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Crónicas


António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


O Minuto do Drácula

O meu amigo Carlos Correia fez um filme de animação que conta a história de um talk show apresentado pelo Drácula e em que o único convidado é o Frankenstein, atentamente guardado por um tigre de porte altivo. O cenário é muito simples, todo às listas brancas e pretas, porque foi criado numa colcha a imitar pele de zebra, com um aparelho de televisão feito a partir de uma pequena caixa e um par de sofás azuis que antes de pintados eram nada mais nada menos do que os moldes de duas próteses dentárias. Os sofás aparentemente são iguais, só que o do entrevistado é muito guloso, enquanto que o do apresentador não passa daquilo a que usualmente se chama uma mosca morta. Para acompanhar, há uma música típica do circo, rápida e animada o suficiente para não parecer despropositada ao pé do ritmo frenético que o apresentador impõe ao programa. Quem vê o Drácula a conduzir as coisas daquela maneira, não pode deixar de se lembrar do Carlos Cruz, da Teresa Guilherme, do Herman, do António Sala, do Júlio Isidro, do Goucha, do Henrique Mendes e de todos os outros mais novos que foram surgindo nos ecrãs das televisões portuguesas. Nenhum deles, por mais pulos e saltos que desse, haveria de servir nem para assistente do terrível conde.

O Drácula e o Frankenstein saíram ao Carlos nas promoções do Burger King. Ele só tem aqueles bonecos, porque na altura não conseguiu arranjar os restantes, o Lobisomen e o Monstro da Lagoa Azul, ou melhor, o Monstro da Lagoa Negra. «Lagoa Azul» é um filme em que entra a Brooke Shields, que de monstro não tem nada, mas eu mesmo assim estou sempre a fazer confusão. São esses os dois artistas que completam a colecção de quatro bonecos oferecidos pelo Burger King, o Lobisomen e o Monstro da Lagoa Negra, só que em pouco tempo esgotaram. Se calhar por isso é que o talk show tem apenas um convidado. Ou então, quem sabe, a intenção do Carlos era ter um programa com os entrevistadores a variarem e sempre com o mesmo convidado, o Frankenstein. Os entrevistadores haveriam de ser uma vez o Drácula, outra o Lobisomen, outra ainda o Monstro da Lagoa Negra, e depois, se fosse para continuar a saga, o Carlos arranjava um boneco parecido com aquele apresentador brasileiro que se chama Ratinho, pedia emprestada o terrível boneco Seja Franco à Contra Informação, porque desde que saiu o ministro que lhe deu origem já pouca utilidade tem, e por aí adiante. E se o talk show durasse muito, isto é, se o Frankenstein fosse sobrevivendo às dentadas do sofá de prótese destinado ao entrevistado, o Carlos lá se haveria de arranjar. Nem que tivesse de se meter uns dias aí por esses matos, de certeza que não seria difícil encontrar uma cobra manhosa, um furão de dente afiado e mais meia dúzia de simpáticos profissionais.

Não ia ser contudo uma ideia original, porque um formato assim já foi usado pelo menos uma vez. No final dos anos oitenta, a Rádio Televisão Portuguesa chegou a transmitir uma série de programas com o professor Agostinho da Silva. Ao contrário, por exemplo, do que acontece com o professor José Hermano Saraiva, ou do que acontecia com o doutor Mário Soares enquanto foi aguentando, o programa não estava sob a sua responsabilidade. O genial filósofo ia lá todas as semanas mas era para responder às mais variadas perguntas, sem falhar uma, semana ou pergunta, e em cada semana havia um novo entrevistador. A rotatividade era tanta que eu já nem me lembro bem de todos. Aliás, sem fazer grandes esforços de memória, o único nome que me vem à cabeça é o do então jornalista Miguel Esteves Cardoso.

Mas voltemos ao filme de animação do Carlos, cujo talk show, a continuar, não sei que formato verdadeiramente deveria ter, apresentador variável, ou convidado variável, ou nem uma coisa nem outra. Naquela primeira edição, depois de o perigoso Frankenstein ter sido devorado mal se sentou, logo à primeira dentada e sem saber bem como nem porquê, o seu animal de guarda, o tigre, começou a ficar um bocado nervoso. E não era para menos, porque o dono, que metia medo a quase toda a gente, afinal tinha sido engolido por um estúpido molde de prótese pintado de azul. Sem que o Drácula pudesse fazer nada, por mais que esbracejasse e corresse de um lado para o outro, o tigre pôs-se a rodar que nem uma piorra e acabou transformado em porco. E depois foi-se embora, talvez resignado por perder a condição de animal nobre e passar a bicho de atasqueiro. O Drácula, que até tinha parecido estar assustado com as voltas do tigre, mal o viu feito num porco respirou de alívio. E o caso não era para menos, porque os dentes do porco não se podiam comparar às imaginativas armas de boca do felino protector do entrevistado Frankenstein. Ele, Drácula, de dentes percebia o suficiente para saber isso melhor do que ninguém.

O talk show prosseguiu, com o Drácula sozinho no cenário de zebra, sempre a mexer-se o mais que podia para acompanhar o ritmo desenfreado da música. O sofá guloso continuava a arreganhar os dentes, enquanto o seu colega de serviço ao apresentador permanecia na mesma indolência doentia de sempre. Como já não tinha o Frankenstein para entrevistar, o Drácula aproximou-se da caixa que fazia de aparelho de televisão e pôs-se a tentar passar umas imagens sobre a vida e a obra do seu infortunado entrevistado. Só que quando as imagens iam começar, o tempo do talk show, um minuto, nem mais nem menos, esgotou-se. E ele, por muito que barafustasse, por mais que fizesse ameaças de que partiria tudo, não conseguiu fazer com que lhe prolongassem a emissão. Um minuto em televisão é muito tempo, mas fosse lá alguém explicar isso ao Drácula.

António Manuel Venda, 05 de Agosto de 1999.

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