Letras & Letras

Crónicas


António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


Cuidadinho, Isidro!

Há muitos anos, mesmo muitos anos, ainda eu era criança, li um livro de aventuras em que aparecia um velho marinheiro que tinha um corvo. Ao contrário de outros, que usavam um papagaio, ou uma arara, ou então dos que não usavam pássaro nenhum, aquele carregava invariavelmente o corvo no ombro direito. E o corvo ainda por cima falava, não com grande elevação retórica, mas mesmo assim com um desembaraço capaz de deixar algum transeunte mais conservador a dar voltas à cabeça para ver se entendia os maus caminhos do mundo. Logo no início da trama, o corvo não parecia ter muita justificação, mas à medida que as coisas avançavam o seu papel tornava-se compreensível. Era o danado, com a sua voz cavernosa, que avisava o velho marinheiro de nome Isidro de algum perigo que se aproximava, fosse de que espécie fosse. O corvo era tão previdente que, sempre que o dono puxava do maço de tabaco e do isqueiro, lhe dizia: «Cuidadinho, Isidro, vê lá se engoles o cigarro!» Quase que me fazia nervos, ver aquele espírito tão precavido, e ainda por cima num pássaro, mas o velho marinheiro não se importava. Se calhar até tinha sido exactamente por isso que chegara àquela idade depois de tantos perigos que enfrentara pelos mares do mundo. Ele lá sabia.

Ainda tenho o livro do corvo e do velho marinheiro numa das estantes do meu quarto de criança. Às vezes, quando lá entro e me ponho a ver as antigas coisas mais importantes da minha vida, muitas delas já consumidas pelos anos e pelos meus descuidos, dou com ele no meio das colecções da bola e do far west. Podia deitá-lo fora, ou levá-lo para Lisboa para o vender mais outras traquitanas na Feira da Ladra, mas nunca tive coragem. Não por grande amizade ao corvo, ou ao velho marinheiro Isidro, mas se calhar pela estranha sensação que me começa a invadir sempre que penso em desfazer-me de qualquer coisa a que realmente cheguei a dar importância. Seja um livro ou uma camionetazinha de plástico, ou umas caricas com lusitanos desenhados ou então aqueles guerreiros medievais com que costumava travar inenarráveis batalhas de desfecho imprevisível.

O corvo e o velho marinheiro Isidro vieram-me à lembrança, uma vez mais, há meia-dúzia de dias. Não porque tenha voltado ao meu quarto de criança, mas sim por uma notícia que li num jornal, ou melhor, pelo que soube depois, no seguimento dessa notícia. O jornal falava de uma estrela da nossa televisão, nada mais nada menos do que o Júlio Isidro, que tinha sido internada de urgência com um problema de saúde. Devo dizer que o título me deixou um pouco alarmado, porque dava a ideia de que o coitado do homem estava com alguma doença maligna, mas depois, ao ler o desenvolvimento, percebi que era só um problema no ombro. O Júlio Isidro tinha tido um pequeno acidente quando se aprestava para dar início a um dos seus programas, ao receber um ilustre cientista português, o professor Carvalho Rodrigues. «São uns exagerados, estes jornalistas», pensei. Só que daí a pouco ainda fiquei mais intrigado, porque dei de caras com outro jornal, a puxar para título de primeira página que o cientista tinha posto a estrela da televisão completamente KO. Ora aquilo colocava as coisas noutros termos. Afinal já não tinha sido o Júlio Isidro a tropeçar, mas sim a força do cientista a ajudá-lo a descolar da órbita do chão.

Mais tarde, foi a vez de a rádio entrar em acção, e logo com o próprio professor Carvalho Rodrigues a explicar o que tinha acontecido. Segundo a versão do cientista, o Júlio Isidro tinha-o convidado para ir a um programa com que preenche uma parte das tardes televisivas, e antes de entrarem em estúdio, ele, Carvalho Rodrigues, tinha-lhe falado num projecto qualquer em que andava envolvido. Ora o Júlio Isidro, com o sentido de oportunidade que todos lhe reconhecem, tinha-se logo interessado, ao ponto de querer ir fazer uma reportagem no próprio local, ou como também se costuma dizer, no terreno. E o professor Carvalho Rodrigues nem esteve com mas nem meio mas, aceitou sem pestanejar que uma equipa da televisão fosse filmar a coisa. Tanto que, em jeito de concordância, disse alegremente: "Arrematado!" E ao mesmo tempo deu uma palmada no ombro da estrela, palmada essa também de concordância, sem saber que ia atingi-la precisamente no ponto mais fraco. Foi assim que o Júlio Isidro levantou voo.

Finalmente, tudo estava esclarecido para mim. Só não pude deixar de me lembrar do tal corvo prevenido que valia por dois, ou até mais, ao velho marinheiro Isidro. «Ai se o Júlio Isidro carregasse um pássaro assim ao ombro», pensei. Decerto que tinha evitado chatices com o simpático cientista, cujas palmadas, por mais amigáveis que sejam, pelos vistos não são nada de fiar. Ao ver aproximar o pai do primeiro satélite português, o corvo haveria de segredar logo ao ouvido da estrela da televisão: «Cuidadinho, Isidro, vê lá se evitas que ele te agarre!» Mas, infelizmente, tudo tinha sido diferente, por causa da falta do valioso pássaro.

E pensar eu que poucos dias antes do voo de Júlio Isidro estive em contacto com o professor Carvalho Rodrigues, por causa de um convite para uma conferência cuja organização tive a cargo. Devo ter-me livrado de boa, porque fiz o convite por telefone, e ele aceitou também por telefone. Eu bem o ouvi dizer que estava arrematado, só que era do outro lado da linha, sem que me pudesse atingir com a terrível palmada de concordância. Assim, uns dias depois, quando tivemos a reunião preparatória da conferência, e mais tarde, durante a própria conferência, já não foi preciso nenhuma palmada. Apenas uns cordiais apertos de mão, de forma que, mesmo sem corvo, eu lá me aguentei. Tive mais sorte do que o Júlio Isidro, a estrela da televisão, que pelos vistos quis tratar tudo directamente, sem pensar que estava a falar com o cientista que concebeu o primeiro satélite português e, quem sabe, também ajudou no seu lançamento. Com uma potente palmada, daquelas que qualquer corvo, ou até outro pássaro menor, por menos previdente que fosse, haveria logo de adivinhar que ia mesmo arrancar a coisa da órbita do chão. Enfim, o mal menor, para a estrela, bem entendido, é que não foi para tão longe como o satélite. Se calhar porque no caso dele se tratou de um lançamento de improviso, sem os anos de estudo que o PoSAT1 mereceu ao professor Carvalho Rodrigues. O melhor é nem me pôr a imaginar onde estaria agora o Júlio Isidro, se também ele tivesse sido objecto de aturados cálculos.

António Manuel Venda, 04 de Março de 1999.

Voltar à página inicial de Crónicas da Floresta Virgem

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras