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Crónicas


António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


Cardoso Pires, Sophia, Saramago e o Lobo Mau

A atribuição do Prémio Nobel de Literatura a José Saramago, para além do que representa para o próprio escritor, e também para além do que representa para a literatura portuguesa e para o nosso país, veio provar claramente que o mundo das letras, por muitos considerado obscuro, também pode ser mediatizado. Aliás, o contrário é que seria de estranhar, porque nos tempos que correm tudo é susceptível de ser mediatizado. Se se mediatizam os cantores, os políticos e até os porcos, como aconteceu na última crise do sector, seria de facto um insulto que não se mediatizasse o prémio de José Saramago. Claro que a postura, a envolvente, e também todo o back ground do escritor também ajudaram. De facto, será mais apetecível, em termos mediáticos, um Saramago, um Camilo José Cela ou um García Márquez do que, sem qualquer desprimor, uma Toni Morrison ou uma Zimborska, a poetisa polaca de há dois anos cujo apelido creio que se escreve assim. Mas isto pouco interessa, até pelo já muito gasto chavão de que não é por factores exógenos mas sim pela sua obra que um escritor deve ser premiado. Quantos grandes escritores ficaram sem receber o Prémio Nobel de Literatura? E quantos o ganharam, não diria sem saberem ler nem escrever, é claro, mas sem saberem bem como e porquê? Tudo acaba por ser relativo, até neste caso em que se trata de uma distinção merecida. Ganhou Saramago, mas poder-se-ia perguntar porque continuou o peruano Mario Vargas Llosa sem ganhar, por exemplo. Assim como se poderia perguntar porque razão não ganhou Saramago há mais tempo.

Devo confessar que Saramago está os escritores de quem li alguns livros que me deram um grande prazer. Podia citar seis ou sete, Cela, García Márquez, Vargas Llosa, Naguib Mahfouz, Torga ou Eduardo Mendoza. Todos escreveram alguns daqueles que considero os livros da minha vida, mas também escreveram outros que acho uma grande chatice. Para não ir mais longe, fico-me por Saramago, com Memorial do Convento e O ano da Morte de Ricardo Reis, para ilustrar um e outro caso. Enfim, gostos, que como é costume dizer-se não são para discutir. Talvez por isso, por essa ambiguidade, há algum tempo atrás, quando me pediram que votasse para uma das eleições de um candidato português ao Prémio Nobel de Literatura, eu tenha votado em Cardoso Pires. Que acabou por ser o escolhido, após um inusitado despique não com Saramago, mas antes com Sophia de Melo Breyner Andresen, a que todos na sala se referiam como Sophia. Ou melhor, quase todos, porque eu, e se calhar mais dois ou três desgraçados dos novos, eu só conhecia a poetisa de nome e de lê-la. Tal como só conhecia Saramago e Cardoso Pires de nome e da obra. Quer dizer, uma vez eu cheguei a ver Cardoso Pires, quando tive de ir marcar uma consulta para o meu pai no Instituto de Reumatologia. Ele estava lá, na fila da frente, entre dezenas de pessoas anónimas, e isso fez-me uma enorme confusão, porque eu sempre tinha imaginado que uma pessoa como Cardoso Pires era quase como o presidente da República, que não ia aparecer assim numa situação daquelas. Mas pronto, vivendo e aprendendo.

Claro que toda a gente sabia que aquela votação não interessava para nada, mas enfim, lá se votou. E ainda bem, porque todo o processo, pelo menos para mim, isto falando em termos lúdicos, foi bastante interessante. Passo então a descrever. Cada um dos trinta ou quarenta presentes recebeu um papelinho para votar, dobrar e entregar ao presidente da mesa, se é que era assim que se chamava. Este depois procedeu ao escrutínio, e aí acabaram por aparecer Saramago, Cardoso Pires, Sophia de Melo Breyner Andresen (a Sophia) e Lobo Antunes (a que alguns, curiosamente, tratavam por Lobo Mau). Foram eles os mais votados, não necessariamente por esta ordem. Mas também apareceram outros, como António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade e até, imagine-se, Agustina Bessa Luís. O problema foi que depois de Cardoso Pires ganhar, creio que por um voto, a Sophia de Melo Breyner Andresen, e por três ou quatro a Saramago, houve um dos presentes, certamente mais esperto e batido naquele tipo de empreitadas, que se lembrou de propor uma nova votação, só para os três nomes mais votados, porque para ele a vitória de Cardoso Pires não tinha sido categórica. Ora, o assunto foi a discussão durante uma meia-hora, com violência até, embora só intelectual e uma vez por outra de punho na mesa, se é que as duas coisas não se equivalem um pouco. E acabou por se ir mesmo a nova votação. Aí, Saramago ficou a ver navios.

O problema é que Cardoso Pires e Sophia de Melo Breyner Andresen, contados e recontados os votos, acabaram por empatar nessa interessante e debatida segunda volta eleitoral. E agora, perguntava-se, se a academia sueca nunca nos tinha dado nem um Prémio Nobel de Literatura num ano, como seria se apresentássemos logo dois candidatos? E Cardoso Pires e Sophia de Melo Breyner Andresen estariam dispostos a dividir os cento e setenta mil contos. O Prémio Nobel da Literatura, como Saramago haveria de desabafar tempos depois, ainda vá que não vá, agora o dinheiro, o dinheiro, como diria a amiga Olga, bem, o dinheiro, aí, com o dinheiro, já era uma coisa que requeria uma ponderada reflexão. Então, que fazer para arranjar apenas um nome? O próximo passo foi discutir durante mais meia-hora, que a conversar é que as pessoas se entendem. Até que acabou por dar-se início a uma terceira votação, difícil de realizar em termos práticos, dada a logística complicada, porque os opositores desde a primeira hora da solução de voltas sucessivas até ao nome final não ficaram calados nem quietos durante o processo. Mas a tendência inicial confirmou-se, Cardoso Pires ganhou por um voto a Sophia. Nessa altura, eu já começava a habituar-me ao simples nome de Sophia para a poetisa.

Só então é que alguém se lembrou de avançar com uma razão para uma quarta volta. Ou lá o que lhe quisessem chamar. Então não é que em todas as votações anteriores, à frente de Cardoso Pires, de Sophia, de Saramago e do Lobo Mau, e de todos os outros juntos, tinha aparecido sempre alguém a quem o escrutinador não conseguia ver o nome nos papéis de voto. Talvez fosse um escritor de nome invisível, ou o próprio homem invisível que afinal fosse português e autor de contos e novelas. Ou então talvez aquilo fosse como que uma intenção de homenagem não ao soldado desconhecido, mas sim ao escritor desconhecido, quer dizer, a todos os escritores desconhecidos de Portugal, mortos como os soldados homenageados, ou até mesmo vivos. Talvez alguém com esse perfil merecesse ser escolhido. Enfim, o que é certo é que a sugestão não passou e o candidato a propor à academia sueca, depois de uma tal maratona eleitoral, acabou por ser Cardoso Pires. Se bem que todos os presentes soubessem que a ganhar um português o Prémio Nobel de Literatura, esse português seria José Saramago, a terceira escolha da noite. Ou mesmo, porque não, António Lobo Antunes, que ainda teve menos votos e, pior do que isso, foi apelidado de Lobo Mau. Podiam ter-lhe chamado apenas António, da mesma forma que carinhosamente tratavam por Sophia a poetisa.

António Manuel Venda, 17 de Dezembro de 1998.

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