grupo de solteirões falava de aventuras de amor...” Outro exemplo: “Já me confessei devoto leitor do New York Times. Ao sábado e ao domingo não ligo à versão Internet” e logo o leitor (eu, nós) fica alertado para o que vai seguir-se. Ou ainda: “Pedem-me um texto para o número comemorativo dos 170 anos do Açoriano Oriental...” Outro exemplo: “Antigamente tudo era simples por estas margens americanas do Atlântico...”, e logo o leitor se põe de tocaia à espera de ver onde e quando é que as coisas se começaram a complicar. Esta preocupação com o leitor não significa, contudo, que Onésimo esteja disposto a tudo para lhe agradar: usa das manhas da retórica e do seu imenso espírito, não para entreter o leitor com futilidades, mas para o seduzir com temas seriíssimos.. “O meu método”,, observava Shaw, “é ter imenso trabalho a encontrar a coisa certa a dizer e depois dizê-la com a máxima leveza.” Até porque este espírito, esta “leveza”, esta desenvoltura aparentemente fácil são, como justamente observava o grande ensaísta William Hazlitt, “a mais rara das qualidades entre gente educada.” De cultivadores do opaco, como valor, andamos todos fartos. Esse grande contador de inolvidáveis histórias que nos têm “aguentado” nos momentos difíceis da vida, Somerset Maugham, dizia, com finura perceptiva, que “o espírito é o sal da conversa.” Tem sido o sal da boa e capitosa conversa que Onésimo nos oferece em todos os seus livros, em geral, e neste, em particular: tem-me feito boa e terapêutica companhia, neste período difícil que ando a atravessar e me obriga a ir diariamente a Lisboa, saltando de combóio para combóio e sofrendo aquelas esperas imcompreensíveis que os portugueses inventaram como uma espécie de aulas práticas de estudos Kafkianos. Enquanto viajo e enquanto espero, a conversa bem disposta, bem informada, inteligente e inteligível, prenhe de sabedoria bem humorada e de uma generosidade cheia de pudor e de panache, que saboreio no livro de Onésimo, tem-me ajudado, como mandava Pascal, a “fazer um bom uso das doenças”. É bom sublinhar e apraz-me fazê-lo o bem que nos fazem certos livros e certos autores. Às vezes, em momentos sublimes e raros de reconhecimento, presta-se-lhes uma homenagem singular que quase nos deixa estupefactos. Foi, por exemplo, o caso com o romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário Arnold Bennett. Com romances como Anna of the Five Towns e The Old Wives Tale, tornou-se um popularíssimo e amadíssimo ficcionista, mas com a sua incansável actividade como influentíssimo crítico literário, área em que produziu um inacreditável volume de recensões redigidas com competência, fluência, bom humor, imaginação e rara perceptividade, soube manter uma civilizada, iluminada, inteligente e apetecida conversa com leitores que lhe não regatearam fidelidade, estima e amizade. E a tal ponto fez de cada leitor um amigo atento e dedicado, que se conta a seguinte história a todos os títulos única: quando Bennett se encontrava nos seus últimos dias de vida, no Strand, em Londres, divulgou-se rapidamente o pedido respeitosamente acatado no sentido de motoristas e peões que passassem em rente à moradia onde agonizava o escritor o fazerem o mais silenciosamente possível, para não incomodarem o moribundo. Como digo, o pedido foi universalmente acatado e Bennett teve toda a paz que foi possível ofertar-lhe.
O bem que os livros de Onésimo me têm feito não sei como pagá-lo. Gostava de ter,sobre o destino deles, a influência que teve T. E. Lawrence o famoso Lawrence da Arábia sobre o destino dos livros do poeta C. Day Lewis. O famoso aventureiro teria dito a Winston Churchill que considerava Lewis o mais importante poeta da sua geração e esta opinião foi parar a uma coluna de mexericos de um jornal. O resultado foi espectacular. O livro fora publicado pela hoje histórica e mesmo lendária Hogarth Press, do casal Woolf (Virginia e Leonard). Como os livros de Lewis praticamente se não vendiam, os Woolf tinham-nos empilhado em duas colunas que lhes serviam de bancos em que se sentavam para trabalharem. Quando a opinião de Lawrence veio à luz, o sucesso de vendas foi tal que o casal se viu, a certa altura, sentado no chão. Assim eu conseguisse fazer esvaziar das estantes dos livreiros e editores de Livro-me do Desassossego os exemplares que iriam, estou certo, fazer a felicidade (e aumentar a sabedoria) de tantos leitores. Há tanto trambolho que por aí tão copiosamente se edita e tão pouco se lê..Experimentem antes este elegante volume de 233 páginas e verão a facilidade com que viro o Lawrence da Arábia cá do sítio.
Eugénio Lisboa