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Crónicas


António Manuel Venda: Crónicas da Floresta Virgem


De Surpresa em Surpresa

A entrada na faculdade representou uma grande mudança para mim. Talvez porque eu tivesse andado até essa altura relativamente despreocupado com a situação, acabei por não tomar logo de início as precauções que decorridas algumas semanas já me pareciam mais do que óbvias. No primeiro dia, ainda bem não entrava no edifício, dei de caras com os artolas das praxes. Eu nem me tinha lembrado de que eles existiam. Assim, completamente desprevenido, não consegui evitar que me pintassem a cara de verde e me enchessem o cabelo com creme de barbear e pasta de dentes. Ao princípio não sabia onde me haveria de meter, só que depois comecei a ver outros iguais a mim e fui ganhando uma certa coragem. De qualquer forma, arrependi-me mil vezes de ter saído de casa de manhã como se fosse apenas mais um dia igual a tantos dos que até aí eu estava habituado.

Foi, na verdade, o meu primeiro grande choque em Lisboa, a primeira de uma longa série de surpresas. Ainda nessa semana, fizeram a cerimónia das praxes e, entre outras coisas, a mim calhou-me cantar uma canção muito na moda nessa altura, a mim e a mais uma data de desgraçados. Eu sabia apenas alguns versos, de forma que tive de estar o tempo quase todo só a mexer os lábios no meio do grupo. A assistência, que enchia um dos auditórios, parecia gostar tanto que não arredava pé. Até professores lá estavam, com a desculpa de que era para participarem, mas na verdade o que dava a parecer era que eles se queriam divertir à custa dos caloiros. Se algum tivesse de ir para o hospital com um ataque de riso, especialmente quando nos obrigaram a imitar os galos, todos descalços em cima das cadeiras e a fazermos que batíamos as asas, certamente que nenhum de nós lamentaria nem um bocadinho.

Eu ainda não conhecia bem a cidade. Pensando nas coisas agora, até me parece que tudo aconteceu no século passado. Nos dias de hoje, a comunicação social tudo desmistifica. Creio mesmo que será por essa sua influência crescente que se poderá combater a degradação em que determinadas coisas vão continuando. Imagine-se o estado de impunidade em que viveríamos sem a comunicação social a servir de grande montra das misérias, injustiças e vergonhas do nosso dia a dia! Com a justiça que temos, com o ensino a que pudemos aspirar, com a saúde que nos vai valendo, o melhor é nem pensar muito.

De facto, Lisboa não estava ainda desmistificada para mim, como agora por certo estará para um jovem recém-chegado. Eu acabava de entrar, naquele Outono de mil novecentos e oitenta e seis, numa floresta cerrada. Virgem ou já explorada, eu nem sequer me atrevia a adivinhar, era bem cerrada e isso bastava-me como primeira ideia. O problema da alimentação também não me tinha preocupado grandemente até aí, mas acabou por colocar-se. Era preciso comer barato e, já agora, umas refeições de jeito e sem grandes rebaldarias pelo meio. De entre as cantinas de estudantes, acabei por descobrir uma perto de casa em que dava para comer mais ou menos e até um pouco descansado. De forma que ia lá muitas vezes jantar. Era a cantina da faculdade de ciências, sempre com uns gatos de um lado para o outro e uma malta um bocado estranha, contudo bem menos incomodativa do que a tropa que nessa altura já começava a invadir os cursos de gestão.

Uma vez, ainda nos primeiros tempos, fui mais cedo jantar, por isso demorei-me a fazer o percurso pela rua fora. Para minha grande surpresa, mais uma, cruzei-me com o engenheiro António Guterres. Nessa altura, ele não me parecia o tipo simpático e bem falante de agora. O que eu via na televisão, mesmo sendo a televisão de mil novecentos e oitenta e seis, era um deputado em permanente guerra com tudo e com todos, quase cuspindo fogo pela boca a cada três palavras. Era a imagem que eu tinha de Guterres e que facilmente teria quem lhe visse as actuações em S. Bento. Nesse fim de tarde, porém, ao cruzar-me com ele, a caminho do jantar na cantina dos gatos, não me pareceu capaz de lançar chamas pelas goelas. Caminhava pela rua fora, com passada curta e pachorrenta, provavelmente na direcção da sede do partido. Ia metido consigo próprio, com um sorrisinho mal disfarçado por baixo do bigode que ainda teimava em usar. Fiquei um bocado a pensar no que teria dado origem a tão grande metamorfose, mas depois disse para comigo que as coisas eram mesmo assim e apressei o passo em direcção à cantina, não fossem os gatos ficar-me com o jantar.

bigode que ainda teimava em usar. Fiquei um bocado a pensar no que teria dado origem a tão grande metamorfose, mas depois disse para comigo que as coisas eram mesmo assim e apressei o passo em direcção à cantina, não fossem os gatos ficar-me com o jantar.

No princípio, eu não tinha professores assim lá muito conhecidos, ao contrário do que esperava depois de ter-me farto de ouvir falar que tinha entrado na melhor faculdade de gestão do país, a par da Universidade Católica. Só ao fim de algum tempo é que me apareceram dois ou três de quem eu já tinha ouvido falar, já bem depois de ter apanhado logo na cadeira de enquadramento de todo o curso com um senhor que costumava perguntar-se, quando estava mais declamativo, o que seria do mundo sem a burocracia. Se calhar, dizia ele a olhar as nossas caras de parvos, os aviões, ali bem perto, no aeroporto da Portela, nem haveriam de puder levantar voo. Mas um dia chegou alguém que aparecia nos jornais e na televisão, ainda que estivesse apenas a iniciar o caminho da fama. Dava as aulas teóricas de Economia Portuguesa a todas as turmas, num auditório sempre com duzentos ou trezentos desgraçados, e além disso assegurava as aulas práticas da minha turma, que tinha cerca de trinta alunos. Chamava-se Eduardo Ferro Rodrigues e haveria de chegar a ministro acompanhando Guterres no governo, e ainda por cima sempre bem colocado nas sondagens. Já nessa altura era simpático, ao contrário do Guterres da televisão e, estranhamente, à semelhança do Guterres que caminhava pelas ruas. Que eu me lembre, Ferro Rodrigues foi o único professor em todo o curso a que a minha turma ofereceu um jantar de despedida. Destoava um pouco da maioria que nos ia aparecendo, às vezes até de pára-quedas. Ia num Opel Kadett branco, sem fato nem gravata e quase sempre com o jornal «A Bola» debaixo do braço. Faltava pouco, e quando isso acontecia arranjava uma aula suplementar. Era nas alturas em que havia interpelações ao governo de Cavaco Silva. Ele, de um partido da oposição, tinha de ir para S. Bento falar de determinadas questões para as quais a maioria dos deputados do partido não estava preparada. Nem os que andavam lá a fazer figura de corpo presente, nem mesmo os que até botavam discurso.

Pela mesma altura de Ferro Rodrigues, apanhei com outro professor mais ou menos conhecido. Apareceu numa das cadeiras jurídicas e, para surpresa e mal de todos, apesar de ser um tipo todo com ar de porreiraço, lá para meio do ano começou a dizer que um aluno para ter mais do que treze tinha mesmo que ser brilhante. No final, correu-nos quase todos a treze, certamente porque não viu em nenhum de nós nem uma simples réstia de brilho. O homem tinha a mania de filosofar um bocado e às vezes até lançava propostas corajosas. Certo dia, saiu-se com a ideia de que os alunos é que deveriam escolher os professores que queriam para cada cadeira, mas depois ficou a pensar um pouco, quando um de nós lhe disse que o mais certo era assim haver professores que não teriam alunos. A grande surpresa que o homem me causou, no entanto, não foi esse seu gosto pelo treze e a preocupação com a autodeterminação dos alunos. O que achei estranho foi o facto de ele ir para a faculdade num automóvel do Estado, com um motorista que ficava a secar à espera do fim das aulas, para depois o levar de volta ao gabinete do ministério. Era o que se pode dizer um senhor, com direito a tacho arranjado enquanto não chegava a ministro ou coisa parecida.

Eu via-me constantemente no meio de coisas que ainda poucos meses antes não esperava que pudessem acontecer. Às tantas, dava por mim a pensar até onde haveriam de chegar as surpresas. Mas com o passar do tempo elas próprias começaram a ganhar um estranho estatuto de coisas normais. Lembrei-me de tudo isto quase treze anos depois, quando num fim de tarde conduzia por uma rua estreita de Lisboa e de repente me surgiu pela frente um homem alto e forte, de fato castanho e já com uma idade respeitável. Atravessou vindo não sei de onde, sem olhar, talvez distraído pela conversa que ia tendo com a rapariga que o acompanhava. Era o doutor Mário Soares e eu por pouco não o atropelava. Depois da pequena travagem que tive de fazer, meti a primeira e conduzi até casa apressadamente, porque ia dar um jogo do Sporting na televisão.

António Manuel Venda, 22 de Julho de 1999.

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