Projecto Vercial

Francisco Rodrigues Lobo


Francisco Rodrigues Lobo

Francisco Rodrigues Lobo nasceu em Leiria em 1580 e faleceu em Lisboa em 1622. É um dos mais importantes discípulos de Camões. Tendo sido influenciado por Gôngora, é considerado o iniciador do Barroco na literatura portuguesa. Era de uma família de cristãos-novos, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, não se conhecendo quaisquer cargos públicos que tenha exercido. Morreu afogado numa viagem de barco que fazia entre Santarém e Lisboa. A nível poético, escreveu romances bucólicos, éclogas e sonetos. Em prosa escreveu a Corte na Aldeia (1619), que é uma coleção de diálogos didáticos sobre preceitos da vida na corte. Esta obra reflete a frustração da nobreza portuguesa pelo desaparecimento da corte nacional sob a dominação filipina.

Obras: Primavera (título geral das três novelas pastoris: Primavera, Pastor Peregrino e Desenganado; 1601); O Pastor Peregrino (1608); Condestabre (1609); Corte na Aldeia (1619).




ALGUNS POEMAS


Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.


Fénix Renascida, I




Mil anos há que busco a minha estrela
E os Fados dizem que ma têm guardada;
Levantei-me de noite e madrugada,
Por mais que madruguei, não pude vê-la.

Já não espero haver alcance dela
Senão depois da vida rematada,
Que deve estar nos céus tão remontada
Que só lá poderei gozá-la e tê-la.

Pensamentos, desejos, esperança,
Não vos canseis em vão, não movais guerra,
Façamos entre os mais üa mudança:

Para me procurar vida segura
Deixemos tudo aquilo que há na terra,
Vamos para onde temos a ventura.


Fénix Renascida, I




Fermoso rio Lis, que entre arvoredos
Ides detendo as águas vagarosas,
Até que üas sobre outras, de invejosas,
Ficam cobrindo o vão destes penedos;

Verdes lapas, que ao pé de altos rochedos
Sois morada das Ninfas mais fermosas,
Fontes, árvores, ervas, lírios, rosas,
Em quem esconde Amor tantos segredos;

Se vós, livres de humano sentimento,
Em quem não cabe escolha nem vontade,
Também às leis de Amor guardais respeito.

Como se há-de livrar meu pensamento
De render alma, vida e liberdade,
Se conhece a razão de estar sujeito?


Primavera, Vales e Montes..., Floresta Undécima





Águas que, penduradas desta altura,
Caís sobre os penedos descuidadas,
Aonde, em branca escuma levantadas,
Ofendidas mostrais mais fermosura,

Se achais essa dureza tão segura,
Para que porfiais, águas cansadas?
Hei tantos anos já desenganadas,
E esta rocha mais áspera e mais dura.

Voltai atrás por entre os arvoredos,
Aonde caminhais com liberdade
Até chegar ao fim tão desejado.

Mas ai! que são de amor estes segredos.
Que vos não valerá própria vontade
Como a mim não valeu no meu cuidado.


Pastoral





Mote

Vai o rio de monte a monte,
Como passarei sem ponte?

Voltas

É o vau mui arriscado,
Só nele é certo o perigo;
O tempo como inimigo
Tem-me o caminho tomado.
Num monte está meu cuidado,
E eu, posto aqui noutro monte,
Como passarei sem ponte?

Tudo quanto a vista alcança
Coberto de males vejo:
D'aquém fica meu desejo
E d'além minha esperança.
Esta, contínua, me cansa
Porque está sempre defronte:
Como passarei sem ponte?


Primavera, Vales e Montes..., Floresta Quinta





ÉCLOGA I

Dizem que já noutra idade
falaram os animais,
e eu creio que por sinais
inda hoje falam verdade.

Ouvi contar como então
se fez valente e temido
um vil jumento, escondido
nos despojos de um leão.

Enquanto de longe o viam
os outros fugiam dele:
eram milagres da pele
do rei, a que eles temiam.


Quis falar, buscou seus danos,
que os outros, com raiva crua,
fazem pagar pela sua
da outra pele os enganos.

Quantos há, na nossa aldeia,
leões e lobos fingidos,
que houveram de andar despidos,
se não fora a pele alheia!


Églogas, I





ÉCLOGA IV

Ontem, quando o Sol naceu,
me pus sobre aquele outeiro,
que a vista me faleceu,
tão triste como o primeiro
que a tristeza conheceu.

Pus estes olhos cansados
no lugar e na ribeira,
nas cabanas e nos gados;
levantei-os de maneira
que estavam d água alagados.

Vi muito gado perdido,
sem pastor, sem pegureiro,
por entre as balsas metido:
aqui, balava um cordeiro,
sem ser da mãe socorrido;


acolá, dava outro balo
a mimosa ovelha branca;
outra jaz morta no valo;
outra, sem poder saltá-lo,
vem entresilhada e manca.

As cabras vão pelo outeiro;
cada qual toma um atalho;
cada qual segue um carreiro;
já não as guarda o rafeiro;
já não nas guia o chocalho.

Já no vale não parece
pastora que o gado leve;
se algum pastor se oferece,
ou sente o mal que padece,
ou teme e sente os que deve.


A terra o gado recebe,
por costume e sem engano;
dá-lhe o de que come e bebe;
não há valado nem sebe,
nem quem o acoime do dano.

Tudo está como deserto;
o mato só se povoa,
e n'aldeia em descoberto,
assim como por acerto
se divisa üa pessoa.

Estão sem gado os currais,
e os pastores sem abrigo;
nas brenhas e pedregais,
moram, como em tempo antigo,
os homens e os animais.

Églogas, IV





ÉCLOGA X

Antes que o sol se levante

Mote

Antes que o Sol se levante,
vai Vilante ver seu gado,
mas não vê Sol levantado
quem vê primeiro a Vilante.

Voltas

É tanta a graça que tem
com üa touca mal envolta,
manga de camisa solta,
faixa pregada ao desdém,
que se o Sol a vir diante,
quando vai mungir o gado,
ficará como enleado
ante os olhos de Vilante.


Descalça, às vezes, se atreve
ir em mangas de camisa;
se entre as ervas neve pisa,
não se julga qual é neve.
Duvida o que está diante,
quando a vê mungir o gado,
se é tudo leite amassado,
se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta,
porque a beatilha encolhe,
de qualquer pastor que a olhe
leva a alma na garganta.
E inda que o Sol se levante
a dar graça e luz ao prado,
já Vilante lha tem dado,
que o Sol tomou de Vilante.


Éclogas, X





MOTE

Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...

VOLTAS

Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...


Se algüa tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhüa se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...

São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!


Primavera, Praias do Tejo, Floresta Terceira





VILANCETE

Zagala, os teus olhos,
Picam, e não são tojos!
Nos bois o aguilhão
Não faz tanto dano
Como um seu engano
No meu coração.
Num jeito que dão,
Zagala, os teus olhos,
Picam mais que tojos!

Nem naquele ensejo,
Quando mosca o gado,
Fica tão picado
Como eu quando os vejo;
Este meu desejo,
Zagala, e teus olhos,
Picam, e não são tojos!


Se, de mim zombando,
Sorrindo-te os mudas,
Com pontas agudas
Me estão traspassando;
Mais picado ando
De ver os teus olhos
Que de arrancar tojos!

Setas no ferir
São suas pestanas
Que eu temo, e me enganas
Em vendo-as bulir;
Mas não sei fugir
Piques dos teus olhos,
Que são mais que tojos!





CANTIGA

Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com üa sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.


As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.


Também nós imos já perto da Fonte;
E, Em quanto no cantar nos entretemos,
Temo que a vinda cá pouco nos monte.

Dizes bem; melhor é nos desviemos,
Por que nos não divisam nem por sonho,
Que, uma só que nos veja, as não veremos.

E mais, se eu não vou cego, daqui ponho
Que são as que lá assomam na treposta.
De só cuidares isso me envergonho.

Tu não me queres crer? Vá sobre aposta.
Mui bem dizes, daquelas são sem falta;
Passas tu como furão pola posta?


Madanela é de todas a mais alta,
Que aparece vestida de pombinho;
Também Andresa vai: nada nos falta.

O adufe ouço, ouço o pandeirinho;
Vamo-nos por detrás deste valado:
Iremos encontrá-las ao caminho.
Afasta ora estas silvas com o cajado.





Carta que o autor escreveu a um amigo que estava fugido da peste em uma quinta sua, com a Écloga seguinte, que compôs no mesmo tempo.

Cá neste monte estéril, seco e alto,
Para onde vim fugindo do castigo
Que em tantos montes deu tão grande assalto,

À vista do destroço e do perigo
Que me ameaça, estou continuamente
Fazendo estreitas contas só comigo.

Mas até neste estado descontente,
Aonde não tem lugar outra lembrança,
Sempre, senhor, na minha estais presente.

Lá voa o pensamento e lá descansa,
Aonde vós, descuidado, descansais,
Se em tal tormenta alguém goza bonança!

Se lá não chega o eco de meus ais,
O sentimento e mal de minhas dores,
Que à vista das alheias crescem mais,

Os queixumes ouvi dos meus pastores,
Como algum hora, mais alegre, ouvistes
As graças e o louvor de seus amores.

E, pelo que em meus olhos sempre vistes,
Julgareis se fugi com força ou gosto
De quem (para mor mal) foge dos tristes.

Porém o couto é tal, aonde estou posto,
Que mais tem semelhança do tormento
Do que para os fugidos melhor rosto.

Graças ao meu provado sofrimento,
Que faz tão pouca conta do seu dano
Que ainda culpa o fado de avarento,

Lá vos envio Gil, Franco e Montano;
Eles darão sinal do que eu padeço,
Sem refolho, sem erro e sem engano.

O que há neste desvio vos ofreço:
O estilo, as palavras tão singelas,
A que tirou a arte a graça e preço.

Porém não dana ouvi-las e sabê-las;
Tirai-lhe a casca como a qualquer fruta
E então direis do fruito que achais nelas.

E, se algum dos censores que me escuta
(Que, por mais fundo vau que estê diante,
Sem asas quer passar com a roupa enxuta)

Disser que é ser pastor ser ignorante,
Nem as razões estão só no concerto,
Nem no vestir custoso o ser galante.



Vós que a verdade vedes mais ao perto,
Aceitai, Paiva ilustre, o meu cuidado,
Que vai qual sofre o mal deste deserto.

E, enquanto nele vivo desterrado,
Aonde nenhum prazer já me convida,
Me avisai se estais livre e descansado;
Terei prazer, descanso, gosto e vida.


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