Os Livros de Linhagens, a que no século XVI se deu também o nome de Nobiliários, são quatro obras escritas durante a Idade Média onde se descreve a genealogia das principais famílias nobres no reino. O primeiro, também chamado Livro Velho e o quarto, conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro de Barcelos, estão completos. Dos restantes chegaram até nós apenas fragmentos (Segundo de Linhagens, ou Segundo Livro Velho, e Terceiro Livro de Linhagens, ou Nobiliário da Ajuda). O Livro do Conde D. Pedro de Barcelos é o mais desenvolvido dos quatro, tendo o autor pretendido apresentar um resumo da história universal. D. Pedro, Conde de Barcelos, era filho natural de D. Dinis e bisneto de Afonso X. Os Livros de Linhagens foram publicados no século XIX por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Historica, volume dedicado aos Scriptores.
PRIMEIRO LIVRO DE LINHAGENS
COMEÇO DO LIVRO VELHO
Em nome de Deos Amen. Por saberem os homens fidalgos de Portugal de qual linhagem uem, e de quaes coutos, honras, mosteiros, e igreias som naturaes, e per saberem como som parentes fazemos escreuer este liuro uerdadeiramente dos linhagens daqueles que som naturaes e moradores no reino de Portugal estremadamente. E deste liuro se pode seguir muita prol e arredar muito danno: ca muitos uem de bom linhagem e nom o sabem elles, nem o sabem os reis, nem o sabem os grandes homens: ca se o soubessem em alguma maneira lhes uiria ende bem, em algüa maneira, dos senhores. E os outros nom casam como deuem, e casam me pecado porque nom sabem o linhagem. E muitos som naturaes e padroeiros de muitos mosteiros, e de muitas igreias, e de muitos coutos, e de muitas honras, e de muitas terras, que o perdem a mingoa de saber de que linhagem uem: e outros se fazem naturaes de muitos lugares onde o nom som: porque des o tempo delrey D. Affonso o que ganhou Toledo aca forom feitos os mais dos mosteiros, e igreias, e dos coutos, e das honras. Que em tempa deste rey que reinou longamente forom muitos ricos homens, e infançoens que ora poremos por padroens onde descendem os filhos d'algo. Em tempo deste rey foi D. Egas Gomes de Sousa, D. Gonçalo Trastamires da Maya, e D. Mendo Alão de Bragança, e D. Egas Gozendes de Riba do Douro, E D. Moninho Veegas de Riba do Douro, e D. Pedro Tracosendes de Panha de Riba do Douro, e D. Suer Guedez o da Varsea, e D. Fafes Serraciis de Lanhoso, e D . Egas Paes do Boiro de Penagate, E D. Guterre Alderete da Sylua, e D. Pay Guterres de Cunhaens, e D. Vasco Nunes de Baruens, e D. Rodrigo Froiaz de Trastamara que casou em f'ortugal, e D. Vermuim Paes que casou em Portugal; e o conde D. Nuno de Cellanoua que casou, e Ayres Carpinteiro donde uem os Ramyrãos, e Pay Reymondo donde uem os Correãos, e D. Ayras Nunes donde uem os de Valladares, e outros muitos.
Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, p. 143
SEGUNDO LIVRO DE LINHAGENS
LENDA DE GAIA
Este he o linhagem dos mui nobres e muy honrados ricos-homens, e filhos-dalgo da Maya, em como elles vem direitamente do muito alto e mui nobre rey D. Ramiro; e este rey D. Ramiro seve casado com huma rainha, e fege nella rey D. Ordonho; e pois lha filhou rey Abencadão que era mouro, e foilha filhar em Salvaterra no logo que chamão Myer: entom era rey Ramiro nas Asturias: e quando Abencadão tornou adusea para Gaya, que era seu castello, e quando veo rey Ramiro não achou a sa molher e pesoulhe ende muito, e enviou por seu filho D. Ordonho e por seus vassallos, e fretou saas naves, e meteuce em ellas, e veyo aportar a Sanhoane da Furada; e pois que a nave entrou pela foz cobrioa de panos verdes, em tal guiza que cuidassem que erão ramos, ca entonce Douro era cuberto de huma parte e da outra darvores; e esse rey Ramiro vestiosse em panos de veleto, e levou consigo sa espada, e seu corno, e falou com seu filho e com os seus vassalos que quando ouvissem o seu corno que todos lhe acorressem, e que todos jovecem pela ribeira per antre as arvores, fora poucos que ficassem na nave para mantela, e el foice estar a huma fonte que estava perto do castello; e Abencadão era fora do castello, e fora correr seu monte contra Alfão; e huma donzella que servia a rainha levantouce pela menhã que lhe fosse pela agoa para as mãos; e aquella donzella havia nome Ortiga; e ella na fonte achou iazendo rey Ramiro, e nom o conheceo, e el pediolhe dagoa pela aravia e ella deulha por hum autre, e el meteo hum camafeo na boca, o qual camafeo havia partido eom sa molher a rainha pela meadade; el deuse a beber, e deitou o anel no autre, e a donzella foice, e deo agoa a rainha, e cahio-lhe o anel na mão, e conheceoo ela logo: a rainha perguntou quem achara na fonte: ella respondeu que não era hi ninguem: ella dice que mentia, e que lhe nom negace, ca lhe faria por ende bem, e merce; e a donzela lhe disse entom que achara hum mouro doente e lazarado, e que lhe pedira d'agoa que bebece, e ella que lha dera; e entonce lhe disse a rainha que lhe fosse por el, e se hi o achasse que lho adusese. A donzela foi por el, e dicelhe ca lhe mandava dizer a rainha que fosse a ella; e entonces rey Ramiro foise com ella; e el entrando pela porta do paço conheceo-o a rainha, e dicelhe «Rey Ramiro quem te aduse aqui?» E el lhe respondeu «ca o teu amor» : e ella lhe dice que vinha a morrer, e elle lhe respondeu, ca pequena maravilha; e ella dice a donzela que o metese na camara, e que lhe não dese que comese nem que bebece; e a donzela pensou del sem mandado da rainha; e el jazendo na camara chegou Abencadão e derãolhe que jantace, e depois de jantar foise para a rainha; e desque fizerão seu plazer, disse a rainha «se tu aqui tivesses rei Ramiro, que lhe farias?» O mouro então respondeu «o que el a mi faria: matalo.» Então a rainha chamou Ortiga que o adusese da camara, e ella assim o fez, e aduseo ante o mouro, e o mouro lhe disse «es tu rey Ramiro?» e elle respondeu «eu sou» e o mouro lhe perguntou «a que vieste aqui?» elrey Ramiro lhe disse entom «vim ver minha molher que me filhaste a torto; ca tu havias comigo tregoas, e nom me catava de ti:» e o mouro lhe disse «vieste a morrer; mas querote perguntar: se me tiveces em Mier que morte me darias?» Elrey Ramiro era muito faminto e respondeolhe assim «eu te daria um capão assado e huma regueifa, e fariate tudo comer, e dartehia em cima en sa çapa chea de vinho que bebesses: em cima abrira partas do meu curral, e faria chamar todas as minhas gentes, que viessem ver como morrias, e fariate sobir a um padrão, e fariate tanger o corno, ate que te hi sahice o folego.» Então respondeo Abencadão «essa morte te quero eu dar.» E fez abrir os currais, e fezeo sobir em hum padrão que hi entom estava; e começou rey Ramiro enton em seu corno tanger, e começou chamar sua gente pelo corno que lhe acorressem, ca agora havia tempo; e o filho como ouvio, acorreolhe com seus vassallos, e meterão-se pela porta do castello, e el deceuse do padrom adonde estava, e veyo contra elles, e tirou sa espada da bainha, e descabeçando ata o menor mouro que havia em toda Gaya, andarão todos a espada, e nom ficou em essa villa de Gaya pedra sobre pedra que tudo não fosse em terra; e filhou rey Ramiro sa molher com sas donzellas, e quanto haver ahi achou, e meteu na nave, e quando forão a foz d'Ancora amarrarão as barcas, e comerão hi e folgarão, e D. Ramyro deitouce a dormir no regaço da rainha, e a rainha filhouce a chorar, e as lagrimas della caerão a D. Ramiro pelo rostro, e el espertouse, e diselhe, porque chorava, e ella diselhe «choro por o mui bom mouro que mataste» e então o filho que andava hi na nave ouvio aquella palavra que sa madre dissera, e disse ao padre «padre não levemos comnosco mais o demo.» Entom rey Ramiro filhou uma mo que trazia na nave, e ligoulha na garganta, e anchorouha no mar, e des aquella hora chamarão hi Foz d'Ancora. Este Ramiro foice a Myer e fez sa corte, e contoulhe tudo como lhe acaecera, e entom baptisou Ortiga, e casou com ella, e louvoulho toda sa corte muito, e poslhe nome D. Aldara, e fege nella hum filho, e quando naceo poslhe o padre o nome Albozar, e disse entom o padre, que lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia; e morreo rey D. Ramiro. Deos lhe aya saude a alma, requiescat in pace.
Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 180-181
TERCEIRO LIVRO DE LINHAGENS
BATALHA DO SALADO
Os castellaãos ouueram sa contenda grande com os mouros em pasar a ribeira do salado que era em riba do mar. Esto durou gram dia antre eles porque as azes dos mouros se refrescauam e hy moreo grandes gentes. Mais porque os castellaãos eram boõs caualeiros ouueromnos de forçar e pasarom a ribeira. Ali foi a lide tam grande antre eles que todo home que os uise caualeiros castelaãos bem poderia dizer que melhores caualeiros nom auia no mundo. Os mouros se refrescauam mais e mais, e porque uimham folgados feriamnos de toda força. E estando em esta presa os mouros uirom em como os da sa ley eram uençudos por os portugueeses, e em como os ja seguiam dultarom que se mais durasem na lide que os portugueeses lhi dariam nas costas, e começarom de fugir, pero esto nom lhis ualeo muyto, ca os portugueeses lhis sairom adeante. Ali foy a morte deles grande porque os castellaãos os leuauam em encalço e hyam ferindo e deribando em eles. El Rei almofacem quando uyo os seus sayr do campo dise muyto alta uoz os olhos contra o ceo, «Ay deos poderoso, ay deos uencedor, porque desemparasti este uelho coytado de presa de mezquiidade, coberto de mingua de uergonha sobre todolos Reis do mundo? Ay uelho, oie perdiste o teu nome que auyas em toda eyropa em toda africa e em asia.» Lançaua as maãos da barua que tiinha muy longa e caã e mesauaa toda e daua grandes feridas em seu rostro. En aquel tempo chegou alcarac a el e diselhi, «Senhor esto nom uos compre porque quando a senha e a yra de deos uem hu lhe praz todolos conselhos e saberes nom ualem rem. Ydeuos aaz do cural que eu mandei que uos guardasem e per la chegaredes a aliazira em saluo e partiredes uosa morte, que esta muyto acerca, ca podera seer que desmanharam os caualeiros que em ela estam e nom uos atenderam.» Dise el Rei almafacem «dime que caualeiros teens em ela.» Respondeulhi alcarac. «Senhor eles forom XIIII mil em começo e mandey eu os V mil em refrescamento das lides quando ui que todalas algazunas eram ia a lidar e tardauam que nom uenciam e asi ficarom IX mil.» Dise el Rei, «Dime alcarac eses IX mil que dizes que ficarom soom bons caualeiros?» «si senhor, dise alcarac, ca eles todos som alarabes.» Dise el Rei «Alcarac sabe que as costulaçoões do ceo se mudam muy toste segundo o corimento do ceo das pranetas, e as boõas uentuiras e as maas destas costulações nacem pelo poderio que lhis deos ordinhou. E se ora ouuemos maa costalaçom auelaemos boõa. Estes cristaãos ueem desacaudelhados e teem que ia nom podemos tornar a eles, segueme alearac e nom me desempares e tornemos aa lide.» En esto entrou antre estes IX mil caualeiros e tornou o rostro contra hu uiinham os cristaãos, e dise a grandes uozes, «Senhores nenbreuos que eu so o uoso Rei almafacen auenturado e uencedor de todalas lides que fiz, sabedes que eu uenci e soioguey os Reis de soioromeça e de tremecem, e as grandes gentes «dos alaraues» e pasei as montanhas e corí todalas areas e a gram terra de puscoa e de almadia, sabedes que a espanha foy de uosos auoos, estes cristaãos peros que uola teem forçada nom parecerom oie em canpo XIII mil caualeiros, e muytos deles som mortos e som fora de força por o gram trabalho que oie ouuerom, nom percades as famas de bondades de caualeria que sempre ouuestes e os filhos e as filhas e as molheres fremosas, e as grandes requezas que aqui trouuestes.» E dise muyto alta uoz «mafomede mafomede, nom desampares os teus.» Deu das esporas ao caualo muy rigamente contra os cristaãos que yam por seu encalço e dise «marim marim que eu so o Rei almofacem uencedor de todo o que cometi.» E indo a todo seu poder pera ferir da espada, dom alcarac o turco e o Infante bazayne seu filho del Rey encalçaronno e filharonno pela redea do caualo diseromlhi «senhor nom he oie o dia uoso, auedeuos por preso, ca nom queremos que aqui moirades, porque se os cristaãos em uos topam asi todos ueem em tropel nom auedes defensom.» Alcarac entregou el Rei aaquel Infante seu filho e a XX caualeiros e mandou que se fosem indo com el em meyo da az do coral. Alcarac ficou na çaga com dous mil caualeiros os milhores que achou na az do coral e colhia asi todolos mouros que uiinham desbaratados e enuiauaos adeante a az do coral e yase muyto a paso com grande aroído datauaques e danafiis, e os cristaãos que yam per o encalço que em el topauam afastauaos de si fazendo sas esporoadas contra eles muy fremosamente, asi que todos aqueles que em el topauam nom guanharom com el prez. Asi foy defendendo sua çaga que todos os que se colherom a az do coral forom en salvo.
Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 187-188
QUARTO LIVRO DE LINHAGENS OU
NOBILIARIO DO CONDE D. PEDRO DE BARCELOS
PROLOGO
Da linhagem dos homens como vem de padre a filho, des o começo do mundo, e do que cada um viveu e de que vida foi. E começa em Adão, o primeiro homem que Deus fez, quando formou o ceu e a terra.
Em nome de Deus que e fonte e padre de amor, e porque este amor nom sofre nenhuma cousa de mal, porem em servi-lo de coraçom e carreira real, e nenhum melhor serviço nom pode o homem fazer que ama-lo de todo seu sen e seu proximo como si mesmo, porque este precepto e o que Deus deu a Moises na Vedra Lei. Porem eu, conde Dom Pedro, filho do mui nobre rei Dom Dinis, o houve de catar por grão trabalho, por muitas terras, escrituras que falavam dos linhagens. E vendo as escrituras com grande estudo e em como falavam de outros grandes feitos, compuge este livro por ganhar o seu amor e por meter amor e amizade antre os nobres fidalgos da Espanha. E como quer que antre eles deve haver amizade, segundo seu ordenamento antigo, em dando-se fe pera se nom fazerem mal uns aos outros, a menos de tornarem a este amor e amizade per desfazem-se. Esto diz Aristotiles que, se os homens houvessem antre si amizade verdadeira, nom haveriam mester reis nem justiças, ca amizade os faria viver seguramente em o serviço de Deus. E a todolos homens, ricos e pobres, cumpre amizade. E os que som meninos hão mester quem os crie e ensine; e, se som mancebos, hão mester quem os conselhe pera fazer sas cousas seguramente; e, se forem velhos, hão mester que lhes acorram aos seus desfalicimentos. E os amigos verdadeiros devem-se guardar em sas palavras de dizer cousa per que seus amigos nom venham a fama ou a mal, ca per i se desataria a amizade. E nom se devem mover a crer de ligeiro as cousas que lhes deles digam de mal, e devem-se guardar segredos e nom devem retraer as obras que se fezerom. E porque nenhuma amizade nom pode ser tão pura, segundo natura come daqueles que descendem de um sangue, porque estes movem-se mais de ligeiro as cousas por onde se mantem, houve de declarar este livro per títulos e per alegações, que cada um fidalgo de ligeiro esto pudesse saber e esta amizade fosse descoberta e nom se perdesse antre aqueles que a deviam haver E o que me a esto moveu forom sete cousas: A primeira, pera se cumprir e guardar este precepto de que primeiro falamos. A segunda, e por saberem estes fidalgos de quais descenderam de padre a filho e das linhas travessas. A terceira, por serem de um coraçom de haverem de seus enmigos que som em estruimento da fe de Jesu Cristo, ca, pois eles vem de um linhagem e sejam no quarto ou no quinto grau ou dali acima, nom devem poer deferença antre si. E mais que som chegados como primos e terceiros, ca mais nobre cousa e, e mais santa, amar o homem a seu parente alongado per divido, se bom e, que amar ao mais chegado, se faleçudo e. E os homens que nom som de bom conhecer nom fazem conta do linhagem que hajam, senão de irmãos e primos coirmãos e segundos e terceiros; e dos quartos acima nom fazem conta. Estes tais erram a Deus e a si, ca o que tem parente no quinto ou sexto grau, ou dali acima, se e de grão poder, deve-o servir porque vem de seu sangue; e se e seu igual, deveo de ajudar; e se e mais pequeno que si, deve-lhe fazer bem e todos devem ser de um coraçom. A quarta, por saberem os nomes daqueles donde vem e algumas bondadades que em eles houve. A quinta, por os reis haverem de conhecer aos vivos com mercees por os merecimentos e trabalhos e grandes lazeiras que receberom os seus avos em se ganhar esta terra de Espanha per eles. A sexta, pera saberem como podem casar sem pecado, segundo os sacramentos da Santa Igreja. A setima, pera saberem de quais moesteiros som naturais e benfeitores. E por esta materia ser mais crara e os nobres fidalgos saberem por grã parte dos linhagens dos reis e emperadores e dos feitos em breve que forom e passarom nas outras terras do começo do mundo, u os seus avos forom a demandar suas aventuiras por que eles ganharom nome e os que dele decenderom, por algumas nobrezas que ali fezerom, falaremos primeiro do linhagem dos homens e dos reis de Jerusalem, des Adão ataa nacença de Jesu Cristo; e das conquistas que fezerom os reis de Síria e el-rei Farão e Nabucodonosor em Jerusalem. Des i falaremos dos reis da Troia e dos reis de Roma e emperadores, e dos reis da Gram-Bretanha, que ora se chama Inglaterra. Des i dos reis gentis que houve em Persia, e reis e emperadores que houve no Egipto e em Roma, e da destruiçom de jerusalem e como d'i levou Vaspasiano pera Roma os novecentos mil judeus; e dos Godos como entrarom a Espanha e o tempo que em ela viverom, e como ao depois foi perduda per rei Rodrigo, e como foi cobrada per el-rei Palaio, o Montesinho, e per el-rei Dom Afonso o Catolico e per outros reis que apos eles vierom; e como, per soberba de el-rei Dom Ordonho de Leão, os Castelãos fezerom juízes que mantiveram a terra em dereito. E de como destes juízes decenderom os reis de Castela, de uma parte, e da outra, os reis de Navarra. Des i falaremos dos reis de Navarra e dos de Aragom e dos de França e donde decenderom os reis de Portugal.
A DAMA PE-DE-CABRA
Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle. E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte. E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo. E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.
Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.
Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 258-259
O LIDADOR
De dom Gomçallo Meendez da Maya o lidador e das batalhas que ouue
Este dom Gomçallo Meemdez irmãao de dom Soeiro Meemdez o boo como se mostra em este parrafo IIIº suso dito foy adeamtado por elrrey dom Affonsso Amriquez en a fronteyra, e vemçeo muitas lides de que aqui nom fallamos. E huum dia himdo a correr apar de Beja ouue duas lides, huuma com Almoliamar e a outra com Alboaçem rrey de Tanger. E Almoliamar chamousse vemçedor das lides porque era auemturado em ellas, e avia tall força que em todo homem que posesse a lamça nom lhe valia armadura que sse lhe nom quebrasse que lha nom metesse pelo corpo. E ouuerom aquelle dia sua lide muito aficada e acharomsse ambos no campo e deromsse das lamças e forom a terra: e alli faziam huuns e os outros de todas partes muyto pera liurar aquelle com que veera. E estamdo assy a lide muito aficada chegou dom Egas Gomez de Sousa filho de dom Gomez Echigit, e dom Gomez Meemdez Gedeam, e os filhos de dom Egas Moniz de rriba de Doiro e liurarom dom Gomçallo Meemdez e pozeromno em huum cauallo; e ali foy mais aficada a lide assy que os mouros nom no poderom sofrer e foram vemçidos e morto dom Amoleimar, e dom Gomçallo Meemdez chagado de chagas mortaaes. E os christãaos himdosse muy ledos pella vitoria que ouuerom, como quer que delles muytos, despereçessem, oolharom per huum gram campo e virom viir mill de cauallo quamto mais podiam: este era Alboaçem rrey de Tanger que passara aaquem mar por cobrar o castello de Mertola que lhe tiinha forçado huum seu tyo, o quall castello fora de huum seu avoo deste Alboaçem. Este Alboaçem quisera seer na lide primeyra d'Almoleymar e nom pode porque Almol se coytou rompemdo a alua. E disserom a dom Gomçallo Meemdez em como aquellas companhas viinham, e elle chamou todollos seus fidallgos e fez com elles sua falla, que sabiam em como fora vontade de Deus de leixar com elles dom Affomso Amrriquez por guarda daquella frontaria, nom pello elle mereçer mais porque foi sua vomtade, e que como quer que cada huum delles esto mais mereçesse que lhes pedia por mesura que pois os mouros viinham tam açerca e em esto nom podia aver comsselho alomgado que lhes prouguesse del dizer em esto aquello que lhe pareçesse. E elles todos louuaromno como aquell que era muito amado delles, e disselhes «senhores peçouos huum dom que me outorguedes o que vos quero pedir:» e elles louuaromno dizemdo que nom podia seer cousa que elle demandasse que lhes elles nom outorgassem, ca bem çertos eram que nom demandaria senom todo aguisado e sua honrra delles. E porque elle estaua mall chagado e emtemdia em ssy que a lide nom poderia sofrer por as gramdes chagas que tiinha no corpo que lhe dera Almoleymar de que perdia muito sangue de que emfraqueçiam as pernas e os membros, temendosse do caualgar com a fraqueza, o que elle emcubria muy bem a todos, pediolhes que se elle despereçesse naquela lide que ficasse dom Egas Gomez de Sousa em seu logar que era de boa linhagem e de gramdes bomdades. E elles rrespomderom que Deus o guardaria de todo cajam e de todo periigo, e sse tall cousa acomteçesse que elles fariam como lhe elle mamdaua. Este dom Egas Gomez siia casado com dona Gontinha Gonsaluez filha deste dom Gomçalo Meemdez o lidador. A dom Gomçallo Meen dez se mudaua cada vez mais a cara do rrostro e emtemdeo sua fraqueza dom Affomso Ermigic de Bayam e disselhe que sse desarmasse e que sse assentasse no campo, ca elles todos morreriam ant'ell ou vemçeriam, e elle disse que Deus nom quisesse que el escomdesse sua força emquanto lhe podesse durar amtre taaes amigos. E neesto os mouros viinham a gram pressa como aquelles que tiinham que os christãaos achariam cansados e chagados da primeira lide que ouuerom: e neesto disse dom Gomçallo Meemdez, «senhores, estes mouros veem com gram loucura, vaamollos rreçeber.» Alli desarramcarom todos comtra elles e en as primeiras feridas cayo dom Gomçallo Meemdez do cauallo como aquell que estaua ja sem força. E os fidallgos que eram muito seus amigos e estremados em bomdades quamdo viron seu caudell, desejamdo sa vida sobre todallas cousas, faziam cada uez melhor creçendolhes as forças como aquelles que eram mazellados da perda de tall amigo que tiinham que ja o nom podiam vimgar se ali o nom vimgauam. E por esta gram força açemdiasse cada uez mais e mais como aquelles que eram de gram coraçom. E de todas partes do mundo em aquell tempo escrareçiam a sas boomdades das cauallarias que faziam. Alli se espedaçauam capellinas e baçinetes e talhauam escudos e esmalhauam fortes lorigas, e feriromsse de tam dura força de tamanhos golpes que os christãaos da Espanha e os mouros que desto ouuirom fallar dos talhos das espadas que naquel logar forom feitos diserom que taaes golpes nom podiam seer dados por homeens. E esto nom foy marauilha por assy teerem, ca hi ouue golpes que derom per çima dos ombros que femderom meetade dos corpos e as sellas em que hiam e gram parte dos cauallos, e outros talhauam per meyo que as meetades se partiam cada huuma a ssa parte: e disserom que Santiago os fizera com sa mãao, pero a verdade foy esta, elles forom dados por os muy boos fidallgos com ajuda de Samtiago, e os mouros viromsse mal treitos nom o poderom sofrer e forom uençidos. E os christãaos pereçerom melhor da quarta parte: e forom a dom Gomçallo Meemdez e acharomno morto, e a tristeza e o doo dos fidallgos foy muy grande, e leuaromno muito homrradamente. El era d'idade de nouenta e çimquo annos, e alli lhe poserom nome o boo velho lidador como quer que o ja ante chamassem avia gram tempo lidador. E oolharom por as chagas que tiinha e ouuerom por gram marauilha de lhe tanto poder durar a força, ca ellas eram grandes e estauam em logares mortaaes.
Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 279-280