Projecto Vercial

Fernão Lopes


Fernão Lopes (1380?-1460?) terá nascido em Lisboa, de uma família do povo. É considerado o maior historiógrafo de língua portuguesa, aliando a investigação à preocupação pela busca da verdade. Foi escrivão de livros do rei D. João I e «escrivão da puridade» do infante D. Fernando. D. Duarte concedeu-lhe uma tença anual para ele se dedicar à investigação da história do reino, devendo redigir uma Crónica Geral do Reino de Portugal. Correu a província a buscar informações, informações estas que depois lhe serviram para escrever as várias crónicas (Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. Fernando, Crónica de D. João I, Parte I e II, Crónica de Cinco Reis de Portugal e Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal). Foi «guardador das escrituras» da Torre do Tombo.




CRÓNICA DE D. PEDRO I


Como foi trelladada Dona Ines pera o moesteiro Dalcobaça, e da morte delRei Dom Pedro

Por que semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa, porem disserom os antiigos quc nenhuum he tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assi como Adriana e Dido, e outras que nom nomeamos, segumdo se lee em suas epistolas, respomdesse que nom fallamos em amores compostos, os quaaes alguuns autores abastados de eloquemcia, e floreçentes em bem ditar, hordenarom segumdo lhes prougue, dizemdo em nome de taaes pessoas, razoões que numca nenhuuma dellas cuidou; mas fallamos daquelles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fumdamento teem sobre verdade. Este verdadeiro amor ouve elRei Dom Pedro a Dona Enes como se della namorou, seemdo casado e aimda Iffamte, de guisa que pero dela no começo perdesse vista e falla, seemdo alomgado, como ouvistes, que he o prinçipal aazo de se perder o amor, numca çessava de lhe emviar recados, como em seu logar teemdes ouvido. Quanto depois trabalhou polla aver, e o que fez por sua morte, e quaaes justiças naquelles que em ella forom culpados, himdo contra seu juramento, bem he testimunho do que nos dizemos. E seemdo nembrado de homrrar seus ossos, pois lhe ja mais fazer nom podia, mandou fazer huum muimento dalva pedra, todo mui sotillmente obrado, poemdo emlevada sobre a campãa de çima a imagem della com coroa na cabeça, como se fora Rainha; e este muimento mandou poer no moesteiro Dalcobaça, nom aa emtrada hu jazem os Reis, mas demtro na egreja ha maão dereita, açerca da capella moor. E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Samta Clara de Coimbra, hu jazia, ho mais homrradamente que se fazer pode, ca ella viinha em huumas andas, muito bem corregidas pera tal tempo, as quaaes tragiam gramdes cavalleiros, acompanhadas de gramdes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e domzellas, e muita creelezia. Pelo caminho estavom muitos homeens com çirios nas maãos, de tal guisa hordenados, que sempre o seu corpo foi per todo o caminho per antre çirios açesos; e assi chegarom ataa o dito moesteiro, que eram dalli dezassete legoas, omde com muitas missas e gram solenidade foi posto em aquel muimento: e foi esta a mais homrrada trelladaçom, que ataa aquel tempo em Portugal fora vista. Semelhavelmente mandou elRei fazer outro tal muimento e tam bem obrado pera si, e fezeo poer açerca do seu della, pera quamdo se aqueeçesse de morrer o deitarem em elle. E estamdo el em Estremoz, adoeçeo de sua postumeira door, e jazemdo doemte, nembrousse como depois da morte Dalvoro Gomçallvez e Pero Coelho, el fora çerto, que Diego Lopes Pachequo nom fora em culpa da morte de Dona Enes, e perdohou-lhe todo queixume que del avia, e mandou que lhe emtregassem todos seus beens; e assi o fez depois elRei Dom Fernamdo seu filho, que lhos mandou emtregar todos, e lhe alçou a semtemça que elRei seu padre comtra elle passara, quamto com dereito pode. E mandou elRei em seu testamento, que Ihe tevessem em cada huum ano pera sempre no dito mosteiro seis capellaaens, que cantassem por el e lhe dissessem cada dia huuma missa oficiada, e sahirem sobrel com cruz e augua beemta: e elRei Dom Fernamdo seu filho, por se esto melhor comprir e se cantarem as ditas missas, deu depois ao dito moesteiro em doaçom por sempre o logar que chamam as Paredes, termo de Leirea, com todallas rendas e senhorio que em el avia. E leixou elRei Dom Pedro em seu testamento çertos legados, a saber, aa Iffamte Dona Beatriz sua filha pera casamento cem mil livras; e ao Iffamte Dom Joham seu filho viimte mil livras; e ao Iffamte Dom Denis outras viinte mil; e assi a outras pessoas. E morreo elRei Dom Pedro huuma segumda feira de madurgada, dezoito dias de janeiro da era de mil e quatro cemtos e cimquo anos, avemdo dez annos e sete meses e viimte dias que reinara, e quaremta e sete anos e nove meses e oito dias de sua hidade, e mandousse levar aaquel moesteiro que dissemos, e lamçar em seu muimento, que esta jumto com o de Dona Enes. E por quamto o Iffamte Dom Fernamdo seu primogenito filho nom era estomçe hi, foi elRei deteudo e nom levado logo, ataa que o Iffamte veo, e aa quarta feira foi posto no muimento. E diziam as gentes, que taaes dez annos numca ouve em Portugal, como estes que reinara elRei Dom Pedro.

Como elRei mandou degollar dous seus criados, porque roubarom huum judeu e o matarom

Este Rei Dom Pedro em quanto viveo, husou muito de justiça sem afeiçom, teendo tal igualdade em fazer direito, que a nenhuum perdoava os erros que fazia, por criaçom nem bem querença que com el ouvesse; e se dizem que aquel he bem aventurado Rei, que per si escodrinha os malles e forças que fazem os pobres, e bem he este do conto de taaes, ca el era ledo de os ouvir, e folgava em lhes fazer direito, de guisa que todos viviam em paz, e era ainda tam zeloso de fazer justiça, espeçiallmente dos que travessos eram, que perante si os mandava meter a tormento, e se confessar nom queriam, el se desvestia de seus reaaes panos, e per sua maão açoutava os malfeitores, e pero que dello muito prasmavom seus conselheiros e outros alguuns, anojavasse de os ouvir, e nom o podiam quitar dello per nenhuuma guisa. Nenhuum feito crime mandava que se desembargasse salvo perantelle, e se ouvia novas dalguum ladrom ou malfeitor, alongado muito donde el fosse, fallava com alguum seu de que se fiava, prometendolhe merçees por lho hir buscar, e mandavalhe que nom vehesse ante elle, ataa que todaria lho trouvesse aa maão; e assi lhos tragiam presos do cabo do reino, e lhos apresentavom hu quer que estava; e da mesa se levantava, se chegavom a tempo que el comesse, por os fazer logo meter a tormento; e el meesmo poinha em elles maão quando viia que confessar nom queriam firindoos cruellmente ataa que confessavam. A todo o logar honde elRei hia, sempre achariees prestes com huum açoute, o que de tal offiçio tiinha encarrego, em guisa que como a elRei tragiam alguum malfeitor, e el dizia chamemme foaão que traga o açoute, logo elle era prestes sem outra tardança. E pois que escrepvemos que foi justiçoso, por fazer dereito em reger seu poboo, bem he que ouçaaes duas ou tres cousas: por veerdes o geito que em esto tiinha. Assi aveo que pousando el nos paaços de Bellas que el fezera, dous seus escudeiros que gram tempo avia que com el viviam, seendo ambos parceiros ouverom comselho que fossem roubar huum Judeu que pelos montes andava vendendo speçearia, e outras cousas, e foi assi de feito, que forom buscar aquella çuja prea e roubaromno de todo, e o peor desto, foi morto per elles; sua ventura que lhe foi contraira, aazou de tal guisa que forom logo presos e tragidos a elRei ali hu pausava. ElRei como os vio tomou gram prazer por seerem filhados, e começouhos de preguntar como fora aquello, elles pensando que longa criaçom e serviço que lhe feito aviam, o demovesse a ter alguum geito com elles, nom tal como tiinha com outras pessoas, começarom de negar, dizendo que de tal cousa nom sabiam parte. El que sabia ja de que guisa fora, disse que nom aviam por que mais negar, que ou confessassem como ho matarom, se nom que a poder de cruees açoutes lhe faria dizer a verdade: elles em negando, virom que elRei queria poer em obra o que lhe per pallavra dizia, comfessarom todo assi como fora; e elRei sorrindosse disse que fezerom bem, que tomar queriam mester de ladroões e matar homeens pelos caminhos, de se ensinarem primeiro dos Judeus, e depois viinriam aos Christãos; e em dizendo estas e outras palavras passeava perantelles dhuma parte aa outra, e parece que nenbrando-lhe a criaçom que em elles fezera e como os queria mandar matar, viinham-lhe as lagrimas aos olhos per vezes; depois tornava asperamente contra elles reprendendoos muito do que feito aviam, e assi andou per huum grande espaço. Os que hi estavam que aquesto viam, sospeitando mal de suas razoões, aficavamse muito a pedir merçee por elles, dizendo que por huum Judeu astroso nom era bem morrerem taaes homeens, e que bem era de os castigar per degredo, ou outra alguuma pena, mas nom mostrar contra aquelles que criara pello primeiro erro tam grande crueza. ElRei ouvindo todos respondia sempre que dos Judeos viinriam depois aos Christaãos, en fim destas e outras razoões, mandou que os degollassem, e foi assi feito.

A Portugal forom tragidos Alvoro Gomçallvez e Pero Coelho, e chegarom a Samtarem omde elRei Dom Pedro era; e elRei com prazer de sua viimda, porem mal magoado por que Diego Lopez fugira, os sahiu fora arreçeber, e sanha cruel sem piedade lhos fez per sua maão meter a tromento, queremdo que lhe confessassem quaaes forom na morte de Dona Enes culpados, e que era o que seu padre trautava contreelle, quamdo amdavom desa viindos por aazo da morte della; e nenhuum delles respomdeo a taaes preguntas cousa que a elRei prouvesse; e elRei com queixume dizem que deu huum açoute no rostro a Pero Coelho, e elle se soltou emtom comtra elRei em desonestas e feas pallavras, chamamdolhe treedor, fe perjuro, algoz e carneçeiro dos homeens; e elRei dizemdo que lhe trousessem çebolla e vinagre pera o coelho, emfadousse delles e mandouhos matar. A maneira de sua morte, seendo dita pelo meudo, seria mui estranha e crua de comtar, ca mandou tirar o cora çom pellos peitos a Pero Coelho, e a Alvoro Gomçallves pellas espadoas; e quaaes palavras ouve, e aquel que lho tirava que tal officio avia pouco em costume, seeria bem doorida cousa douvir, emfim mandouhos queimar; e todo feito ante os paaços omde el pousava, de guisa quc comendo oolhava quamto mandava fazer. Muito perdeo elRei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual foi avudo em Portugal e em Castella por mui grande mal, dizemdo todollos boons que o ouviam, que os Reis erravom mui muito himdo comtra suas verdades, pois que estes cavalleiros estavom sobre seguramça acoutados em seus reinos.

Como elRei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Enes que fora sua molher reçebida, e da maneira que em ello teve

Ja teemdes ouvido compridamente hu fallamos da morte de Dona Enes, a razom por que a elRei Dom Affonsso matou, e o grande desvairo que amtrelle e este Rei Dom Pedro seemdo estomçe Iffamte ouve por este aazo. Hora assi he que em quamto Dona Enes foi viva, nem depois da morte della em quamto elRei seu padre viveo, nem depois que el reinou, ataa este presemte tempo, nunca elRei Dom Pedro a nomeou por sua molher; ante dizem que muitas vezes lhe emviava elRei Dom Affonsso pre gumtar se a reçebera e homrrallahia como sua molher, e el respomdia sempre que a nom reçebera nem o era. E pousamdo elRei em esta sazom no logar de Cantanhede, no mes de Junho, avemdo ja huuns quatro annos que reinava, teendo horde nado de a pubricar por molher, estamdo antelle Dom Joham Affonsso comde de Barcellos seu mordomo moor, e Vaasco Martins de Sousa seu chamçeller, e meestre Affonso das leis, e Joham Estevez privados, e Martim Vaasquez senhor de Gooes, e Gonçallo Meemdez de Vaascomçellos, e Johane Meemdes seu irmaão, e A1voro Pereira, e Gomçallo Pereira, e Diego Gomez, e Vaasco Gomez Daavreu, e outros muitos que dizer nom cura mos, fez elRei chamar huum tabaliam, e presemte todos jurou aos evamgelhos per el corporalmente tangidos, que seemdo el Iffamte, vivemdo aimda ElRei seu padre, que estando el em Bragamça podia aver huuns sete annos, pouco mais ou meos, nom se acordamdo do dia e mez, que el reçebera por sua molher lidema per pallavras de presemte como manda a samta igreja Dona Enes de Castro, filha que foi de Dom Pero Fernamdez de Castro, e que essa Dona Enes reçebera a elle por seu marido per semelhavees palavras, e que depois do dito reçebimento a tevera sempre por sua molher ataa o tempo de sua morte, vivemdo ambos de consuum, e fazemdosse maridança qual deviam. E disse entomçe elRei Dom Pedro, que por quamto este reçe bimento nom fora exemprado nem claramente sabudo a todollos de seu senhorio em vida do dito seu padre, por temor e reçeo que del avia que porem el por desemcarregar sua conçiemçia e dizer verdade e nom seer duvida a alguuns, que do dito reçebi mento tiinham nom boa sospeita, se fora assi ou nom: que el dara de si fe e testimunho de verdade, que assi se passara de feito como dito avia, e mandou aquel taballiam que presemte estava, que desse dello estormentos a quaaesquer pessoas que lhos requeressem, e por entom nom se fez mais.




CRÓNICA DE D. FERNANDO


Como elRei Dom Fernamdo reçebeo de praça Dona Lionor por molher, e foi chamada Rainha de Portugal.

Andou elRei per seu reino folgamdo, tragemdo comsigo Dona Lionor ataa que chegou antre Doiro e Minho a huum moesteiro que chamam Leça, que he da hordem do espital, e alli determinou elRei de a receber de praça; e em huum dia pera isto assiinado, foi a todos preposto por sua parte dizemdo em esta guisa. «Amigos, bem sabees como a hordem do casamento he huum dos nobres sacramentos, que Deos em este mundo hordenou, pera nom soomente os Reis, mas aimda os outros homeens, viverem em estado de salvaçom, e os Reis averem per lidema linhagem quem depos elles soçeda o reiino, e regimento real que lhe Deos deu; porende elRei nosso senhor querendo viver em este estado, segumdo a el perteeçe, e comsiiramdo como a mui nobre Dona Lionor, filha de Dom Martim Affonsso Tello, e de Dona Aldomça de Vascomçellos, deçemde da linhagem dos Reis, des i como todollos gramdes e moores fidallgos destes reinos tem com ella gramde divedo de paremtesco, os quaaes reçebendo delRei homrra, como he aguisado sejam por ello mais theu dos de o ajudar a defemder a terra; e oolhamdo outro si como a dita Dona Lionor he molher mui comvinhavel pera elle, por as razoões sobre ditas: tem trautado com ella seu casamento, e poremde a quer reçeber de praça per pallavras de presemte, como manda a samta egreja; e lhe emtemde de dar taaes villas e logares de seu senhorio, por que ella possa manteer homrroso estado de Rainha, como lhe perteemçe». Emtom a reçebeo elRei peramte todos, e foi notificado pello reino como era sua molher, de que os gramdes e pequenos ouverom mui gram pesar. E deu-lhe elRei logo Villa viçosa, e Avramtes, e Almadaã, e Simtra, e Torres vedras, e Alamquer, e Aatouguia, e Oobidos, e Aaveiro, e os regueemgos de Sacavem, e Freellas, e Unhos, e terra de Merlles em riba de Douro; e dalli em deamte foi chamada Rainha de Portugal, e beijaromlhe a maão per mandado delRei quamtos grandes no reino avia, assi homeens como molheres; reçebemdoa por senhora todallas villas e çidades de seu senhorio, afora. o Iffante Dom Denis, posto que meor fosse que o Iffamte Dom Joham, que numca lha quis beijar; por a qual razom elRei Dom Femando lhe quisera dar com huuma daga, se nom fora Gil Vaasquez de Resende seu ayo, e Airas Gomez da Silva ayo delRei Dom Femamdo, que desviarom elRei de o fazer; dizemdo elRei sanhudamente contra elle: «Que nom avia ver gomça nenhuuma, beijarem a maão aa Rainha sua molher o Iffamte Dom Joham, que era moor que elle, e isso meesmo seu irmaão, e todollos outros fidallgos do reino, e el soomente dizer que lha nom beijaria, mas que lha beijasse ella a elle». E desta guisa andava o Iffamte Dom Denis assi como omeziado da corte, e o Iffamte Dom Joham ficou com elRei e com a Rainha muito amado e bem quisto; por que seemdo o mayor no reino, se ofereçera de boom grado de beijar a maão aa Rainha, e fora aazo e caminho a outros muitos de gramde estado: porem todol los do reino de qual quer comdiçom que fossem, eram disto mui mal contentes.

Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo

Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento. E delles diziam que melhor fezera elRei teella por tempo, e des i casar com outra molher; mas que esto era cousa que mui poucos ou ne nhuum, posto que emtemdessem que tal amor lhe era danoso, o leixavom depois e desemparavom, moormente nos mançebos anos. E leixadas as fallas dalguuns simprezes, que em favor delle razoavom, dizendo que nom era maravilha o que elRei fezera, e que ja a outros acomteçera semelhavel erro, avemdo gramde amor a alguumas molheres; dos ditos dos emtemdidos fundados em siso, alguuma cousa digamos em breve: os quaaes fallamdo em esto o que pareçia, diziam que tal bem queremça era muito demgeitar, moormente nos Reis e senhores, que mais que nenhuuns dos outros desfaziam em si per liamça de taaes amores. Ca pois que os antiigos derom por doutrina, que ho Rei na molher que ouvesse de tomar, principalmente devia desguar dar nobreza de geeraçom, mais que outra alguuma cousa, que aquel que o comtrario desto fazia, nom lhe viinha de boom siso, mas de samdiçe, salvo se husamça dos homeens em tal feito lhe emprestasse nome de sesudo: e pois que elRei Dom Fernamdo leixava filhas de tam altos Reis; com que lhe davom gramdes e homrrosos casamentos, e tomava Dona Lionor, que tantos com trairos tiinha pera o nom ser, que bem devia seer posto no conto de taaes. Outros diziam, que isto era assi como door da qual ao homem prazia e nom prazia, dizemdo que todollos sabedores concordavom, que todo homem namorado tem huuma espeçia de samdiçe; e esto por duas razoões, a primeira por que aquello que em alguuns he causa intrimseca das outras maneiras de sam diçe, he em estes causa de taaes amores: a segunda por que a virtude extimativa, que he emperatriz das outras potemçias da alma açerca das cousas senssivees, he tam doemte em taaes homeens, que nom julga o ogeito da cousa que vee tal qual elle he, mas tal qual a elle parece; ca el jullga a fea por fremosa, e aquella que traz dampno seer a elle proveitosa; e por tanto todo juizo da razom he sovertido açerca de tal ogeito, em tanto que qual quer outra cousa que lhe consselhem, podera bem reçeber; mas quamto açena de tal molher a elle prazivel, cousa que lhe digam do boom comsselho nom reçebe, se o consselho he que a leixe e nom cure delle, ante lhe faz huum acreçentamento de door, que he fora de todo boom juizo; de guisa que se he tal pessoa o que comsselhou, de que possa tomar vimgamça, tomaa assi como fez elRei Dom Fernamdo, que mandou fazer justiça em alguuns do seu poboo, que o bem comsselhavom em semelhamte caso, segundo ja teendes ouvido.



CRÓNICA DE D. JOÃO I

PRÓLOGO

Página da Crónica de D. João I

Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom cárrego d'ordenar estorias, moormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam e u forom nados seus antigos avoos, seendo-lhe muito favorávees no recontamento de seus feitos; e tal favoreza como esta nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo conformidade dalgüa cousa ao entendimento do homem. Assi que a terra em que os homeés per longo costume e tempo forom criados geera üa tal eonformidade antre o seu entendimento e ela que, avendo de julgar algüa sua cousa, assim em louvor como per contrairo, nunca per eles é dereitamente recontada; porque, louvando-a, dizem sempre mais daquelo que é; e, se doutro modo, nom escrevem suas perdas tam minguadamente como acontecerom.

Outra cousa geera ainda esta conformidade e natural inclinaçom, segundo sentença dalguüs, dizendo que o pregoeiro da vida, que é a fame, recebendo refeiçom pera o corpo, o sangue e espritos geerados de taes virandas tem üa tal semelhança antre si que causa esta conformidade. Alguüs outros teveron que esto decia na semente, no tempo da geeraçom; a qual despõe per tal guisa aquelo que dela é geerado, que lhe fica esta conformidade tam bem acerca da terra como de seus dívidos.

E assi parece que o sentio Túlio, quando veo a dizer: «Nós nom somos nados a nós meesmos, porque üa parte de nós tem a terra e outra os parentes.» E porém o juizo do homem, acena de tal terra ou pessoas, recontando seus feitos, sempre çopega.

Esta mundanal afeiçom fez a alguüs estoriadores que os feitos de Castela com os de Portugal escreverom, posto que homeës de boa autoridade fossem, desviar da dereita estrada e correr per semideiros escusos, por as mínguas das terras de que eram em certos passos claramente nom seerem vistas; e espicialmente no grande desvairo que o mui virtuoso Rei da boa memoria Dom Joam, cujo regimento e reinado se segue, ouve com o nobre e poderoso Rei Dom Joam de Castela, poendo parte de seus boõs feitos fora do louvor que mereciam, e ëadendo em alguãs outros da guisa que nom acontecerom, atrevendo-se a pubricar esto em vida de taes que lhe forom companheiros, bem sabedores de todo o contrairo.

Nós certamente levando outro modo, posta a de parte toda a afeiçom que por aazo das ditas razões aver podiamos, nosso desejo foi em esta obra escrever verdade, sem outra mestura, leixando nos boõs aqueecimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao poboo quaesquer contrairas cousas, da guisa que aveerom.

E se o Senhor Deos a nós outorgasse o que a alguüs escrevendo nom negou, convem a saber, em suas obras clara certidom da verdade, sem duvida nom soomente mentir do que sabemos mas ainda errando, falso nom queriamos dizer; como assi seja que outra cousa nom é errar salvo cuidar que é verdade aquelo que é falso. E nós, engando per ignorancia de velhas escrituras e desvairados autores, bem podiamos ditando errar; porque, escrevendo homem do que nom é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas mentira em este volume é muito afastada da nossa voontade. Ó! com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros de desvairadas linguageës e terras! e isso meesmo púbricas escrituras de muitos cartários e outros logares, nas quaes, depois de longas vegilias e grandes trabalhos mais certidom aver non podemos da conteúda em esta obra. E seendo achado em alguüs livros o contrairo do que ela fala, cuidae que nom sabedormente mas errando muito, disserom taes cousas.

Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade de palavras, e nom a certidom das estorias, desprazer-lhe-á de nosso razoado, muito ligeiro a eles d'ouvir e nom sem gram trabalho a nós de ordenar. Mas nós, nom curando de seu juizo, leixados os compostos e afeitados razoamentos, que muito deleitom aqueles que ouvem, ante poemos a simprez verdade que a afremosentada falsidade. Nem entendaes que certificamos cousa, salvo de muitos aprovada e per escrituras vestidas de fé; doutra guisa, ante nos calariamos que escrever cousas falsas.

Que logar nos ficaria pera a fremosura e afeitamento das palavras, pois todo nosso cuidado em isto despes nom basta pera ordenar a nua verdade? Porém, apegando-nos a ela firme, os claros feitos, dignos de grande renembrança, do mui famoso Rei Dom Joan, seendo Meestre, de que guisa matou o conde Joam Fernández, e como o poboo de Lisboa o tomou primeiro por seu regedor e defensor, e depois outros alguüs do reino, e d'i em deante como reinou e em que tempo, breve e sãamente contados, poemos em praça na seguinte ordem.

Crónica de D. João I, Primeira Parte, Prólogo


AMEAÇA CONTRA OS JUDEUS


Passado aquel grande arroído com que as gentes da cidade chegarom ao paaço da Rainha e que o Bispo foi morto, geerou-se antr'eles üa uniom de mortal odio contra quaesquer que sua entençom nom tiinham, em tanto que neuü logar era segura aaqueles que nom seguiam sua opiniom. Cada uü dava folgança a seu oficio, e toda sua ocupaçom era juntar-se em magotes a falar na morte do conde e cousas que aviam acontecido. Des i, pois el-Rei de Castela deziam que viinha ao reino, que maneira se teeria na defensom dele ; e uüs nomeavom o Ifante Dom Joam, dizendo que a el pertencia o reino de dereito; outros deziam que no podia seer, ca era já preso em Castela, e que nunca avia de seer solto, ou que per ventuira o matariam por esto aazo; e pois esto assi acontecera, que compria mais Ifante no reino, salvo o Meestre d'Avis, que era filho del-Rei Dom Pedro come o outro? – e que este tomassem por seu rei e senhor.

Gastado aquel dia em taes falamentos, na seguinte manhaã tornarom a semelhantes razões; e contando cada uü o que lhe parecia de taes feitos, naceo antreles uü novo acordo, dizendo que era bem de roubar alguüs judeus ricos da Judaria, assi como Dom Iuda, que fora tesoureiro moor del-Rei Dom Fernando, e Dom David Negro, que era grande seu privado, e outros; e que destes poderia aver o Meestre mui gram riqueza pera soportamento de sua honra. E falando uüs com os outros pera o poer em obra, começou-se d'alvoraçar e juntar muito poboo.

Os judeus, como isto sentirom, nom curarom d'ir aa Rainha, mas forom-se a pressa alguüs deles aas casas de Joam Gil, junto com a See, onde o Meestre aquela noite dormira; e disserom ao Meestre que os da cidade se alvoraçavom pera os irem roubar e matar todos, e que lhe pediam por mercee que lhe acorresse a pressa, se nom que todos eram mortos. O Meestre dezia que se fossem aa Rainha, que el nom tiinha com aquelo que fazer, e eles se aficavom cada vez mais, pedindo-lhe trigosamente acorro.

Os condes Dom Joam Afonso e Dom Álvoro Pérez, que estavom com o Meestre, quando virom que se el escusava, disserom, com doo que ouverom deles:

– Ó Senhor, por mercee ii lá, ante que comecem, e nom lho leixees fazer; ca, depois que começarem, seer-vos-am mui maos de desviar de tal feito.

Cavalgou estonce o Meestre e os condes com ele, e foi-se logo lá; e quando chegou aa Judaria, achou gram parte dos da cidade, que se juntavom quanto podiam; e todos alvoraçados pera entrarem dentro e roubarem. E disse estonce o Meestre contra eles:

– Que é isto, amigos? Que obra é esta que querees fazer?

– Senhor – disserom eles – estes treedores destes judeus, Dom Iuda e Dom David Negro, que som da parte da Rainha, teem grandes tesouros escondidos, e queremos-lhos tomar e dá-los a vós, que queremos por nosso senhor.

– Amigos – disse ele – nom queiraes esta cousa fazer, mas leixae vós a mim esse cuidado, e eu poerei sobr'elo remédio.

– Senhor – disserom eles – nom assi, mas nós iremos buscar os treedores onde jazem escondidos e trazê-los-emos a vós. e averees todo quanto eles tem.

O Meestre dizendo que nom curassem daquelo e eles aperfiando que si, era-lhe grave cousa desviá-los de sua voontade.

Disserom estonce os condes ao Meestre: – Senhor, queeres bem fazer? Partii-vos daqui, e ir-se-á esta gente toda com vosco, e nom curaróm mais disto que fazer querem.

E o Meestre feze-o assi, e forom-se todos com el pela Rua Nova; e ficando poucos, desfeze-se gram parte daquela assüada. Ali disse o Meestre a Antam Vaásquez, que era juiz do crime na cidade, que mandassem apregoar da parte da Rainha, sob certa pena, que nom fosse neuü tam ousado de ir aa Judaria por fazer mal a judeus; e el disse que o mandaria apregoar da sua parte, mas nom já da Rainha; e o Meestre lhe defendeo que o nom fezesse, e el nom curou em esto de sua defesa, e mandou-o apregoar da sua parte.

As gentes todas, quando ouvirom este pregom, folgavom muito em suas voontades; e deziam uüs contra os outros:

– Que fazemos estando? Tomemos este homem por senhor e alcemo-lo por Rei! E el ouvia estas cousas e filhava-se a sorrir, louvando Deos muito em seu coraçom que tal desejo poínha no poboo contra ele; entom se tornarom el e os condes pera a See, e i descavalgarom pera ouvir missa.

Crónica de D. João I, Primeira Parte, cap. XIV



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