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Crónicas


António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


Os Vizinhos de ao Pé de Casa e o Monstruoso Gigante

Tenho um amigo que me entrega lá de tempos a tempos alguns textos escritos ao correr da pena, sem uma segunda leitura, ou seja, sem grandes preocupações de depurar um pouco o original. Eu costumo fazer as correcções, procurando limitar-me às gralhas, mas por vezes não consigo deixar passar coisas que também ele, numa leitura cuidada, decerto haveria de detectar. Assim de repente, lembro-me de duas frases que acabei por alterar, embora isso até possa ser discutível, porque eram de facto preciosidades. A primeira dizia assim: «Naquela noite regressei a casa acompanhado por uns vizinhos que moravam ao pé de mim» (cortei a parte final, «que moravam ao pé de mim»). E a segunda: «Revi os conhecidos, cumprimentei os amigos e conheci pessoas que ainda não tinha conhecido antes» (substituí esta última parte por «conheci novas pessoas»).

Quase todos os que escrevem estão sujeitas a este tipo de situações. Serão caso raro, por certo, aqueles que conseguem colocar directamente no papel os textos definitivos. Uma vez ouvi dizer que Virgílio Ferreira tinha essa capacidade, mas normalmente toda a gente tem de melhorar ou corrigir as primeiras versões daquilo que faz. Em maior ou menor grau, mas tem. José Cardoso Pires, por exemplo, até escrevia mais do que uma versão dos seus romances. António Lobo Antunes diz que produz apenas uma ou duas páginas por dia, certamente por ter um processo muito complexo de escrita. José Riço Direitinho, segundo me contaram, também escreve muito pouco, trabalhando a linguagem ao máximo.

Ora aquele meu amigo escreve de seguida, ao correr da pena, sem reler. Assim as gralhas sobrevivem, tal como os pleonasmos, as repetições e outras coisas. E nem sequer podem ser aproveitados pelos académicos como recursos estilísticos, propositadamente escritos ou não. Se bem me lembro das aulas de português do complementar, quando andava mais uma data de desgraçados sempre à procura dos tais recursos. À professora não bastava levar Camões, com "Vi claramente visto o lume vivo", ou o Diabo dos autos de Gil Vicente a dizer "Subi, subi pera cima". De forma que lá passávamos o tempo numa correria desenfreada, à procura de pleonasmos e demais recursos estilísticos. E também medíamos orações, coisa que no meu caso particular, devo confessar, me ajudou menos em termos literários do que alguns livros de cowboys. O que se veio a revelar útil foi o autêntico sistema de repressão que apanhei durante aqueles dois anos. As aulas eram uma prova terrível, onde os alunos passavam por um leque de situações perfeitamente inaceitáveis, de pressão, terror e humilhação. A professora punha as coisas bastante difíceis para nós. Daí que era preciso andar um pouco como na guerra, sempre de olhos bem abertos, para ir sobrevivendo. Uma palavra mal escrita, por exemplo, dava não sei quantas repetições em casa, e isso, há que reconhecê-lo, ensinava qualquer um. Eu tinha sempre muitas para repetir, não porque fosse afeiçoado a dar erros, mas porque com a minha letra um bocado despachada cada palavra com um M era logo assinalada, ou porque o M tinha quatro pernas, ou porque tinha cinco, ou afinal porque parecia mais um N do que outra coisa. No fundo, lá bem no fundo, tenho de agradecer a essa professora que nos fazia correr atrás de perífrases, pleonasmos, contrastes ou antíteses, cacafonias, regionalismos, maravilhosos pagãos e maravilhosos cristãos, imagens e sinestesias ou confusões de sentidos. O exemplo que ela dava neste último caso era «aquele cheiro soube-me tão bem», mas nunca revelava qual era o cheiro, ficando as coisas sempre num certo suspense. O suspense, curiosamente, nunca nesses dois anos teve direito a ser recurso estilístico.

Mas a professora, certo dia, ficou sem palavras (o que numa professora de português é de assinalar, e então naquela... ). Foi a única vez. A pergunta de abertura era sempre para mim, porque como pertencia à letra A (só havia mais outro assim nesse ano, o Artur) ficava logo no primeiro lugar da sala, naquela altura disposta em U. De forma que se eu não respondesse a mulher ia percorrendo a sala de um em um até ouvir a resposta certa. Se ninguém acertasse, ela virava-se para o primeiro (logo por azar, eu) e presenteava-o com um enxovalho de todo o tamanho e, pior do que isso, de argumentação bem aprimorada. «Os teus Maias não são iguais aos meus!», «Onde é que os compraste, em Monchique?», foram alguns dos mimos que me calharam. Mas chegou a haver bem pior («Sabes, rapariga, as vacas costumam andar nos campos! Não sei como te deixam entrar nesta escola!...») Então, o que é certo é que naquele dia eu consegui passar a prova sem grandes estragos, e os colegas seguintes, melhor ou pior, também passaram. O que fez com que um dos dos últimos lugares, o João Lúcio, também acabasse por ter direito a uma pergunta, chamemos-lhe assim, de arranque.

Foi por isso o João Lúcio quem teve a honra de fazer calar a professora pela única vez naqueles dois anos de guerra. Era um aluno médio, mas talvez dos mais inteligentes da turma em termos emocionais. Ou seja, e não me deixando derivar para os conceitos agora na moda nos meios ligados à gestão, era um autêntico mestre do desenrascanço. O João Lúcio levou com uma pergunta terrível, ou melhor, não foi bem uma pergunta, foi um desafio. «Lúcio», gritou a professora, «faz-me um retrato físico e psicológico do gigante Adamastor!!» Eu pensei logo que ia haver confusão, pois ele ia de certeza embatucar com aquilo, e então lá viria a peixarada do costume. Pelo menos eu imaginava o que se passaria se a pergunta tivesse sido para mim, de certeza que eu haveria de começar a analisar o gigante à minha maneira e a professora interrompia-me logo na segunda ou terceira frase para me desancar. Porque para ela dava ideia de que o gigante tinha existido mesmo, que havia fotos, depoimentos gravados, até algumas reportagens perdidas nos arquivos da televisão do Estado, etc., etc., etc.. Enfim, eu não conseguiria sair da sala sem uma tremenda humilhação.

O João Lúcio começou por olhar para o tecto, enquanto a professora esperava com as mãos nas ancas. E daí a uns segundos, a medo, começou a falar: «Pois, o Adamastor era monstruoso, era grande...» A professora interrompeu-o logo, procurando ridicularizá-lo: «Evidentemente, se era monstruoso tinha mesmo de ser grande!» Ela não admitia pleonasmos aos alunos, só aos autores que devíamos estudar. Foi então que veio a resposta do João Lúcio, imediata, certeira, definitiva: «Eu conheço pessoas que são pequenas e que mesmo assim são monstruosas!» A professora ficou sem fala. Os minutos passaram e nada, até que foi salva pelo toque da campainha a anunciar o fim da aula.

A professora não devia de ter mais do que um metro e cinquenta de altura. Nesse dia, compreendi que nem tudo o que parece um pleonasmo é verdadeiramente um pleonasmo. Quem conseguir, nestas linhas, reconhecer a minha professora de português nos dois anos do complementar, em Portimão, saberá por certo o valor da resposta do João Lúcio. Quanta coragem ele teve, como se arriscou até a ser confrontado com alguma tentativa da professora em fazê-lo suspender das aulas. Mas já agora, para acabar com um pleonasmo mesmo pleonasmo, o que mais recordo não estava em nenhuma obra literária. Ouvi-o num banco, por sinal um banco norte americano. Um dos directores recebeu-me, perguntou-me se aceitava um café e depois começou a falar-me dos valores, da missão e de mais uma série de coisas da instituição. Até que chegou a uma altura em que para explicar como é que faziam a gestão do risco de crédito se pôs a falar das medidas preventivas: «Sabe, nós aqui não aceitamos qualquer cliente. Para entrar na nossa casa, é preciso ter um certo back ground para trás!» Ainda hoje estou à espera de alguém capaz de melhor.

António Manuel Venda, 09 de Março de 2000.

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