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Crónicas


António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


O meu Golpe Demasiado Azul

Apesar de ter então apenas seis anos, lembro-me perfeitamente do dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. Melhor, se alguém me vier com a velha pergunta de onde é que estava no Vinte e Cinco de Abril, não terei dificuldade em responder, ainda que nessa altura nem sequer andasse na escola. No dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, uma Quinta-feira, fui para a casa da minha avó logo pela manhã. Das conversas que escutava à minha volta, ia percebendo que algo de estranho se passava, mas não entendia o que era. Para mim, todas as figuras que dominavam o país, fosse lá como fosse, pouco significavam. Uma vez, creio que um ano ou dois antes, tinha dado de caras com Américo Tomás, depois de sair da missa, um Domingo de manhã. O velhote ia a descer uma das ruas de Monchique, perante a multidão embasbacada e submissa, menos preocupada com ele do que com os guardas que não hesitavam em distribuir encontrões e o que mais fosse necessário. No meio de tanto burburinho, Tomás ainda me apertou a mão, dizendo «menino, menino». E eu fiquei com um orgulho que só daí alguns anos percebi o quanto era ridículo.

Não haveria de demorar muito, no entanto, para que num outro Domingo, de novo à saída da missa, mas então já preparado para ir à catequese, dar de caras com Mário Soares à frente de uma multidão ululante, todos de punho fechado e com ar de poucos amigos. Meteram-me um medo terrível, mais ainda do que os guardas dos encontrões, que naquele espaço de dois ou três anos tinham desaparecido misteriosamente. Tudo ao contrário do velho Tomás, que tinha sempre ar de não ser homem para fazer mal nem a uma mosca. Sá mais tarde percebi que estava enganado, que Tomás não era tão bom como isso, assim como Soares também era capaz de não ser o diabo que a ira que transparecia dos seus gritos e do seu semblante, pelas ruas de Monchique, deixava transparecer. Apesar de também não ser nenhum anjinho que aparecia ao Domingo, pelo fim da manhã.

O dia vinte cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, o dia do golpe de Estado, como eu ouvia as pessoas dizerem à minha volta, não foi lá muito bom para mim. Nas minhas andanças pelos campos em redor da casa da minha avó, armado de faca e pau para melhor parecer um guerreiro, acabei por estragar as coisas logo a seguir ao almoço. Nessa altura, se calhar, Marcelo Caetano ainda tinha alguma esperança de conter o golpe para dar cabo do resto do país em mais meia-dúzia de anos e justificar que era mesmo um digno sucessor do ditador Salazar. Ou então já tinha perdido a esperança completamente. Isto se é que ele alguma vez soube o significado dessa palavra, que o mais certo é nem vir nos compêndios de direito de agora, quanto mais nos daquela altura, muitos dos quais ainda são de uso corrente. A imagem que hoje tenho de Caetano é a de um senhor a preto e branco, como a maioria dos homens do regime daquela altura, e com uns óculos de aros bem espessos e escuros. A culpa podia ser muito bem da televisão igualmente a preto e branco, mas não. Eles eram mesmo assim, a preto e branco, ou cinzentos, e isso pude eu constatar na altura em que Tomás me apertou a mão. Era dessa forma que todos se vestiam, tal como pensavam e agiam, a preto e branco, ou quando muito em tons cinzentos. Creio mesmo que naquele nosso mundo Kafkiano, a televisão a cores, se existisse, não iria causar grande transformação aos nossos olhos. As imagens haveriam de colorir-se muito pouco ao focar os mandantes, fossem eles Salazar, Caetano, Tomás ou até o regressado Veiga Simão, que agora já veste de forma um pouco mais garrida.

Mas voltando à minha odisseia pelos campos de batalha junto à casa da minha avó, não sei porquê nem como, se calhar porque não conseguia dar mais uso à faca, cortei-me no dedo polegar esquerdo. Fiz um golpe de quase uns dois centímetros, coisa que pode não parecer muito mas que comigo deu para lágrimas, gritos e alguns pulos. O que acabou por me distrair foi o paralelismo que logo alguém me fez com o que acontecia em Lisboa. Eu, assim como os soldados em Lisboa, também tinha feito um golpe. Tinha arranjado o meu próprio golpe. Daí que a meio da tarde - já com Caetano a dizer que se ia embora mas para o tratarem com dignidade, e que o deixassem levar a biblioteca - eu andasse de um lado para o outro todo contente a mostrar o polegar ferido, como um precioso trofeu.

À noite, em casa, ainda eu andava com a mão esquerda bem à vista, não a fazer sinal de que estava tudo bem, mas a mostrar o dedo. Não liguei à surpresa da apresentação na televisão dos senhores da Junta de Salvação Nacional, que ia assegurar a transição para a democracia. Para mim, com seis anos de idade, tanto se me dava, ainda por cima aparecendo eles também a preto e branco, num fundo cinzento. Se nem a PIDE alguma vez me tinha dado que pensar, não haveriam de ser aqueles artistas a ter essa honra, ainda por cima comandados por um velhote quase mais caquéctico do que Tomás, o tal que dizia «menino, menino» quando apertava a mão. Não me preocupei mesmo nada, nem com as desconfianças que eles geravam, porque a verdade é que se era certo que vinham substituir os maus, como se dizia, ninguém sabia o que iriam fazer. Ainda ouvi comentar que de entre os que apareciam no ecrã, se calhar, o único que se aproveitava mesmo era o Fialho Gouveia, mas nem a isso dei importância. Continuava orgulhosamente a pensar no meu golpe, mas já um pouco preocupado, porque o dedo estava a ficar demasiado azul.

António Manuel Venda, 29 de Abril de 1999.

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