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António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


Que fazer de um Cruzamento sem Fantasmas?

Às vezes o que está na base de uma história, especialmente se ela se mete pelos caminhos do fantástico, acaba por ter pouco a ver com as peripécias que vão sendo relatadas linha após linha. Lembrei-me disso a propósito de um boato que me chegou aos ouvidos, um dos muitos com que somos confrontados a cada dia que passa, pelas mais variadas fontes, televisão, rádio, amigos, jornais, vizinhos, patrões, empregados, até mesmo pelos transeuntes que nem conhecemos mas a quem ouvimos algum comentário de passagem. Ao ouvir aquele boato, a que nem interessa agora dar alimentação porque eu sei que era mesmo um boato, não pude deixar de fazer o contraponto entre todo o caminho que esse tipo de coisas percorre, desde a simples faísca até ao grande fogo que no final quase toda a gente jura a pés junto que viu, não pude deixar de fazer o contraponto, dizia, entre esses aumentos e todo o processo de criação de uma história a partir de um pequeno acontecimento, talvez até de uma recordação das mais remotas.

Há algum tempo atrás, escrevi um conto chamado "Os Fantasmas do Cruzamento da Morte". É a história de dois fantasmas, o de um gato que foi atropelado por uma bicicleta, e o do condutor da bicicleta que atropelou o gato num dos cruzamento mais perigosos da zona. Chamavam-lhe até o «Cruzamento da Morte», devido aos muitos acidentes que ocorriam aí, principalmente porque quem vinha da secundária estrada de terra às vezes nem parava para ver se na estrada nacional havia movimento. O gato era bravo, talvez para apimentar mais o enredo, e o motociclista também não era nada para o caseiro. Os dois morreram no acidente, o motociclista porque se despistou a seguir ao atropelamento e o gato bravo porque foi atropelado e ficou com as tripas à mostra. Acabaram por ir para fantasmas, com o do gato bravo a aparecer quase todas as noites, e por vezes até durante o dia, e o do desgraçado do motociclista só uma vez por ano, na noite de quatro para cinco de Outubro, que era a data em que tinha sido a tragédia. Entretanto, as coisas evoluíram, com os fantasmas, principalmente o do gato bravo, a tornarem-se atracções turísticas. O fantasma do gato bravo aparecia de repente à frente dos carros e das bicicletas, como que a desafiá-los, e então era um vê se te avias, os condutores apontavam mesmo para ele e muitas vezes deixavam-no com as tripas de fora, ao Sol ou à Lua, conforme a hora. Depois, quando iam para limpar o alcatrão, ele desaparecia enquanto o Diabo esfregava um olho, ou então enquanto os homens do lixo, incrédulos, esfregavam os olhos a ver se estavam bem acordados ou não. Até que o fantasma do gato bravo se cansou de ser a vítima e deixou de dar as caras, e assim o «Cruzamento da Morte» ficou reduzido a uma atracção, e apenas uma vez por ano, na noite de quatro para cinco de Outubro. Ficou reduzido ao fantasma do infeliz motociclista, ainda por cima um fantasma de pessoa, coisa de pouca novidade, embora aparecesse de bicicleta.

Vou contar os factos que estiveram na origem da história. Certa noite, creio que em oitenta e quatro ou oitenta e cinco, eu e mais três amigos estávamos sentados no muro que fica ao pé do cruzamento, que até nem tem nome de filme de terror. Aliás, nem nome tem. Regressávamos a casa, depois de mais um treino da equipa de futebol. Como não nos apetecia ir logo dormir, ficámos um bocado na conversa, debaixo da escassa luz que a lâmpada do cimo do poste permitia, pois a Lua estava nem a gente sabia aonde. Fantasmas, ali, era coisa que não nos preocupava, mesmo quando olhávamos para cima e víamos os parvos dos morcegos de um lado para o outro sem saberem onde aterrar. Só de vez em quando, muito irregularmente, um ou outro carro, ou uma bicicleta, iluminavam um bocadinho mais o lugar, fazendo parecer quase de manhã. Durava pouco essa ilusão. Uma das bicicletas foi mesmo a de um bêbado da zona, que passou na marcha lenta do costume, com o trabalhar do motor quase a morrer. Não ligou sequer às nossas saudações e meteu pela estrada de terra que saía do cruzamento, a mesma de onde tinha vindo na história o infeliz motociclista que depois foi para fantasma mais o gato bravo. O bêbado perdeu-se logo na escuridão, pois à estrada de terra a iluminação pública não chegava, nem fraca nem forte, e ele também não podia pedir grande clareza à velha lâmpada da bicicleta, que ainda por cima nem nos dias feriados sabia o que era um balde de água. Ficámos assim sem escutar a voz arrastada pela bebida que tantas vezes já nos tinha deliciado.

Mais tarde, talvez uma hora depois, ainda estávamos os quatro na conversa, fazendo serão como os morcegos, se é que se pode dizer que os morcegos estavam a fazer serão, porque afinal eles estavam era na sua labuta normal. O susto que acabámos por apanhar começou nessa altura. De repente, sem mais nem menos, ouvimos o barulho de uma bicicleta a descer pela estrada de terra. Isso era normal e nem nos deveria despertar grandemente o interesse, mas o desenfreado andamento punha as coisas noutro ponto. Entreolhámo-nos. Ainda me lembro de ver na cara dos outros uma inquietação que quase jurava ser a que eu próprio sentia. A bicicleta parou no outro lado do cruzamento, mesmo onde acabava a estrada de terra e começava o alcatrão. O estranho condutor encandeava-nos com o feixe de luz, mas eu não sei se era o medo que nos impedia de ver, se era tudo efeito do feixe mesmo fraco dirigido aos nossos olhos. O que é certo é que não conseguíamos distinguir quem nos observava. Ao fim de uns minutos, que nos pareceram eternos, o motor parou, a luz apagou-se e ficámos sem ver praticamente nada. Seria um fantasma? Mas nós, mesmo ainda muito novos, sabíamos que os fantasmas não andavam de bicicleta, ao contrário do que veio a acontecer depois ao da história. Do que tínhamos a certeza era de que se tratava de um vulto preto, numa bicicleta que ou também era preta ou então tinha uma cor sem nome. Tudo aquilo, no entanto, era diferente do preto da noite, impossível de classificar. E os fantasmas deviam de ser brancos, como diziam os compêndios que então regulavam as nossas vidas.

De repente, parecendo vir de nenhum sítio, chegou até nós um boa noite arrastado. Um boa noite que logo nos pareceu familiar. Só podia ser a voz do tal bêbado, mas o estranho é que ele nunca conduzia assim tão desalvorado. Teria tido algum acidente pelo caminho acima? Teria morrido e o seu fantasma tomara conta da bicicleta e já andava a fazer das boas mesmo sem o desgraçado enterrado? Que confusão! Nós não dizíamos nada, e ouvíamos os morcegos por cima nas vidas do costume. Até que a voz voltou, com um discurso mais longo: "Desculpem lá, amigos, mas só já quando ia a chegar a casa é que me lembrei que não tinha dito boa noite, de maneira que vim por aí abaixo que nem uma seta, como nunca tinha conduzido a bicicleta, e sempre a pensar que se calhar esta noite é que ia de encontro aí a algum sobreiro da berma, mas valeu a pena, porque os amigos ainda cá estão, e eu acho que não ia conseguir dormir se não lhes tivesse respondido, mesmo um bocado atrasado". Era mesmo o bêbado, vivo e bem educado, porque os fantasmas nunca poderiam ser tão respeitosos no falar. Logo depois o motor voltou a trabalhar, a luz acendeu-se e ele partiu, aí novamente muito devagar, afinal a sua velocidade, e perdeu-se pela estrada velha acima. O cruzamento continuava sem fantasmas.

Uma vez tentei contar esta história e não fui capaz. Sem conseguir controlar a pressa da caneta em se aventurar por caminhos para mim desconhecidos, acabei por dar comigo a tentar conjugar no papel a presença do fantasma do gato bravo com a do fantasma do motociclista que o tinha atropelado em vida. A caneta queria lá saber da história sem grandes peripécias que eu tinha vivido naquela noite distante em que ficara na conversa com os meus companheiros de treino. Essa caneta, por certo, tinha vistas mais largas. Pensava a dobrar, se é que pensava, se é que em vez disso não tinha alguma outra faculdade para mim desconhecida e capaz de arranjar uma história porreira com um processo parecido ao dos boatos. Um dia deitei-a fora, sem lhe colocar uma nova carga que lhe permitisse continuar em busca de novas aventuras. Ainda hoje não sei o que terei perdido.

António Manuel Venda, 08 de Julho de 1999.

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