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Recensões

Do Mundo Original
de Vergílio Ferreira (Quetzal Editores, 2009)

Ao contrário de Antero, que, de si próprio, dizia ser um filósofo «manqué», Vergílio Ferreira manteve, ao longo da sua obra, um forte pendor reflexivo que jamais abrandou perante a vertente mais propriamente criativa da sua obra. Notória na sua ficção, mormente a partir de Mudança, como é sabido, essa inclinação adquire particular relevo nos seus escritos não-ficcionais: em Conta-Corrente, ou, naturalmente, nos escritos recolhidos em Espaço do Invisível, como, ainda, neste Do Mundo Original. Mais do que um mero discretear em torno de tópicos mais ou menos literatos, mais ou menos dúcteis, há, no seu ensaísmo, uma perpétua ligação, uma interpenetração, entre o ensaio do tipo literário e a filosofia. Daí que seja possível entender, nas suas leituras acerca dos autores escolhidos e das temáticas abordadas, algo como uma antropologia da criação artística, uma profunda meditação filosófica sobre a problemática humana, nomeadamente – mas não só – no que diz respeito à arte. Isto porque o seu ensaio se não cinge – como é tão habitual – aos limites exíguos do literatismo (tantas vezes obliquamente increpado, nas suas palavras) – «Ah, a literatura é bem um baldio…» (p.75) –, antes se alarga a manifestações como as artes plásticas, a música, a dança. «O mundo original», clarifica Vergílio, «é, pois, não fechadamente o das realizações artísticas, mas antes a sua dimensão: uma obra de arte é o sinal sensível desse mundo, o meio privilegiado de a ele se aceder, o eco, entre o mundo das coisas, da voz inicial da vida.» (p.240)

Publicada originalmente em 1957, a presente constitui a terceira edição desta colectânea ensaística do autor – o que talvez seja não dizer pouco acerca da receptividade daquele género, entre nós, sobretudo se compararmos estes números com os de alguns dos seus romances (embora, por exemplo, Signo Sinal, por exemplo, não tenha ido além da segunda edição). E, muito embora, a tónica dos ensaios aqui reunidos traga consigo a marca da época da sua escrita, é inegável a extrema actualidade das suas considerações, bem como o interesse despertado no leitor actual por estes escritos.

«O que há de mais profundo no homem», diz Vergílio Ferreira, «é no sangue que se conhece» (p.146). Similarmente, esse seu modo de entender a condição humana, no seu fundamental, conhece um paralelo na forma como o autor concebe a arte – «Não há razões em arte senão da própria arte.» (p.89) Em Vergílio, é fundador o valor do humano: neste caso, na sua relação com a arte, mas, sobretudo, consigo próprio. Por esse motivo, a arte nunca é, na sua concepção, ludismo, socialização – «Não há confraternização em arte: há somente comunhão.» (p.214) –; também por esse motivo, é radical a sua visão da arte, funda, magmática – «De uma obra de arte só é excessivo aquilo que o autor não aceitou.» (p.50) –, irredutível nas suas partes, única – «Uma obra de arte é uma presença sem margens; uma obra de ideias é uma “interpretação” da realidade.» (p.42)

O autor assume uma posição, que sempre manteve, segundo a qual a arte é entendida como elemento definidor da situação do ser humano. Motivo pelo qual a concebe como fogo criador, que se não pode encapsular, sedar, catalogar, antes compreender, para melhor sentir. Assim, e embora afirme, veemente, que «A arte não se explica – jamais pôde “explicar”, “ensinar” – porque o seu meio de informar não é o ensinamento mas a revelação.» (p.227), frisando – no que, creio, apenas reforça a magnitude da criação da cultura – que «pôr o problema é já, de certo modo, colocarmo-nos fora dele» (p.59), a verdade é que, com o seu extraordinário poder de síntese, fixava a seguinte fórmula: «Uma obra de arte é para se “sentir” (embora esse sentir se deva esclarecer no “saber”).» (p.75)

Ao estudar a pregnante questão das relações entre vida e arte, o seu posicionamento é peremptório. Defende que a arte poderá constituir uma intensificação dos dados da vida, uma sua reinvenção, sem perder a veemência e a genuinidade do vivente – «Na arte, a vida não se evita: vive-se pela segunda vez.» (p.247). Radicalmente contrário a qualquer tipo de escapismo e alheamento, advoga que a «Arte não é fuga, mas a demonstração última de uma presença inteira na vida.» (p.65), esclarecendo que «A arte só pode ser considerada um refúgio para aquele que a não conhece, a vê de fora, e confunde a paixão do artista pela sua obra, com o prazer que imagina advém de nos consagrarmos aos que nos “interessa”.» (p.246)

Pela importância definidora que lhe atribui, e, sobretudo, pela situação do humano perante o mundo que o rodeia – «Coube-nos a parte da cinza e da ruína – a outros caberá a da reconquista, da reorganização.» (p.124) –, defende que «Sob certo aspecto, a Arte é um absoluto. O homem terá conhecido algumas formas de absoluto e conhece hoje algumas suas sombras» (p.224). A «Arte», dirá, mesmo, seria «o grande valor que resiste à derrocada dos demais valores» (p.224) «o absoluto da arte é-me, acima de tudo, o absoluto de uma adesão, de uma presença, da revelação da vida – não o do que estrutura a própria obra, não o da arte objecto.» (p.225) Quanto ao «artista do nosso tempo», ele «praticamente se não reconhece, a não ser na negação – ainda mesmo quando parece afirmar» (p.99). E, por sinal, dirá, «uma condição geral para que a arte de hoje melhor vingue é precisamente a de que ela negue». (p.28)

Repare-se na minúcia da análise, aliada à parcimónia nas palavras, ao estudar Afonso Duarte – «o uso desse “lá” espacial que Nobre herdou dos românticos – com a diferença, talvez, de que o “lá”, nestes, era um gesto longo do braço, e em Nobre apenas um gesto do olhar» (p.172). Vergílio Ferreira não estava, naturalmente isento de pechas. Uma era a sua relação com a poesia, por exemplo. A que escrevia, que desmerece na sua obra ficcional e ensaística, mas que, estranhamente, ele sempre teve em relativo apreço; mas também aquela sobre que escrevia – «A própria poesia dir-se-ia reconhecer-se, previamente, um signo diverso – esse de usar as palavras não da terra que se pisa, mas num céu que se inventa.» (p.88)

Nos seus diários, Vergílio dizia amiúde que estava destinado a ter razão antes do tempo. E quantas vezes não podemos deixar de concordar. Por exemplo, quando lemos «toda a corte de deuses modernos, desde o Chefe, a Causa, até às formas mais degradadas de divinização – como um Clube –, são os mitos que respondem ao nosso sonho ou saudade de mitos, num tempo que desejou destruí-los» (p.151), podemos deixar de lhe dar razão, na década de 50 como (sobretudo?) agora?

Hugo Pinto Santos, Junho de 2009

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