Projecto Vercial

A Literatura Portuguesa no Século XIX


I

Os termos expressores de ideias muito vastas, muito complexas e de uso muito frequente, são difíceis de definir. Como exprimem ideias muito vastas há o perigo de deixar fora da definição objectos que ela deveria abranger. Como enunciam ideias muito complexas corre-se o risco de esquecer ou confundir caracteres constitucionais ou diferenciais. Finalmente, como são de uso muito frequente, adquirem mesmo, pelo facto de serem empregados por uma numerosa maioria de espíritos pouco precisos, alguma coisa de indeterminado e vago. Daqui a dificuldade de definir dum modo complexo e exacto palavras como Religião, Arte, Indústria ou Política. Daqui também a dificuldade de dizer cabalmente o que seja Literatura.

É porém provável que uma análise da noção corrente, procedendo por uma série de aglutinações e exclusões, nos conduza a uma ideia satisfatória do objecto de que se trata. Naturalmente uma tal análise deve basear-se na enumeração dos objectos a que o termo corresponde na língua ordinária, e concluir pela determinação dos caracteres importantes comuns à maioria desses objectos, excluindo do significado da palavra definida aqueles a que só por um emprego abusivo ela fora aplicada. Um tal exame é útil, e o mesmo desenvolvimento de ideias que constituem este estudo trará consigo a justificação da breve série de reflexões abstractas que lhe servem de pórtico.

Procedendo em harmonia com os princípios acima expendidos, comecemos por observar que o primeiro carácter dos documentos literários é serem escritos. Uma simples inspecção material faz distinguir um drama ou um romance duma estátua ou duma partitura. Esta primeira consideração separa as obras humanas em duas grandes classes: as que podem ser literárias e as que não podem sê-lo. É nesta acepção que o termo que definimos é tomado em expressões tais como Literatura matemática ou Literatura química.

É claro porém que uma tal aplicação, à força de ser lata, se torna em extremo vaga, e que mesmo na linguagem ordinária uma dissertação sobre as secções cónicas ou uma memória sobre a osmose não são qualificadas de obras literárias. O mesmo se pode afirmar de escritos que têm exclusivamente um valor prático. e imediato, como uma escritura tabeliosa ou uma postura municipal. Ajunte-se-lhes todas as obras que têm apenas um alcance profissional, os códigos que o espírito de análise reduziu à secura jurídica, os catecismos que na sua concisão dogmática visam a um fim pedagógico, as constituições e os trabalhos administrativos. Em resumo, devem ser excluídas da designação de escritos literários todas as obras realizadas num intuito puramente científico ou puramente prático.

Contudo, entre as obras que têm um intuito de compreensão como entre as que têm um valor de aplicação, algumas há que o consenso unânime incluiu no número dos monumentos literários. Seguramente um tratado das secções cónicas, mesmo quando seja escrito por Pascal, uma dissertação de Dióptrica, mesmo devida a Descartes, uma memória sobre as transformações das vértebras, ainda mesmo que tenha por autor Goethe, não são contadas entre as obras literárias. E o mesmo se pode afirmar de um projecto de lei contra a escravatura, ainda que redigido por um Mirabeau, ou de um parecer sobre a abolição, de barreiras aduaneiras, mesmo quando pronunciado por um Macaulay. Mas um tratado de lógica pura como o Discurso sobre o método ou um trecho de eloquência forense e política como a Oração pela coroa constituem monumentos literários apesar do fim puramente especulativo ou puramente prático para que eram destinados. Quando se reflecte sobre as razões que levam a excluir os primeiros e a incluir os segundos no grupo dos escritos literários chega-se a descobrir dois caracteres ausentes nos primeiros e presentes nos segundos: a generalidade no pensamento e a generalidade na expressão. A ausência do primeiro exclui da Literatura todas as produções científicas ou práticas que se restringem a um campo especial. A ausência do segundo exclui da Literatura todas as produções científicas ou práticas em que se emprega uma linguagem especial. A presença do primeiro possibilita a admissão dos trabalhos de larga filosofia ou alta política no seio da Literatura. A presença do segundo torna efectiva essa admissão. Estas considerações explicam por que a Mecânica celeste nunca possa ser uma abra literária, e que a Crítica da razão pura não o seja enquanto o Discurso sobre o método o é. Generalidade no pensamento, generalidade na expressão, isto é, dom de despertar um interesse geral, são pois caracteres constitucionais dos escritos literários.

Mas há obras às quais se aplica a designação de literárias com muito maior cabimento do que àquelas que acabamos de citar: por exemplo a Divina Comédia, o Hamlet ou o Fausto. Não somente se encontram nelas os dois caracteres fundamentais – a generalidade na concepção e a generalidade na expressão –, mas ainda o interesse que elas despertam é mais geral. Investiga-se a razão do facto e acha-se que é por elas serem um juízo sobre a Vida descoberto pelo exercício de todas as faculdades. Com efeito, não é somente uma concepção geral, mas uma concepção da Vida e uma concepção acompanhada de emoção que elas contêm. Parece mesmo que o simples facto de tomar por objecto um aspecto ou uma manifestação da Vida, e exprimi-los de um modo cabal, torna literário um escrito. Um canto de amor ou de cólera é um documento literário a mesmo título que a Epopeia da Fé ou a Tragédia da Dúvida, mesmo quando ele não exprima senão um sentimento individual e inspirado por um indivíduo. E assim no. largo seio da Literatura se contêm não só as Concepções que representam a Vida, mas as impressões que ela provoca e as paixões que a determinam.

O Homem, todo o Homem e as coisas só enquanto interessam o Homem ou influem sobre ele, eis o assunto e a inspiração das Literaturas. Nenhuma obra humana é mais poderosa nem mais expressiva, salvo as Religiões. Porque enquanto a Ciência, o Estado, a Indústria, encaram somente um dos aspectos da Vida, a Literatura abrange-os todos, e exprime o Homem inteiro, as ideias com os sentimentos, o seu destino real com as suas aspirações ideais. E se as Religiões se lhe avantajam em compreensão e alcance social é porque pelas suas prescrições culturais e morais tendem a regrar e dominar o espírito mesmo nas suas manifestações práticas menos importantes. Resumindo, portanto, podemos dizer que uma Literatura é um conjunto de obras escritas tendo um assunto geral e redigidas numa linguagem geral, e com maior rigor um conjunto de monumentos enunciando de um modo cabal uma concepção ou uma impressão da Vida.

De uma tal definição da Literatura deriva uma correspondente definição da Crítica. Do mesmo modo que a Literatura representa uma concepção ou uma impressão da Vida, a Crítica representa uma concepção ou uma impressão da Literatura. Daí duas espécies de Crítica: uma que trata a obra literária como um produto natural e humano, procedendo pela análise, isto é, determinando o grupo dos seus elementos constitutivos e o conjunto das suas circunstâncias condicionantes; outra que considera a obra literária como uma simples fonte de emoções, procedendo pela impressão, isto é, notando as modalidades que a actividade de quem escreve imprime na alma de quem lê. A primeira tem por fim descobrir as causas, a segunda tem por fim consignar os efeitos, e se a primeira tem por base a Filosofia, a segunda tem por inspiração o Gosto.

Destas duas espécies de Crítica, naturalmente a que procede pela impressão antecedeu a que procede pela análise. Com efeito, até aos fins do século passado os juízos críticos estavam impregnados dum espírito nacional ou pessoal que os tornava eminentemente impróprios para compreender e aprovar a excelência intrínseca das produções dos génios estrangeiros ou dos temperamentos diferentes. Como havia uma completa ausência de princípios, havia uma completa ausência de acordo. Viam-se as manifestações do génio tratadas como bárbaras, e os monumentos da razão qualificados de enfadonhos. Tudo que transcendesse a esfera ou infringisse as regras dentro das quais se movia a actividade duma raça ou o gosto dum escritor era excluído ou reprovado. Daí essas sentenças burlescas dos ingleses sobre Racine ou dos franceses sobre Shakespeare. Daí essas guerras de tendências ou de escolas, essas disputas sobre o mérito dos antigos e dos modernos, dos latinos e dos teutónicos. É este ponto de vista que inspira então nas suas apreciações estéticas os escritores mais ilustres, um Voltaire ou um Dryden. E este ponto de vista que deixa primeiro a Alemanha e que abandona em seguida a França; é dele que se emancipa agora a Inglaterra, e que a energia do génio nacional e a ausência da larga imaginação simpática mantêm ainda na crítica espanhola.

Este ponto de vista é abandonado e quem o substitui é o outro. Pela marcha ascendente do espírito científico o campo das produções mentais foi invadido após o campo dos fenómenos naturais. Viu-se que uma obra literária não é o fruto dum capricho pessoal nem uma literatura um grupo de produções entre si estranhas, apenas ligadas por um nexo exterior de cronologia ou língua. Primeiro na Alemanha, em seguida na França, neste momento na Inglaterra e na Itália, começou-se a considerar os livros e as literaturas como documentos. Assistiu-se à sua génese, acompanhou-se a sua evolução, preveniram-se as suas transformações próximas, e isto pela aplicação da Psicologia e da História. Ao mesmo tempo, por uma consequência lógica, transformou-se o padrão aferidor dos méritos. Romperam-se os velhos hábitos de parcialidade e hostilidade. Apreciaram-se as superioridades estrangeiras e reabilitaram-se as onginalidades maltratadas. À força de compreender aprendeu-se a justificar. Shakespeare foi amado na França e Calderon na Alemanha, e viu-se o grande Goethe, a um tempo poeta e crítico, misto de inspiração profunda e curiosidade infinita, dar exemplo das perpétuas metamorfoses, fazer-se simultaneamente alemão e italiano, homem do Oriente e do Ocidente, artista da Renascença e do século XIX, e afirmar-se pela sua cultura integral e pela vasta e vária produção da sua actividade cosmopolita e enciclopédica o sumo representante do génio europeu contemporâneo.

Mas por uma lei natural do espírito, que quer que a inteligência esgote os extremos antes de atingir a harmonia, o novo ponto de vista, propriamente científico, introduzido na crítica em substituição ao velho, mais propriamente subjectivo, produziu em espíritos inaptos para a especulação filosófica uma convicção errónea, que é antes uma aberração do juízo do que uma consequência lógica. À força de se ver fazer a análise das obras literárias, de se assistir à sua criação e regrada transformação, de se verificar que as literaturas são produtos que como tais estão sujeitos às leis fixas de toda a produção, chegou-se á convicção de que as obras literárias são todas igualmente valiosas, por isso que são todas igualmente naturais, que além da sua importância documental não há nelas uma excelência intrínseca, que como são resultado duma fatalidade indiferente devem ser contempladas com um olhar indiferente, e que em resumo a História anula a Estética.

Isto é um erro. O próprio senso comum repele uma tal pretensão, e a Ciência, como quase sempre, não faz senão ampliar e precisar as sentenças do senso comum. Não, na Literatura como na Natureza há uma fatalidade, mas na Literatura como, na Natureza há uma jerarquia. Na Literatura como na Natureza há causas de movimento, mas na Literatura como na Natureza há condições de equilíbrio. Por isso na Literatura como na Natureza há criações belas e há criações que o não são. Todas as obras literárias são indícios de causas, mas são também instrumentos de cultura. Todas as obras literárias são documentos, mas também são monumentos, e se a Natureza é um cartório a História é um museu.

Há pois razão em colocar o Hamlet acima da Tosca e em preferir a Cousine Bette ao Maitre des Forges. E se é lícito pensá-lo é útil dizê-lo. Daí duas funções da Crítica. Uma de compreensão, outra de apreciação. Por uma, o Crítico vê e faz ver a obra literária, descrevendo-a nos seus elementos e explicando-a nas suas condições. Por outra, o Crítico julga e faz julgar a obra literária, apreciando-a na sua harmonia interna e avaliando-a na sua correspondência exterior. Ambos estes pontos de vista são legítimos e ambos são incompletos. Não passando do primeiro, a análise crítica limita-se a ser um capítulo de Ciência. Não saindo do segundo, o juízo crítico arrisca-se a ser a opinião dum indivíduo. O crítico deve partir do primeiro e deve chegar até ao segundo.

Mas não deve chegar ao segundo sem ter partido do primeiro. Porque nada mais fecundo em ilusões do que o espírito humano e nada mais arriscado do que julgar por impressões. Aquele que para apreciar um livro se limita a lê-lo e a consignar o efeito produzido arrisca-se a ver falso sob a pressão de circunstâncias de momento, e tendo em mente pronunciar uma sentença definitiva não passa de notar um estado de consciência. E preciso, pois, que o Crítico julgue por princípios. Mas estes princípios devem ser baseados sobre a observação da realidade. Porque, se tiver como norma um sistema construído fora da Ciência, arrisca-se ainda a tomar como fixo aquilo que é acidental, a obedecer às sugestões da raça a que pertencer, do momento em que florescer, do instrumento mental de que dispuser, cuidando exprimir alguma coisa de racional e largamente humano. Julgará sim por um sistema, mas por um sistema de preconceitos. E pensando obedecer a princípios há-de obedecer a impressões, por isso que um preconceito não é mais do que uma impressão arreigada.

Que regras, pois, são essas que deve seguir o Crítico nos seus juízos? Para descobri-las basta reflectir no que seja Literatura. Ora já vimos que a obra literária é uma expressão da Vida. Logo, uma obra literária deve valer ou não conforme exprime ou não exprime fielmente os vários aspectos ou o conjunto da Vida. Logo, uma obra literária valerá mais ou menos conforme exprimir melhor ou pior a Vida, e conforme a exprimir nos seus aspectos mais ou menos profundos. Assim, por exemplo, no domínio da Poesia lírica valerá mais o poeta que exprimir as emoções intensas e as paixões permanentes que animam ou determinam a Vida. Assim, no domínio da Poesia épica valerá mais o poeta que melhor souber criar essas colossais figuras que resumem um ciclo ou uma época, e melhor souber fazê-las manifestar por meio de actos, e dentro de quadros dignos da grandeza delas. Assim, no domínio do Drama será maior o escritor que pintar as paixões mais rigorosas nas lutas que travam entre si, e os caracteres mais vivos na acção que exercem uns sobre os outros. Assim, no Romance subirá mais alto o artista que mais e melhor souber dizer o mecanismo dos caracteres e a história das paixões que o Lírico pinta nas suas explosões individuais e o Dramaturgo nos seus conflitos sociais, e que mais e melhor souber mostrar esses caracteres e essas paixões sob as influências dos meios por que são actuados, e nas energias intrínsecas pelas quais reagem. Daí a superioridade dum Shelley sobre um Cowper, dum Camões sobre um Tasso, dum Shakespeare sobre um Schiller, dum Balzac sobre um Zola.

Para determinar essas diferenças e fazer o cálculo desses valores o Crítico há-de apoiar-se na Psicologia e na História. Pelo estudo combinado destas duas ciências, aprenderá a destrinçar o que há de fundamental na alma humana através das variações dos lugares e das épocas. Pela Psicologia aprenderá o que é o Homem, e pela História o que são os homens. E no seu duplo trabalho de compreensão e de apreciação dos produtos literários o Crítico não fará mais do que aplicar a ciência do espírito humano, individual ou colectivo, abstracto ou concreto.

II

Quando se estudam as literaturas modernas nas cinco grandes nações ocidentais, acha-se que cada uma delas exprime através da sua longa evolução histórica um conjunto de caracteres fixos que, pela sua colaboração com as circunstâncias do momento, produzem e explicam a superioridade ou inferioridade das obras literárias. A esse conjunto de caracteres fixos e combinados em proporções definidas se dá o nome de génios nacionais. Não será inútil conhecê-los.

E primeiro a França. Pela sua posição geográfica como pelas suas qualidades de espírito, a França ocupa desde a Idade Média o papel dum grande agente de circulação intelectual na Europa. O espírito francês é o velho corretor das ideias. O traço que o distingue é a inteligência, não o dom das ideias. O traço que o distingue é a inteligência, não o dom da compreensão profunda à maneira do alemão, mas uma espécie de razão ágil e simplista que extrai do objecto, por uma operação rápida e fácil, uma ideia incompleta e portátil. Destituído da grande imaginação e da paixão intensa, apanágio de outras raças, o génio francês é mais propriamente oratório que poético, e discursivo que intuitivo. Este espírito não vê as formas e as cores nos seus contrastes e harmonias, não reproduz os aspectos do mundo interior nem o drama solitário da consciência. Excluído da visão e do sonho, concentra-se na composição e na análise. Excluído do heroísmo e da santidade, manifesta-se pela bondade e pela cortesia. Nenhum dos dotes pelos quais o homem entra em comunicação directa com as causas ou na intimidade privada de si próprio distingue este génio, abstracto e sociável. Destituído de intuição penetrante e de subjectivismo vigoroso, munido de razão ordenadora e simpatia expansiva, tal se revela esse génio da França ao longo da sua história e no conjunto das soas criações sociais e políticas. E tal como ele se revela nas suas construções sociais e políticas, tal se manifesta nas suas produções literárias. A falta de paixão intensa determina a sua inferioridade no lirismo que, vive da emoção concentrada e enérgica. A ausência de imaginação grandiosa e de heroísmo moral faz descambar a epopeia em longas narrações frias. A incapacidade de representar os caracteres nos seus conflitos e nas suas crises faz dos dramas uma série bem ligada de discursos admiravelmente elaborados. Mas a presença duma sensibilidade delicada e duma imaginação lesta produz a superioridade na canção, no madrigal e no epigrama. O talento de decompor e ordenar as ideias abstractas e de simpatizar com os sentimentos médios explica a perfeição da eloquência, que é a arte de narrar, argumentar e iniciar. O predomínio da Vida em comum e a omnipotência da opinião determinam a excelência da comédia, que é uma pintura da sociedade e uma errata dos costumes. Aplicado à história este génio produz narrações perfeitas, discursos admiráveis e modelos de análise no domínio das instituições políticas. Enfim, tardiamente vencedor no romance, ele triunfa, graças à vocação psicológica da imaginação contemporânea e à inata capacidade de decompor e compor. Dom de um povo sociável por excelência, a sua obra-prima literária é a prosa como a sua obra-prima histórica é o salão.

Bem diferente é o génio do inglês. A imaginação grandiosa e penetrante, a paixão intensa, a interioridade do sentimento, o vigor dos instintos morais, a solidez da vocação prática, eis outros tantos traços do génio da Inglaterra estudado na evolução da sua gloriosa história. Uma raça de poetas, de profetas e de homens de acção, tal aparece este povo e tal se revela na sua literatura. Daí a superioridade incomparável da poesia lírica, explosão de sensibilidade delicada e emoção enérgica, sem rival nas modernas literaturas europeias pela abundância e esplendor dos seus monumentos. Dai a grandeza da epopeia puritana, em que a majestade das paisagens colossais e a energia das paixões republicanas produzem a impressão do sublime a despeito da esterilidade épica do dogma protestante. Daí o valor único do teatro da Renascença, a mais soberba aparição cénica desde os Gregos, e a mais assombrosa incursão da imaginação psicológica no domínio da Poesia pura que regista a história do pensamento. Dai o esplendor da eloquência forense e parlamentar em que influência social preenche uma lacuna étnica. Dai a solidez e a nobreza duma literatura toda empregada na reforma da sociedade e sem igual no dom da efusão idealista. Em resumo, se o que manifesta a Literatura francesa é o talento, o que revela a Literatura inglesa é o génio, e se a primeira triunfa na Prosa, a segunda esplende na Poesia.

O que distingue o espírito alemão é o dom da compreensão universal e profunda. Este espírito nasceu crítico e preparou-se para a criação pela crítica. Nenhum outro é tão flexível, tão apto para reproduzir a variedade infinita das criações naturais e das produções mentais. A alma, nas suas manifestações mais diversas, o mundo, nos seus aspectos mais profundos, os páramos mais remotos da história, as energias causais da natureza, tudo se espelha nessa inteligência maravilhosamente ampla e delicada. Erudito e filosófico, cosmopolita e enciclopédico, o génio alemão é o último a aparecer no cenário do pensamento, e essa demora concorre para a superioridade das obras por que se exprime. Florescendo neste século, ele encontra o terreno preparado para as grandes sínteses do Universo e para as grandes ressurreições da História. O seu sumo representante é esse Goethe, que lega nos seus actos e nos seus escritos a mais perfeita concepção da vida que se tinha visto desde os Gregos. Uma visão profunda da realidade mais trivial e uma capacidade de a transfigurar pela ideia do Todo revela-se nas suas criações como nas dos grandes espíritos que o precederam ou acompanharam. Os grandes nomes nessa literatura são nomes de críticos, e como a faculdade crítica arrasta consigo as outras, dai a aparição dessas obras de arte únicas na história das literaturas modernas e que, pela sua penetrante e serena compreensão da vida, têm um alcance filosófico e moral que as torna verdadeiramente clássicas. Daí esse lirismo profundo e calmo que exprime as emoções com o desprendimento das ideias. Daí esse teatro que lança sobre o conflito das paixões o pensamento do Destino, condutor dos. homens e ordenador das coisas. Daí essa epopeia psicológica, suma condensação da reflexão e da experiência. Daí esse maravilhoso trabalho de perscrutação da vida colectiva nas suas manifestações fundamentais e inconscientes. Daí a superioridade dos escritos históricos em que o político, à força de amplidão, atinge um alcance de moralista. Daí finalmente essa grande maneira de encarar a Vida, compreendendo-a como necessária e aceitando-a como excelente, misto de tino prático e piedade racional. A Filosofia desabrochando em Sabedoria, eis a forma do génio alemão; e se a Razão é o dom mais precioso em si e mais fecundo em consequências práticas, nenhum povo contribuiu para os progressos da cultura humana como os compatriotas de Goethe e de Hegel.

Um historiador ilustre escreveu que a poesia não é um dote do génio italiano. De facto, se se entende por poesia essa contemplação desinteressada da realidade que a transfigura à luz da imaginação e do sentimento, nada de menos poético que o génio da Itália. O seu traço fundamental é o sentimento do útil, se se entende por estas palavras, não a preocupação dos cómodos materiais, mas a preponderância dos fins individuais, e menos a Indústria que a Política. Passada a produção da grande epopeia católica, em que o génio nacional colabora com o espírito medieval, podem-se estudar as manifestações desse génio em toda a sua pureza. Uma nitidez escultural e jurídica, uma vigorosa expansão dos instintos naturais na ausência da repressão moral, um lirismo sensual e brilhante, epopeias pitorescas e pouco heróicas, dramas eloquentes e oratórios, comédias em que o riso é provocado mais pela imaginação que pela reflexão, uma concepção política grandiosa e desumana exposta por publicistas duma superioridade incomparável em sentenças duma precisão cirúrgica, eis as qualidades ou consequências desde génio importado para o domínio da produção literária. Junte-se a ausência de instintos morais e sentimentais piedosos. Na Itália – disse Alfieri – a planta humana é mais vigorosa. E a floresta humana mais perigosa.

A nós, peninsulares, a função que coube na História é o Heroísmo e a Fé. Destituídos de imaginação penetrante e do dom de vasta compreensão, desprovidos de larga simpatia e de curiosidade infatigável, primamos pela energia da vontade e pela grandeza do carácter. O fundo deste carácter é a honra militar. A capacidade de afirmar e querer, de obedecer e dedicar-se, uma tendência singularmente nobre de transformar o mundo à imagem do nosso ideal, uma generosa impaciência da perfeição, o desdém da beleza plástica e das delicadezas aristocráticas, um pensamento simples como um acto, a paixão concentrada e a seriedade trágica, eis outros tantos traços do génio peninsular. Este génio produz uma singular concepção da Vida, que se manifesta por uma religião realista e violenta, por uma política absoluta e insensata, pela preponderância do génio da aventura e ausência da capacidade prática: que põe o amor no casamento, o ideal na acção, a beleza no valor moral; que inspira os maiores prodígios da energia no mundo moderno, e faz que a nossa história seja, como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma. Importado para a literatura, esse génio produz um lirismo robusto e monótono, um teatro destituído de análise de caracteres, mas animado pelas ideias da honra e da morte, sátiras dum sarcasmo violento, romance em que a acção absorve a análise e que são a pintura da realidade crua e feia e a maior das modernas epopeias.

Mas para produzi-la foi preciso a intervenção do génio português. Do corpo das populações ibéricas dominadas e unificadas pelo génio castelhano, destaca-se pela influência acidental de circunstâncias históricas uma estreita faixa da orla marítima. Esta estreita faixa se constitui em nação independente, e durante cem anos exerce um papel culminante na história moderna. Em sincronismo necessário com esta explosão de vida activa, desabrocha uma breve mas esplêndida floração literária. Se estudarmos os documentos que a constituem e completarmos esse estudo pelo exame das produções que datam da renascença romântica, nada acharemos neles que distinga constitucionalmente o nosso génio do das populações ibéricas constituídas numa nação espanhola, como nada encontramos que geográfica e etnicamente fundamente a autonomia da nossa vida política. Mas um exame mais atento descobrirá certas qualidades secundárias que, dando uma fisionomia peculiar ao nosso espírito, se reflectem na nossa literatura: uma maior capacidade de compreender e assimilar, uma menor energia de afirmação e crença, uma sensibilidade mais delicada e profunda, um carácter menos vigoroso e mais nobre, mais razão e menos vontade, heróis mais humanos, mulheres mais mulheres, alguma coisa de saudoso e vago, de grave e triste, entranhas mais húmidas e o dom das lágrimas. Estes traços manifestam-se na nossa literatura por um lirismo profundo e sentido, expressão duma alma amorosa e meiga; por um teatro capaz de pintar caracteres e espelhar a vida: por uma, ainda que tardia, floração de romances em que a análise do coração não é anulada em proveito da acção, e finalmente por uma criação épica em que a grandeza heróica do génio peninsular é vazada em moldes duma nobreza essencialmente nossa. Se esses traços não são bastantes para constituir um génio à parte, são contudo suficientes para dar à nossa literatura um carácter peculiar, e para nos assegurar num futuro próximo uma intervenção salutífera na marcha da cultura dos povos peninsulares.

III

Esta breve excursão no campo da filosofia nacional e estrangeira não parecerá de todo inútil se reflectirmos que a nossa literatura é o produto do génio intrínseco combinado com as influências europeias. Poderíamos demonstrá-lo pela nossa história literária desde as origens, e isto seria uma nova prova da ausência dum carácter acentuadamente original. Porém, restringindo-nos ao movimento literário deste século, podemos assistir à dupla acção destas causas e explicar por elas toda a produção do nosso tempo. E conforme se encara a tradição nacional e conforme se aceita a influência estrangeira, e segundo a proporção em que estes dois elementos se combinam, que as obras contemporâneas adquirem um valor e uma influência mais ou menos considerável.

Na aurora do Romantismo há em Portugal, como em todas as nações europeias, um movimento de regressão às fontes nacionais. Dois grandes homens estão à frente desse movimento: Garrett e Herculano. O primeiro, dotado de uma intuição superior, descobriu num relance tudo que havia de essencialmente português no nossa génio e na nossa história e fez disso a inspiração das suas criações realizadas ou projectadas. Herculano, menos inteligente e mais erudito, foi buscar os seus motivos artísticos a um passado em que a nação ou não existia ou estava ainda a constituir-se. Depois destes grandes escritores o sentimento do passado vai-se afrouxando, e a influência estrangeira vai-se acentuando. Castilho não encontra nos escritores portugueses senão modelos de vernaculismo e nos autores forasteiros mais que temas para exercícios literários. Camilo e Tomás Ribeiro exprimem inconscientemente o que há neles do temperamento nacional. Mas os grandes prosadores e poetas. contemporâneos são exemplos vivos da influência europeia. Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Oliveira Martins, representam na Poesia, no Romance, na História e na Filosofia a intervenção do pensamento europeu, especialmente da Alemanha e da França. E por ela que a Lira e a Epopeia portuguesas expõem as novas concepções do mundo ou as novas formas da sensibilidade moderna, que a História sai dos moldes da Crónica para se tornar um sistema e uma pintura, que o Romance se transforma em uma análise da sociedade e do indivíduo, que as grandes concepções do monismo germânico ou do positivismo francês vêm a coordenar a actividade mental dos que são capazes de atingir as ideias gerais. Esta influência ir-se-á acentuando cada vez mais e a função da crítica consistirá em indicar quais as obras e tendências estrangeiras cuja acção sobre nós seja benéfica, e quais os recursos de génio nacional com que as podemos aproveitar.

IV

Para compreendermos o actual movimento da literatura portuguesa é conveniente remontarmos às origens dele. Com efeito, se estudarmos o conjunto das produções literárias desde o começo do século, encontraremos certos caracteres comuns, cuja presença basta para constituir uma época distinta na série das criações nacionais. Se compararmos entre si estes caracteres e os opusermos aos que distinguem a idade precedente, poderemos resumi-los em dois: uma maior liberdade na inspiração e uma maior consciência científica na reflexão. Estes dois caracteres. sucedendo-se em preponderância, subdividem este movimento em dois períodos: o primeiro que se pode chamar romântico, o segundo que se pode designar como critico. Ambos, em Portugal como na Europa, representam uma regressão à Natureza: no primeiro período sob uma forma tumultuária e inconsciente, no segundo sob uma forma reflexa e filosófica. Daí a superioridade da epopeia e do drama no primeiro, e do romance e da crítica no segundo.

À frente do movimento romântico português estão dois homens cujos nomes a glória associou, mas cujos espíritos a crítica distingue e opõe. Garrett, soldado, diplomata, orador, ministro, mundano, lírico, autor de comédias, de dramas, de tentativas épicas, tendo conhecido todas as formas da vida e tendo-se ensaiado em todos os géneros de literatura, é o grande promotor da nossa renascença intelectual. Dotado duma sensibilidade profunda, duma imaginação criadora, dum raro acerto de gosto, duma capacidade de simpatia singular, que habilitava a pôr-se em acordo imediato com o meio em que mergulhava, o termo que o qualifica, aos olhos de quem estuda a sua vida e a sua obra, é o de artista. É o temperamento artístico que explica os seus actos e as suas criações. E dele que deriva a sua múltipla actividade, as generosidades das suas Intenções, a sua bondade expansiva, o seu dom de sedução, o seu patriotismo sincero, as suas incoerências políticas, as suas pretensões de aristocrata, as suas futilidades de elegante, as suas fraquezas, os seus ridículos e a grande ingenuidade que o absolve de tudo. E da riqueza do temperamento artístico que brota a abundância e a excelência da sua produção literária. Daí nasce esse lirismo profundo. sincero, amplo, sensual, fatigado e melancólico das suas composições soltas e dos seus poemas narrativos. Daí a variedade e perfeição das suas criações cénicas, em que a imaginação simpática encontra um emprego condigno. Daí a naturalidade da sua veia cómica. Daí a amplidão e esplendor da sua eloquência. Daí a elegância acabada dos seus escritos ligeiros. Daí essa plasticidade que o tornava igualmente apto para as grandes criações como para a produção passageira, que o levava a afeiçoar com a mesma facilidade uma tragédia cíclica ou um madrigal de salão.

Na rica messe dos seus escritos, duas obras se destacam com um relevo singular. Uma é essa colecção única das Folhas Caídas, um dos grandes monumentos do lirismo português, impregnada dum sentimento profundo, ardente e delicado, que em algumas das composições que a constituem atinge os cumes da mais sublime poesia. A outra é essa branca tragédia da Fatalidade e da Piedade, breve, singela, comovente, serena, repassada de inteligência e de candura, e dentro da qual se movem figuras duma nobreza e duma verdade incomparável: o herói da decadência, grave e triste, a grande dama de instintos rectos e entranhas femininas, a graça estranha e severa da donzela idealista, a nobre e livre submissão da domesticidade delicada, o largo vulto do povo moribundo sobre o qual se abate a espada da aflição. Compondo o Fr. Luís de Sousa e as Folhas Caídas, o grande poeta deu-nos, com a medida do seu génio, o retrato da nossa alma.

Se o que define Garrett é o temperamento artístico, o que distingue Herculano é a energia do caracter. Uma vida austera e vazada no molde inflexível da Regra, uma capacidade rara para o trabalho enfadonho, nenhuma das qualidades que fazem o homem prático, uma grande facilidade em se enganar e ser enganado, a rectidão dura que dá a autoridade mas que afasta as simpatias, a intransigência, a independência de coração que liberta das coisas mesquinhas mas que não vai até à grande libertação filosófica, eis as consequências desta estrutura moral no domínio da vida activa. Importada para a produção literária, esta forma do espírito determina um lirismo vigoroso e limitado, inspirado pelas ideias dum Deus forte e justo e dum eu livre e responsável; romances que são odes narradas: um drama lírico comparável a um libreto de ópera: panfletos duma intenção pessoal ou geral a que a força da afirmação, a energia de convicção, o orgulho e o desprezo dão os acentos do hino e da sátira, e finalmente um monumento histórico, grandioso e incompleto que a ausência de imaginação psicológica e de espírito filosófico exclui da pintura dos caracteres e da explicação das causas, mas que dotes analíticos, um trabalho obstinado e uma real vocação de publicista habilitam a ser uma narração fiel de factos averiguados e uma exposição lúcida dos sucessos políticos e económicos.

Garrett foi um artista, Herculano um poeta. Castilho foi um literato, isto vê-se logo pela sua vida, verdadeira vida de homem de gabinete, nua de crises de sentimento e acções vigorosas, toda preenchida pelos livros que compunha e pelos cumprimentos que recebia. Com efeito, nem uma sensibilidade enérgica, nem uma imaginação criadora. nem o dom da compreensão nacional se manifestam nas suas obras. Alguma coisa de artificial. acanhado e frio caracteriza as suas produções. O seu lirismo é apenas um pretexto para exercícios métricos ou manifestações oficiais. A sua concepção da poesia não é a duma explosão da alma ou uma expressão da vida, mas uma curiosidade e um instrumento. Paralelamente, os seus escritos de polémica não respiram uma imaginação vigorosa ou uma violência aberta, mas um azedume solapado ou expresso em epigramas frios. Os seus trabalhos históricos são meros temas de retórica, em que o autor abandona ou esquece a ressurreição do passado pela preocupação de compor frases vernáculas e prosa académica. As suas traduções, inferiores quando arca com as grandes criações geniais, o Fausto, o Midsummer's night dream, o Tartufo, adquirem um valor maior quando interpretam as produções maliciosas ou amaneiradas dum Ovídio ou de um Anacreonte apócrifo, ou as peças menores de Molière, e isto graças à sua habilidade métrica, aos seus recursos de linguagem, ao seu profundo conhecimento das locuções populares e dos artifícios estróficos, juntos a essa paciência obstinada, indispensável num tradutor. Essa paciência obstinada posta ao serviço de uma rara delicadeza de sentidos explica ainda, o lado mais importante do seu espírito, isto é, a sua aptidão filológica e pedagógica. Encontrar-se-ia nas numerosas páginas que ele deixou sobre a métrica, o valor literário das palavras e dos, sons, o modo de recitar, os artifícios para decorar, os métodos de ensino, observações novas e finas. Mas a falta de espírito científico e duma cultura adequada anula essas preciosas qualidades de observador, salvando apenas, no naufrágio de tanto trabalho mal dirigido, trechos de prosa que o desejo veemente de convencer e ilustrar torna modelos de estilo didáctico. Se se procura saber qual foi a influência da sua obra sobre a geração que o reconheceu como mestre, acha-se que ela não foi benéfica. Não que, se deva crer numa lenda de perseguição aos espíritos independentes. Mas o exemplo dum escritor famoso e laureado, entretendo-se com coisas inferiores e fúteis, ou exprimindo numa língua morta ideias alheias, exerceu decerto uma acção deprimente na livre produção dos poetas do seu tempo. Passada essa geração, a sua reputação vai-se obliterando.

Goethe disse que o seu papel entre os alemães em geral e os poetas alemães em particular tinha sido o de um libertador; palavras que têm um alcance singular quando se reflecte que ninguém menos subversivo e sedicioso que o grande poeta germânico. De Castilho, o crítico não dirá outro tanto.

V

Em pleno reinado de Castilho surgem dois escritores justamente ilustres, ligados pela semelhança das aptidões, pela comunidade da glória e pelos laços da amizade. Dos dois, Camilo é o mais vigoroso e o menos equilibrado. O génio aventuroso e apaixonado da Península aparece em alto-relevo na vida e na obra deste grande escritor. A paixão veemente que anima e inspira os seus livros irrompe mais duma vez nos actos da sua vida, antes de encontrar o verdadeiro emprego na ordem das criações imaginárias. Dotado do temperamento e da sensibilidade dum verdadeiro poeta, a natureza devia ter-lhe dado conjuntamente a capacidade de se exprimir na língua do verso. Construído como é, lançou-se ao romance. E nos seus romances se manifestam com plenitude os dotes e as lacunas do seu génio. Esse génio é eminentemente peninsular pela sua ausência de imaginação psicológica e de espírito filosófico, pelo carácter inflamado e realista de seus instintos religiosos, pelo seu desdém paradoxal da ciência, pela preponderância da paixão e da acção sobre a representação e a compreensão, e finalmente pela espécie violenta, áspera. belicosa, atroz e fúnebre das suas emoções habituais. Empregada no romance, esta forma de espírito produz a superioridade da narração e do diálogo, a ausência da paisagem, a nulidade da análise, o relevo e o vigor das personagens, junta à monotonia e à pobreza das criações, e. em resumo, o talento de interessar e comover, com a incapacidade de explicar e instruir. Por alguns dos seus traços, a sua vocação é dramática, e pela maioria deles é sobretudo lírica. Nas suas mãos o romance aberra da sua função especifica e transforma-se na elegia e na sátira. E é na elegia e na sátira que ele triunfa. Ninguém tem mais do que ele o dom do choro e da hilaridade contagiosa, a capacidade das evocações burlescas ou trágicas, o talento de carpir e insultar. Que o leitor percorra duas das suas obras-primas – o A mor de Perdição e Os Críticos do Cancioneiro – e verá que esse espírito excluído da análise do coração, da pintura dos meios e da concepção da Vida, atina com a vocação e encontra a vitória na expressão do amor e do ódio, nas explosões do sofrimento e nas improvisações da cólera.

Menos vigoroso e mais equilibrado, Tomás Ribeiro teve a fortuna de atinar com a sua vocação. Com efeito é uma verdadeira organização de poeta que encontrou na língua do verso um condigno instrumento de expressão. Filho de uma província em que a vida natural e animal prepondera a despeito da invasão da cultura, uma multidão de caracteres da sua fisionomia moral e literária deriva do seu temperamento beirão. Uma região montanhosa e silvestre, situada na fronteira e habitada por uma população ‘vigorosa, bem nutrida, habituada à marcha e à caça, e onde muitas vezes a regressão à barbárie se manifesta pelo banditismo, encontra o seu representante no poeta que exprimiu como ninguém os sentimentos naturais e animais, e a livre expansão da vida instintiva. Daí o valor especial da sua estreia. Paixões e caracteres, o descritivo e o estilo, tudo traz no D. Jaime o cunho dessa origem. As paixões são as mais simples e vigorosas: o amor, o ódio, a vingança, a paternidade, o afecto filial, a dedicação fraternal: o patriotismo mesmo não tem nada de ideal, mas é apenas o amor. da terra combinado com a aversão física pelo estrangeiro. Os caracteres, homens ou mulheres – D. Jaime, D. Martinho, Germano, Estela, os Aragões –, são criações de uma só peça, almas espontâneas e francas, munidas de paixões ingénuas e fortes, inclinadas às acções vigorosas, e que. encontram na acção a sua plena expressão. O descritivo, realista e nítido, espelha rapidamente os vários aspectos das coisas, e passa sem selecções duma festa a um ataque nocturno, dum palácio a uma caverna de bandidos ou uma taberna com rameiras. O estilo, sóbrio, intenso, familiar, repassado de paixão e vivo em todos os pormenores, ajusta-se aos sentimentos e actos que exprime e esplende na narração e no diálogo. Todos estes traços e a espécie destes traços explicam o sucesso do poema, sobretudo junto às naturezas espontâneas e emotivas, os rapazes e as mulheres.

Uma organização destas, vigorosa e espontânea, transplantada ao meio artificial dos salões, actuada pelo contacto dissolvente da política e aplicada à interpretação de sentimentos requintados e ideias largas, não pode senão deformar os seus contornos primitivos, enfraquecer a sua energia nativa e produzir obras inferiores. Comparem-se os sentimentos e os caracteres da Delfina com os do D. Jaime, oponha-se aquela vaga filantropia a este robusto patriotismo. aquele- amor, que parece um namoro, a esta paixão que conduz à desonra e à morte, Josefina a Estela, o cismador e caritativo Albano a D. Jaime duelista e bandido, e ver-se-á que a influência do meio foi funesta a essa natureza espontânea e que essa alma forte e limitada não nasceu para experimentar os cambiantes dos sentimentos requintados, nem para abraçar a amplidão das ideias gerais. Esta impressão é confirmada ainda pelo exame das suas composições líricas estudadas na ordem sucessiva da sua produção.

VI

E do outro extremo do País que vem o grande lírico que a admiração unânime consagrou como um dos maiores nomes da poesia portuguesa. João de Deus é um filho do Algarve, e muitos traços da sua fisionomia se explicam pela sua origem. Natural e clemente, eis os caracteres desse meio. Natural pela ausência de grandes centros e pela preponderância da vida dos campos sobre a vida das cidades. Clemente, pela bondade do clima, pela formosura da paisagem e pela espontânea liberalidade do solo. Sobre este verde solo e as ridentes águas que o beijam, move-se uma população ágil, esperta, alegre, loquaz, não esmagada pelas exigências do trabalho especial e excessivo, nem deformada pela acção da concorrência e da miséria. O poeta é uma planta desse solo e um filho dessa raça. Basta olhar para a sua bela cabeça intacta, que se destaca com um relevo singular da multidão das figuras fatigadas e ruins de literatos e de burgueses. Basta notar essa espontânea plenitude de talentos que o torna pintor, músico, poeta e em tudo improvisador. Basta considerar a integridade da sua inteligência, esse golpe de vista que vê através das palavras e não se deixa iludir por elas, essa sabedoria tirada da experiência e não dos livros. Basta observar essa distinção pessoal de maneiras, misto de plebeísmo e aristocracia, a expressão fiel da sua nobreza inculta e da sua nativa superioridade. Basta ainda seguir essa vida singular que o excesso de paixão condena à inacção, encerrada na reclusão voluntária e na hostilidade desdenhosa por uma cultura, cuja excelência intrínseca ele não vê ou não quer ver, e cujas misérias exasperam ou entristecem a sua grande alma.

Outros traços, porventura étnicos, convergindo com aqueles, são a sua interioridade de sentimentos, a sua energia de paixões, o feitio rectilíneo da sua inteligência, a profundidade dos seus instintos religiosos, a sua aversão pelo mecanismo social e político que deprime o Homem, o seu desamor pela Ciência e pela Indústria que os seus olhos insultam Deus. Todos estes traços, juntos ao dom irredutível do génio, explicam esse lirismo ingénuo e sublime, estranho aos interesses das ideias e aos processos de escola, todo tirado das profundidades da alma, inspirado por emoções pessoais ou circunstâncias da vida, tendo por objecto um pequeno número de. sentimentos naturais e encontrando o seu triunfo na expressão do amor e na celebração da Divindade. O amor e a Divindade são os dois grandes interesses da sua poesia. e, na maneira por que os sente, se revela a estrutura do seu espírito. Os seus cantos de amor exprimem um sentimento duma energia, duma profundidade e duma ingenuidade admiráveis e atingem através dos transportes sensuais a adoração e o êxtase. Os seus hinos sacros, verdadeiros salmos temperados pela suavidade evangélica, são a confidência duma alma solitária à face dum Deus formidável e clemente, uma explosão involuntária e arrebatada, que vai da efusão filial à aclamação áspera.

O homem isento das repressões da sociedade e das deformações da cultura, intacto no seio duma natureza intacta, na plenitude dos seus talentos inatos e na livre expansão dos seus instintos naturais, adorando o seu Rei e Pai na mais sublime das suas obras, o Universo, e amando-o na mais bela das suas criaturas, a Mulher: eis o seu ideal. E esse ideal é o seu retrato.

VII

A última geração literária distingue-se das que a precedem por dois traços: a preponderância da reflexão e a influência do estrangeiro. Que se tomem e examinem as suas obras culminantes – os Sonetos, a Morte de D. João, o Anti-Cristo, o Primo Basílio, as Farpas, a História do Romantismo, o Portugal Contemporâneo – e ver-se-ão claramente assinaladas estas duas influências. Primeiro estes livros são produtos da reflexão, isto é, quer pela natureza do assunto, quer pela maneira de o tratar, revelam com maior ou menor êxito a intervenção voluntária das faculdades racionais, manifesta na composição da obra ou anunciada nos planos dos prefácios. A Poesia exprime concepções do Homem e do Mundo, a Crítica dos costumes aspira a ser uma aplicação sociológica, o Romance é analítico, a História uma pintura de caracteres e uma explicação dos factos. Em segundo lugar estes livros são produtos da influência estrangeira, traço que acompanha necessariamente o primeiro, dadas as necessidades intelectuais dum pequeno pais incapaz de inventar ideias gerais. O romance é feito à moda de França, a História à moda da Alemanha, a Filosofia e a Poesia à moda da França e da Alemanha. Estas duas influências, actuando na produção das ideias e na técnica da expressão, dão um carácter pouco nacional aos produtos da última geração. Carácter que determina a sua inferioridade como instrumentos produtores dum nexo moral e duma consciência pública, e que constitui a sua superioridade como agentes de educação pessoal e cultura desinteressada. Estas duas influências, combinadas com o que há de constitucionalmente arreigado e nacional no temperamento dos escritores sobre que elas actuam, explicam as qualidades e tendências gerais dos mais importantes livros portugueses contemporâneos.

VIII

Entre os nomes de escritores que cooperaram para a introdução do espírito novo na literatura portuguesa contemporânea avulta o nome. de Antero de Quental. Organização complexa mas em que predominam os dotes poéticos, o autor dos Sonetos ficará sobretudo como um evocador de visões e um expressor de sentimentos. Nesse vasto mundo de visões e sentimentos que se oferece a um poeta, ele escolheu as visões mais sublimes e os sentimentos mais nobres. A superioridade da sua poesia deriva da grandeza da sua alma. O próprio dessa alma é não ser impressionada senão pelas grandes coisas e não se deixar mover senão pelos grandes interesses. O Universo na sua totalidade e na direcção final do seu movimento, o Homem e o seu destino, a função espiritual dos pensadores e dos poetas contraposta à esterilidade rotineira do sacerdócio tradicional, a magna luta da Igreja Católica com o Espírito moderno, o estertor dum Passado que agoniza e o vagido vitorioso dum Porvir que rompe da entranha fendida do século, eis as inspirações das Odes Modernas. E essas inspirações não são um pretexto para as tiradas convencionais duma estreia ambiciosa. São problemas que o poeta encara com uma comoção e um abalo de todo o seu ser, que formula ou resolve com um acento de sinceridade única. E que a sua imaginação é metafísica, isto é preocupada com a representação total do Universo. Esta imaginação metafísica anda nele ligada a profundos instintos morais, isto é, à consideração preponderante do alcance dos actos e do valor da Vida. Estes dois traços combinados produzem a disposição religiosa, que resulta da introdução das preocupações práticas numa alma metafísica e que consiste na adaptação duma teoria do Universo à explicação do destino humano. O sentimento religioso inspira duma ponta à outra todos os seus escritos. E ele que nas suas crises ocupa toda a sua vida e se manifesta em toda a sua. obra. Dos dois elementos que o compõem – a imaginação metafísica e o temperamento moral – o primeiro, educado pelo germanismo, determina essa concepção panteísta do mundo, hegeliana no começo da sua carreira, dinamista nas suas últimas composições. Os instintos morais guiados pelo radicalismo francês irrompem dum modo insurreccional em fogosas diatribes contra os ricos e os poderosos, nas suas primeiras odes, e encontram finalmente a satisfação nos seus últimos Sonetos, numa espécie de niilismo cheio duma resignação mística. Porém nas suas primeiras como nas suas derradeiras composições o que aparece sempre é uma alma duma elevação, duma sinceridade, duma grandeza única, um coração desdenhoso de todas as coisas que prendem o comum dos homens, glória, riqueza ou poder, embriagado pela visão estupenda da realidade e arrebatado pela atracção invencível do Ideal.

É ainda a grandeza da alma e a sinceridade do acento que fazem o encanto dos seus Opúsculos. Destituídos de valor científico, dada a falta de capacidade analítica e de sólida erudição da parte de quem os escreveu, eles resgatam essa inferioridade pela unção moral, pela gravidade religiosa, pelo tom pontifical dos seus actos de fé e das suas imprecações litúrgicas. Os seus panfletos parecem encíclicas.

Finalmente todas as qualidades e lacunas do seu espírito, os seus instintos morais, os seus sentimentos religiosos, as suas aptidões filosóficas, a sua falta de vocação, científica e de imaginação física se reflectem e se encarnam no seu maravilhoso estilo incapaz de pintar e de explicar, mas apto como nenhum outro para comunicar as ideias gerais e os sentimentos morais na severa graça do seu porte e na larga majestade do seu ritmo.

IX

Antero de Quental por alguns lados do seu espírito atinge a aptidão épica. Contudo não se ensaiou na Epopeia e porventura fez bem. Este género poético foi porém tentado com êxito incompleto e talento manifesto por dois escritores que tiveram o seu momento de reputação ruidosa.

Quando se procura a fórmula do espírito de Guerra Junqueiro acha-se que ele é muito mais orador que poeta e que tem muito mais eloquência do que imaginação. Que o leitor pegue no seu primeiro poema, e, reagindo contra a fascinação da forma que o subjugará à primeira leitura, se aplique à análise directa da obra na sua concepção fundamental, na composição das suas personagens, no processo das suas descrições, no mecanismo do seu estilo e na estrutura da sua métrica. Se levar a cabo esse trabalho, verá que não encontra nela nem essas criações sintéticas e essas figuras cíclicas em que se assinala a imaginação épica; nem esses caracteres vivos e essa ciência do coração que resulta da imaginação psicológica; nem essa nitidez de contornos e esse esplendor de colorido que acompanha a imaginação física; nem essa torrente caudal de emoções profundas que deriva de um verdadeiro temperamento lírico. Mas, em compensação terá de admirar os recursos de expressão, a sumptuosidade e o vigor da frase, a rica pompa e a correcção magistral do verso, a sábia gradação dos efeitos e enfim a arte consumada de formular, intimar, ornar e lançar à circulação um tema poético. Um vocabulário escolhido e nobre, uma adjectivação abundante e nova, uma trópica audaciosa e engenhosa, uma sintaxe regular e ampla, versos de bronze e rimas de cobre – eis o segredo do seu prestigio mesmo sobre aqueles que estão prevenidos por profissão e por hábito.

Se se procura um veio de verdadeiro sentimento na Morte de D. João encontra-se no lirismo amargo, sensual e mórbido do protagonista. Mas quem quiser ver a manifestação do dom fundamental do seu espírito, excluída a faculdade de expressão, terá de considerar as suas composições satíricas. Nelas se revela uma verdadeira aptidão de sarcasta, e, a despeito do carácter artificioso de alguns expedientes na invenção e expressão da Ironia, acha-se que esta é a sua verdadeira vocação. E se na Morte de D. João Guerra Junqueiro manifestou mais reais dotes de poeta, na Velhice do Padre Eterno deixou um mais vivo documento de si mesmo.

A outra tentativa épica é a de Gomes Leal. Nenhuma das qualidades que fazem um poeta e um grande poeta faltam a este artista superior e desigual. Sensibilidade profunda, delicada e estranha. imaginação poderosa e rica ainda que fragmentária, capaz de espelhar os aspectos da natureza e os recantos do coração, um raro poder de tirar efeitos imprevistos e singulares do instrumento da linguagem, são outros tantos dotes preciosos prejudicados pela falta de acerto e bom gosto no emprego deles. Todos os preceitos de bom senso cuja observação constitui a higiene das reputações literárias são violados por este escrivão leviano como cheio de recursos. Se se remonta às suas origens encontram-se dois traços que caracterizam a sua estreia e continuam a manifestar-se em todos os seus livros: o amor do mistério e o instinto da revolta. É o amor do mistério e do exotismo que inspira as Claridades do Sul, onde a influência de Baudelaire não representa uma simples imitação literária mas sim um verdadeiro parentesco de génio.

Esse exotismo que por vezes raia na extravagância é ainda estimulado pelas suas tendências insurreccionárias, que fazem dele ao longo de toda a sua obra e também um pouco nos actos da sua vida um tipo de insubordinado e, como hoje se diz, de refractário. Esse instinto de revolta, depois de inspirar as estrofes torvas da Canalha, dita-lhe essas terríveis sátiras onde reluz, num clarão de incêndio, um niilismo, não intelectual e requintado como o de Antero de Quental, mas bravio e físico, expressão genuína da violenta e bruta alma do mundo bárbaro que se resolve nas bases das sociedades contemporâneas. Este amor do mistério e este instinto de revolta aplicados aos vastos e novos temas que a ciência oferece hoje à actividade poética explicam a produção do Anti-Cristo. Livro extraordinário, sulcado de relâmpagos de génio, superior e ilegível, cheio de concepções e quadros que fariam a glória dum grande poeta, mas tão mal feito, tão carregado de repetições e lacunas, tão inçado de faltas de gosto, tão claudicante na gramática e na métrica que a maioria dos leitores o abandona em meio. Ainda assim é impossível não admirar a intensidade de sentimento, a riqueza da invenção, o poder sintético da capacidade criadora, e essa maravilhosa intuição que o leva, espírito formado por leituras tumultuosas e incompletas, a ver num relance as três ou quatro ideias fundamentais do mundo contemporâneo e a constelar o seu poema de invenções surpreendentes que prendem a atenção do moralista e do filósofo. Mas admirando, o critico lastima que tantos dotes superiores sejam prejudicados. e mesmo anulados aos olhos do vulgo, por uma singular falta de bom gosto e de tacto. E se o crítico acha que a reputação poética de Guerra Junqueiro é superior aos seus méritos, como a de Gomes Leal é inferior ao valor próprio. É também forçado a confessar que o primeiro só a deve a si, e o segundo não tem que se queixar senão de si próprio.

X

Enquanto a Poesia portuguesa sofria uma transformação profunda na espécie das suas inspirações É no processo da sua técnica, uma revolução igual operava-se no Romance. Esta forma literária, depois de apresentar o romance de aventuras, género inferior, e o romance histórico, género falso, entrava no seu verdadeiro terreno – a pintura dos costumes e dos caracteres sob o nome de romance analítico.

Esta última forma encontra em Júlio Dinis uni cultor digno de atenção. Espírito observador, reflexivo e amável, ele importava para o estudo do coração qualidades estimáveis e secundárias. Acham-se nos seus livros quadrinhos de género bem feitos, retratos bastante parecidos, observações finas e acertadas sob o mecanismo dos sentimentos e dos pensamentos. mas nenhuma ciência da composição dos caracteres, da influência dos meios, da engrenagem das ideias, da motivação dos actos, no conjunto das suas condições determinantes e dos seus elementos constituintes.

Em resumo, a sua psicologia é fragmentária e destituída de prova, e antes derivada dos hábitos de reflexão próprios de um homem interior, do que da capacidade analítica que acompanha um verdadeiro psicólogo. Essa capacidade, aproveitada em obras-primas e guiada por um método rigoroso, aparece pela primeira vez entre nós com Eça de Queirós. Natureza múltipla e a maior vocação de artista que tem surgido em Portugal desde Garrrett, Eça de Queirós começou pela improvisação e pelo lirismo. Sensibilidade intensa e complexa, capaz de vibrar fundamente ao contacto dos objectos mais diversos, imaginação capaz de reflectir e transfigurar todos os aspectos das coisas, a paixão e a fantasia ocupam um lugar importante na sua obra ao lado da observação e da análise.

Esse dom de efusão anima exclusivamente os seus primeiros escritos e faz o encanto da esplêndida narração intitulada Mistério da Estrada de Sintra. Esse rigor de sensibilidade e essa riqueza de imaginação produzem a abundância e a eficácia do seu sarcasmo, e explicam a superioridade da sua colaboração nas Farpas. A energia da paixão que devolve em caricatura a impressão burlesca das coisas e em insulto a impressão hostil dos homens, a familiaridade e a audácia das invenções cómicas, a vivacidade irreverente do artista inimigo das convenções sociais, e a perfeita elegância do mundano capaz de dominar-se e calcular os golpes, eis as qualidades que distinguem a sua ironia. A intemperança da imaginação e da sensibilidade importada para o domínio da criação pura dá de si esses dois livros singulares, o Mandarim e a Relíquia, que é impossível ler sem ficar deslumbrado pela agilidade e esplendor da fantasia, e subjugado pelo poder contagioso da efusão sensual e mística. Mas esses dotes que por si só bastavam para constituir uni grande poeta, iam ser aproveitados e disciplinados pela nova concepção do romance. A preponderância do romance analítico na literatura francesa sugeria-lhe um campo excelente para exercer a sua actividade artística. E a sua reconhecida superioridade não o abandonou neste novo terreno.

Flaubert teve nele um discípulo, e um discípulo que honra o mestre. As qualidades que ele importava para esse novo campo de produção eram uma notável finura de sentidos, uma grande experiência das paixões, uma subtileza aguda de casuísta e um tacto consumado de mundano, uma frescura de impressões própria de quem viveu e viu mais que meditou e leu, e em resumo um espírito em que a percepção externa se equilibra com a observação interior. Juntem-se-lhe os talentos literários, o dom da descrição, da narração e do diálogo e enfim uma nervosa perspicácia em manejar o instrumento da palavra.

Todos estes dotes aparecem com plenitude no seu primeiro grande romance, manifestos em paisagens coloridas e nítidas, em caracteres vivos, em situações dramáticas, em transcrições perfeitas da conversação e do diálogo, em análises penetrantes da atenção e da sedução, na pintura das impulsões e dos desejos, e na criação das figuras femininas. Mesmo as qualidades que poderiam prejudicar eram aproveitadas como a Fantasia na psicologia do Sonho. Todos estes dotes, apurados pelo exercício, coordenados por um método cada vez mais seguro e aliados a uma ciência consumada da composição determinam a superioridade do Primo Basílio, livro magistral e quase perfeito, produção culminante do romance português comparável às obras-primas do romance estrangeiro, bela galeria de figuras cheias dum interesse geral humano e especial português, e entre as quais avulta essa criação da criada Juliana que faria por si só a glória dum romancista.

Finalmente a composição dos Maias veio completar uma lacuna que havia na sua reprodução da Vida. Passando do drama burguês à tragédia aristocrática, Eça de Queirós empregava a sua capacidade de amar e criar a beleza, e aproveitava a sua experiência dum mundo superior na evocação das figuras nobres e na pintura dos meios requintados.

XI

Enquanto Eça de Queirós renovava o romance, o seu velho amigo e colaborador nas Farpas, Ramalho Ortigão, abria um campo novo na critica dos costumes. Robusta e simpática figura, alma equilibrada e sã, os seus livros são o reflexo do seu espírito. Quem os lê nota logo os quatro traços que o distinguem: a preponderância da imaginação física, o amor da observação minuciosa, a rectidão dos instintos morais e o talento da notação exacta. Pela imaginação física ele reproduz a realidade nos seus aspectos corporais, formas, cores, movimentos, agrupamentos e sucessões, com uma fidelidade e uma abundância de que não há dois exemplos na nossa literatura contemporânea. Pelo seu amor da observação minuciosa, adquire e arquiva na sua memória uma quantidade prodigiosa de pequenos factos, matéria, feitio, proveniência, qualidades, preços, usos dos objectos, fisionomia, gestos, naturalidade, ocupação, relações, gostos, costumes, vestuário das pessoas e mais uma profusão de receitas, conselhos, contas, casos de experiência caseira e sabedoria prática, tudo afogado num dilúvio de anedotas através do qual sorri animada a sua bela face de gigante amável.

Para transmitir essa multidão de dados e pintar essa profusão de aspectos dispõe e usa de uma prosa abundante, pitoresca, técnica, naturalmente rica e continuamente enriquecida. A cifra total e a facilidade com que mobiliza o seu exército de palavras são na verdade surpreendentes. Os vinte ou trinta dialectos profissionais, cujo conjunto constitui uma língua culta, conhece-os bem e usa-os com acerto, salvo o dialecto dos filósofos. Finalmente todos estes recursos são postos ao serviço duma ideia nobre de reforma dos costumes em harmonia com o ideal. Esse ideal não é um fim transcendente como o dos temperamentos religiosos, nem a vida intensa e múltipla como o das naturezas artísticas, nem a compreensão cabal como o das vocações científicas. É um ideal de saúde, honra, força física e energia moral, inclinado a considerar a vida como a série de actos úteis a nós e aos outros, inscrito entre dois mistérios a que é inútil e mesmo ridículo tentar ver o fundo.

Estas qualidades e estas tendências manifestam-se plenamente na interessante colecção das Farpas, pintura fiel e vasta da Sociedade portuguesa nos seus aspectos exteriores, e nos belos livros de viagens sobre a Inglaterra e a Holanda. Lendo-os, éimpossível não apreciar e simpatizar com esta vigorosa individualidade literária, mais feliz quando emprega os recursos da sua observação exacta e a rectidão dos seus instintos morais na pintura e na reforma dos costumes, que quando improvisa explicações e teorias a que não o destinam nem a natureza nem a cultura.

XII

Enquanto a Poesia, o Romance, a História, a Crítica, apresentavam representantes eminentes e obras de subido valor, definhava e agonizava uma espécie literária cujo carácter próprio é ressentir-se imediata e directamente das vicissitudes do estado social que a produz. Refiro-me ao Teatro. A história das literaturas ensina que a floração e a superioridade das condições cénicas são condicionadas pela presença duma comunidade de sentimentos e dum acordo de opiniões na consciência colectiva.

Ora, se nós examinarmos a nossa vida nacional nos últimos cinquenta anos, veremos que não se encontra nela nenhuma dessas forças capazes de produzir uma conexão afectiva no domínio das manifestações do espírito artístico. Nem uma perfeita harmonia da vida privada com a vida pública como na Grécia de Sófocles, nem uma vigorosa expansão naturalista como na Inglaterra de Shakespeare, nem a energia do fanatismo e do patriotismo como na Espanha de Lope, nem a preponderância e a perfeição da vida de salão como na França de Racine. Nem crenças religiosas, nem sentimento nacional, nem superabundância de vida instintiva, nem a perspicácia critica do tacto mundano se manifestam num país em que o contacto com as ideias europeias ataca as crenças tradicionais, em que a maior facilidade das comparações e a consequente consciência da pequenez própria suprimem o orgulho patriótico, em que a pobreza, a sujeição e a preponderância invasora da burocracia prejudicam a altivez e o vigor do animal intacto, e em que finalmente a ausência duma grande aristocracia e também uma incapacidade de génio impedem a aparição da perfeita vida mundana.

Em plena florescência da inovação romântica, no fervor moço das crenças liberais, quando a guerra da independência e as lutas civis acabavam de tonificar a fibra nacional e pelo estudo do seu passado o país retomava consciência de si mesmo, Garrett tentou ressuscitar o nosso teatro. Deste esforço só ficou a colecção de obras-primas do mestre. Já era um triste sintoma que a produção culminante do período fosse essa tragédia do Fr. Luís de Sousa, que na verdade patética das criações e das situações é como que o retrato da alma nacional contemporânea e o drama cíclico da nossa decadência. Os continuadores de Garrett não estiveram à altura da tarefa e não lograram sustentar uma corrente valiosa de produção cénica. Nem admira, expostas as razões que acima enumerámos.

Contudo, há um meio para estimular a criação dramática na ausência das vivas causas espontâneas: é a actividade crítica. É por ela que a Alemanha de Lessing, de Schiller e sobretudo de Goethe, vem ajuntar uma nova e abundante messe de obras superiores ao tesoiro do teatro europeu e acrescentar uma nova forma à série de fontes de criação dramática. Será esta estrada seguida entre nós? Não o podemos prever.

Seja porém qual for o futuro do nosso teatro, é conveniente consignar aqui um testemunho de calorosa simpatia às tentativas que nos últimos anos têm procurado levantar o nível do teatro português pela criação de obras originais e despidas dum puro intuito de lucro.

XIII

As ciências sociais e a investigação histórica são representadas no último período por dois homens superiores dotados duma variedade de aptidões raras e duma energia infatigável de trabalho: Teófilo Braga e Oliveira Martins.

Aquele que percorre o conjunto dos escritos de Teófilo Braga é igualmente surpreendido pela abundância e variedade de géneros como pela facilidade e superioridade da produção. Conheço poucos homens dotados de tanto talento e de tantos talentos. A sua vocação é politécnica. Poeta, é-o cela energia da sensibilidade, pela sinceridade da paixão, pela tenacidade das crenças e, finalmente, por um tino singular em ver o lado épico dos acontecimentos históricos. Crítico, é-o, e dos mais valiosos, pela sua rara intuição do que há de verdadeiro e profundo nas obras de arte, pela sua elevada concepção das literaturas como produtos sociais e instrumentos de cultura, pela sua vasta erudição e pelos seus hábitos de comparação. Psicólogo, é-o pela sua percepção dos meios e das épocas e pela sua penetração ainda que intermitente adivinhação dos caracteres. Filósofo, é-o pelo seu amor das ideias vastas, pela sua capacidade das operações abstractas e pela sua compreensão geral ainda que mecânica do mundo.

Todos estes dotes de erudição e generalização se encontram na sua História da Literatura Portuguesa, combinados e um pouco prejudicados por um tom de agressão e instintos de polémica e revolta. É que todos estes dotes são empregados por uma organização de reformador e sectário. «O fim do homem é a acção»: este aforismo de Voltaire resume a sua concepção da vida. A aptidão politécnica anda nele ligada ao temperamento apostólico. Dai o fluxo inesgotável da sua produção de propaganda e combate, a rapidez de execução dos projectos literários, o descuido voluntário da forma, próprio de quem considera o livro como um instrumento e a literatura como uma acção, a dureza na refutação e a rudeza na discussão, o tom inflamado e decidido das afirmações, a intransigência obstinada nas teorias e o hábito de tratar os adversários como inimigos seus e da Verdade. Aberrações que acompanham a grande faculdade de crer e de querer, e que se exageram naturalmente num pequeno país em que tudo vai mal e em que a ciência para ser atendida tem de revestir a forma de escândalo.

Todos estes traços, juntos à necessidade de ideias palpavelmente nítidas, explicam o seu positivismo, doutrina que satisfaz as necessidades de afirmação e os instintos de negação do seu espírito, e que, sendo uma coordenação limitada dos fenómenos naturais e uma organização humana do mecanismo social, se coaduna plenamente com a sua aversão pelo regime teológico e a sua prevenção contra as explicações metafísicas.

Três traços caracterizam o vulto literário de Oliveira Martins: a imaginação psicológica, a sensibilidade moral e a capacidade das ideias gerais. O primeiro traço produz a abundância e vivacidade dos seus retratos, em que os indivíduos são apanhados na plenitude e flagrância das suas fisionomias, e explicados em todos os pormenores importantes da sua organização. É ainda o mesmo traço que explica a qualidade das suas paisagens, que são menos a cópia dos contornos e das manchas do que a notação das impressões recebidas, e que se poderiam definir corno a transcrição moral dos aspectos físicos. O segundo traço, a sua sensibilidade moralista, determina a ausência de expansão naturalista no conjunto da sua obra, inspira uma concepção vigorosa e severa da vida e dita-lhe o corpo das suas opiniões políticas e jurídicas sobre a Propriedade, a Família, o Estado, o Amor e o Casamento, a Guerra e a hegemonia das raças superiores, a pena de morte e o direito de punir, juízos igualmente afastados duma filantropia epicurista e dum radicalismo impraticável, e que ele resumiu numa frase quando escreveu que o amor dos homens é o amor da dignidade humana. O terceiro traço, a capacidade das ideias gerais, é mais propriamente dum crítico que dum filósofo e habilitando-o a coordenar a sua experiência da Vida num todo coerente e restrito exclui-o duma compreensão total e suficiente do Universo. É que nele o trabalho de generalização se realiza guiado e limitado por uma prudência desconfiada que raia no cepticismo.

Estes caracteres, juntos ao talento literário da descrição viva, da narração veloz, e aos recursos dum estilo inventado em todas as suas partes, compõem a sua vocação de historiador. A capacidade das ideias gerais empregada na explicação dos movimentos da vida colectiva e a hombridade de carácter aplicada à compreensão do génio peninsular determinam a produção da História da Civilização Ibérica. O talento de narrar, de pintar os caracteres e de descrever as paisagens como componentes na formação dos caracteres, empregado na reprodução da nossa vida nacional desde as origens, dão de si a História de Portugal.

Finalmente todos estes dotes, juntos a uma admirável isenção crítica, a uma coragem pouco vulgar, a um perfeito bom senso e a um conhecimento cabal da matéria tratada, concórrem para a produção da sua obra-prima: o Portugal Contemporâneo. Livro magistral e educativo em que as mais profundas observações de moralista e as mais graves previsões de político se intermeiam com uma multidão de retratos dignos de Velazquez.

XIV

Se lançarmos os olhos sobre o conjunto da nossa produção literária neste século veremos que não nos falta a capacidade mas o que escasseia é uma forte corrente directriz de actividade critica. A ausência desta acção salutar explica o naufrágio de tantas vocações que convenientemente aproveitadas poderiam manifestar-se por uma produção valiosa.

Se interrogarmos a Crítica sobre o que nos convém fazer para não nos deixarmos afundar na esterilidade e na ruína intelectual ela nos responderá com três conselhos: 1º, a regressão ao génio nacional, pelo conhecimento das nossas aptidões étnicas peninsulares e especiais portuguesas, pela preferência dada aos temas nacionais nas criações literárias e pela convivência com os nossos grandes mestres da Renascença e do Romantismo; 2º, o estudo das literaturas estrangeiras no que elas possam ter de largamente humano ou particularmente análogo ao nosso génio; 3º a elevação da cultura filosófica que na aparência estranha à Literatura e à Sociedade inspira a primeira e governa a segunda, e pela sua ausência ou inferioridade determina a decadência e a morte de ambas.

Todos estes três elementos não abundam entre nós. A nossa, indiferença pela literatura nacional é completa, e este funesto esquecimento é igualado pela nossa ignorância das literaturas estrangeiras, limitada a nossa curiosidade aos sucessos ruidosos e efémeros da livraria francesa. O nível do pensamento filosófico é entre nós muito inferior, e se um grande poeta traduz nas suas criações líricas as verdades e os sonhos do monismo germânico, se um historiador ilustre submete toda a sua actividade à disciplina positiva, se um professor eminente emprega a sua rara capacidade de abstracção e a sua inexcedível precisão de linguagem em transmitir num instituto superior a doutrina neokantista, estes exemplos são raros. A maioria vive num materialismo rasteiro ou num positivismo exteriormente compreendido.

A geração que se levanta abre-se pois um vasto campo de actividade e reforma. Neste campo, largo é o terreno para a criação literária e oportuna a intervenção do espírito crítico.


Moniz Barreto, «A Literatura Portuguesa no Século XIX», publicado pela primeira vez na Revista de Portugal. Republicado em Ensaios de Crítica, 1944.



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