Projecto Vercial

Henrique Lopes de Mendonça


Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931) seguiu a carreira naval, tendo viajado como oficial da Marinha pela Europa e pela África. Foi professor da Escola Naval e da Escola de Belas-Artes de Lisboa, presidente da Academia das Ciências e um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Autores (1925). Em 1890 foi encarregado de escrever a letra do hino nacional, A Portuguesa. Notabilizou-se como dramaturgo historicista, inserindo-se a sua obra no neo-romantismo. Estreou-se em 1884 no Teatro D. Maria II com o drama A Noiva. A sua obra comunga do nacionalismo derivado do Ultimatum inglês. Obras dramáticas: A Noiva (1884), O Duque de Viseu (1886), A Morta (1890), Afonso de Albuquerque (1898), Amor Louco (1899), O Salto Mortal, Nó cego (1905), O Azebre (1909), Auto das Tágides (1911), A Herança, Saudade e O Crime de Arronches (1924). Romance: Os Órfãos de Calecut, Terra de Santa Cruz; Cenas da Vida Heróica (folhetins históricos em oito volumes): Sangue Português, Gente Namorada, Lanças na África, Capa e espada, Fumos da Índia, Santos de Casa, Almas Penadas, Argueiros e Cavaleiros. História e arqueologia: Estudos sobre navios portugueses nos séculos XV e XVI, O Padre Fernando Oliveira e a sua obra náutica, Memórias Académicas.


A MORTA

Drama em 5 actos, em verso, representado no teatro de D. Maria II em 30 de Dezembro de 1890.


ACTO PRIMEIRO


Sala de entrada nos paços de apar S. Martinho, em Lisboa. À direita, aposentos de el-rei. À esquerda, galeria com uma enfiada de portas, sendo a primeira a do aposento do corregedor Lourenço Gonçalves. Ao fundo, porta principal de entrada, dando sobre outra galeria, cujas janelas deitam para os lados do Tejo. – A cena começa de dia, devendo anoitecer durante o acto, conforme as indicações das rubricas e do diálogo.

CENA I

ESTÊVÃO LOBATO, em cena;
LOURENÇO GONÇALVES, saindo dos aposentos de el-rei
LOURENÇO

Catarina onde está?

ESTÊVÃO

Nos vossos aposentos.
Vi-a com sua mãe, inda há poucos momentos,
Entrando para ali.

LOURENÇO

Valha-me Deus! A mãe,
Não a esperava já. Bem sei para o que vem.
Suspirando.
Querem roubar-me a esposa, Estêvão!

ESTÊVÃO

Quê? roubá-la?

LOURENÇO

Por uns dias somente! Embora! não me cala
No espírito o projecto. Inda estou noivo...

ESTÊVÃO

Sim?

LOURENÇO

Há dois anos casado apenas...

ESTÊVÃO

Quanto a mim,
O noivado de um velho é como a fruta seca;
Não tem viço nem cor, mas dura como a breca.

LOURENÇO

Mas velho é que eu não sou!

ESTÊVÃO

Cantai-me a palinódia!
Na vossa idade o amor é já fruta serôdia.
Por isso quando el-rei, nas fúrias de justiça,
Lança peias no amor, vós ajudais à missa.
É que as peias, a vós, há muito que a bisonha
Natureza as lançou.

LOURENÇO

Quê?

ESTÊVÃO

Sois como a cegonha,
Que não pode comer na escudela da zorra.

LOURENÇO

Ruim língua tu tens.

ESTÊVÃO

Que Deus me não socorra,
Se o que eu digo é mentira.

LOURENÇO

Acuda Catarina
Em defesa do esposo.

ESTÊVÃO

Apenas a fascina
Um bom pano de Arrás, ou qualquer arrebique,
Que o judeu lhe vender...

LOURENÇO

Pois que não sacrifique
Um só desejo seu! Quero gastar à larga
Para adorná-la! Não! que eu tenho à minha ilharga
A doida mais formosa e mais gentil da corte!
Que a todos enfeitice a graça do seu porte,
E que a minha mulher a todas se avantaje
Na riqueza do adorno e nas pompas do traje!

ESTÊVÃO

Se é tal vosso desejo...

LOURENÇO

E mais que o meu: o dela.
Inda o judeu lá está?

Estêvão faz sinal afirmativo.

Pois se não se acautela,
Arrisca-se a encontrar de noite, pelas ruas,
Um dos meus aguazis que nas espáduas nuas
Lhe ensine c'o tagante o caminho de asa.

ESTÊVÃO

O perro bem conhece as ordens. Não se atrasa
Após o sol poente. À custa de uns açoites,
Que uma vez apanhou, soube que são as noites
Nocivas aos judeus, fora da Judiaria.

LOURENÇO

Mesma para os cristãos: a noite há de ser fria,
E Catarina, embora envolta em terciopelo,
P'ra que há de tiritar, caminho do Restelo?

ESTÊVÃO, à parte
Não terá mais calor no leito conjugal!

LOURENÇO

Co'a fortuna! Inda falta a permissão real!
Se el-rei a recusasse!... Eu, só por min, não tenho
Valor de resistir ao seu veemente empenho.
Ordens, ela é que as dá!

ESTÊVÃO, à parte

Mulher que cinge a espada,
Homem fia na roca!

LOURENÇO

Esta ausência forçada
Aflige! Em fim

Entra nos seus aposentos.


CENA II

ESTÊVÃO

Quem faz vontades à mulher,
Bem nos diz o rifão, tome o que lhe vier.
Para este nada vem de bom. Pobre Lourenço!
Para santa ruim, mal empregado incenso!
A culpa é minha só, que abri a capoeira
Ao galo rufião, de crista sobranceira.
A culpa é minha?... Não! Cousas de femeaço!
Mulher que anda no paço há de ter embaraço.
Se o crédulo marido ignorava este adágio,
Que se queixe de si, quando vir o naufrágio
Que lhe escangalha o lar.

Ouve-se preludiar num alaúde, do lado dos aposentos de el-rei.

Eis o leviano amante,
Que enleva os corações nas asas de um descante.

Voz de AFONSO MADEIRA, cantando fora

Dona de corpo deitado,
Em forte ponto eu fui nado,
Que nunca perdi cuidado,
Nem afã, dês que vos vi:
Em forte ponto eu fui nado,
Por vós, senhora, e por mim!

Ai! eu cativo e coitado,
Em forte ponto eu fui nado,
Que servi sempre logrado
Onde um bem nunca prendi.
Em forte ponto eu fui nado
Por vós, senhora, e por mim!

ESTÊVÃO

Linda trova!


CENA III

ESTÊVÃO, O PORTEIRO DO JUIZ DE AVIS, aparecendo ao fundo

ESTÊVÃO

Quem sois?

O PORTEIRO

Porteiro de juiz.
Urge que eu fale a el-rei.

ESTÊVÃO

Donde vindes?

O PORTEIRO

De Avis.

ESTÊVÃO

Que pretendeis de el-rei?

O PORTEIRO

Venho buscar justiça.

ESTÊVÃO

Contra quem?

O PORTEIRO

Contra alguém, cuja mão insubmissa
Ousou ferir em mim a grandeza da lei.

ESTÊVÃO

Oh! contai-me a aventura!

O PORTEIRO

É bem simples. Sabei
Que do juiz de Avis eu recebi mandado,
Por débitos legais, que fosse penhorado
Todo o bem do escudeiro... eu calo o nome agora,
Que é grande a parentela! Em fim, para a penhora,
Fui a rasa intima-to. E sabeis vós por que arte
O vilão me atendeu? Sem mais tir-te nem guar-te,
Dá-me um soco no rosto, e sem pudor arranca
Um punhado de cãs à minha barba branca.

ESTÊVÃO

Oh! como é grave o caso! El-rei, sabendo a afronta...
Mas dizeis que a família é nobre...

O PORTEIRO

Isso que monta?
A justiça de el-rei é forte; não manqueja,
Correndo atrás de um réu, por maior que ele seja.
Sabe-o de mais o povo, e nela só confio...

ESTÊVÃO

Tendes razão! Ela anda em linha sem desvio.
Preguntai novas dela ao bispo lá do Porto,
Que a mão régia açoutou. Por isso vos exorto
A que faleis sem pejo. A vossa causa é boa.
Não há de ser em vão que vindes a Lisboa.
Entrai.

Conduz o porteiro à porta dos aposentos de el-rei.

O PORTEIRO, saindo

Que Deus me ajude!

ESTÊVÃO

Assim seja!

Sai um momento com o porteiro.


CENA IV

LOURENÇO, CATARINA, ISABEL, DANIEL, Saindo todos do aposento do corregedor, logo depois ESTÉVÃO. DANIEL vem ajoujado com a sua pacotilha que pousa no chão

LOURENÇO, a ISABEL

Maldosa,
Que furtais ao marido a estremecida esposa!

CATARINA, beijando ISABEL

Também sou filha.

ISABEL

Olhai que palidez invade
Este lindo semblante! Os ares da cidade
São nocivos à flor que em campos desabrocha.

LOURENÇO

Pode a seiva exaurir do meu peito...

CATARINA, sorrindo

É de rocha!

LOURENÇO

Assim queres deixar-me, ingrata!

CATARINA

Quero apenas
Beber uns haustos de ar nessas terras amenas
Onde infante vivi; largar por alguns dias
Esta corte bisonha, as paredes sombrias
Deste paço real, è os seus tristes enredos;
Embriagar-me de luz no meio dos vinhedos,
Túnica esfarrapada e fresca da montanha;
Ver a terra feraz, como se desentranha
Em perfumes, em luz, em cânticos, em flores;
Recordar-me dos meus tão saudosos amores...

LOURENÇO

Dos teus amores?

CATARINA

Sim! Ah! não tenhais ciúmes!
Amores que me dava a rosa em seus perfumes,
O melro em seu gorjeio, o sol nos doces raios.

ISABEL

Vedes? Não fazem mal tais amores! Deixai-os
Expandir livremente...

LOURENÇO

Ides tornar-me monge!

ISABEL

Podeis ir vê-la!

CATARINA

É perto!

LOURENÇO

Em não te vendo, é longe!

CATARINA

Deixai-me...

ISABEL

No Restelo, apenas uma légua
Distante de Lisboa.

LOURENÇO, suspirando

Em fim, mandais! entrego-a
Nas vossas mãos, senhora!

CATARINA, batendo as palmas

Oh! como vós sois bom!

ISABEL

Quanto vos agradeço!

LOURENÇO, a ESTÊVÃO, que entrou no começo da cena

Ela possui o dom
De me enfeitiçar! Vê tu se alguém lhe resiste!

ESTÊVÃO, com amarga intenção

Com força para tanto é que ninguém existe!

DANIEL, que tem estado a arrumar a sua pacotilha

Horas são de partir! Respeito as ordenanças
De el-rei nosso senhor. O sol desce...

LOURENÇO

E descansas
Ainda aqui no paço, onzeneiro protervo?

DANIEL

Bem-dito Jeová! como tratam teu servo!
Bem sabeis que por mim suspiram as donzelas
E as donas do palácio...

ESTÊVÃO

A quem tu desmantelas
Com mercancias vis, tão falsas como tu,
Judas nojento...

DANIEL

Ah! não! como o pobre Esaú,
Fico sempre de perda... E quando porventura
Das jóias ao fulgor realçar a formosura,
Ficai seguro vós que %se lume do céu
Saiu da pele só do mísero judeu.

LOURENÇO

Ruim luz a que sai dessa carcassa imunda.
A pérola brotou de concha nauseabunda,
E tem rugas na casca o mais fino melão.

LOURENÇO

Já mostraste o recheio?

DANIEL

Estas damas não estão
Dispostas a comprar. E trago com certeza
Belas panos de Arrás, brocados de Veneza,
Sedas, rendas, anéis, lenços, perfumarias,
Pérolas e corais, brincos, especiarias...

ISABEL

Nada nos serve.

DANIEL

Não? Pois seda fina e cara
Heis de vê-la amanhã.

CATARINA

A quanto custa a vara?

DANIEL

Só sabe Jeová o quanto ela me custa.
Deve descarregar amanhã de uma fusta,
Que há pouco largou ferro em frente do Restelo.
Um soberbo pacote! E não posso vende-lo;
Senão com perda, crede. Enfim se ma comprais,
Inda bem-digo a fusta e mais o seu arrais,
Pois que trouxeram lenha em que deve queimar-se
Mais de um terno amador.

ISABEL

Abandona o disfarce.
A seda a quanto fica?

DANIEL

Amanhã vo-lo digo.
Irei a vossa casa, e levo-a então comigo.
Vós me direis depois se uma tal maravilha
Não reveste a primor as graças de uma filha
Tal como a vossa.

LOURENÇO

Hebreu! Suponho que inda gostas
De ver deitar-se o sol.

DANIEL

Fazem-me arder as costas
Os seus raios no ocaso.

CATARINA, em voz baixa a LOURENÇO

A seda, embora bela...
É melhor que a não compre.

LOURENÇO

Assim hás-de perdê-la?
Eu julgo que é melhor comprá-la a todo o preço.

CATARINA, rindo

És um pródigo esposo!

LOURENÇO

Acaso não mereço
Que te enfeites por mim, minha garrida?

ESTÊVÃO, à parte

Como
Eva sabe enfiar o malfadado pomo
Nas goelas de Adão!

ISABEL, pegando num colar de pérolas que está na pacotilha do judeu

Que esplêndido colar!

CATARINA, tomando-o

Magnífico!

Ouve-se de novo a voz de Afonso Madeira cantando durante alguns momentos.
À parte, largando o colar nas mãos de Daniel

DANIEL

Se vós o q'reis guardar...

CATARINA, com resolução súbita

Depressa, minha mãe! É perigosa a volta
Ao Restelo de noite...

ISABEL

Eu tenho boa escolta.

LOURENÇO

É mister permissão de el-rei! Minha inconstante,
Queres fugir de mim...

CATARINA, à parte, sombria

Quero fugir do amante!

DANIEL

Gentil dona...

LOURENÇO

Judeu, convém que tu te salves
Do relento da noite.

Voz de EL-REI, fora

Ó Lourenço Gonçalves!

LOURENÇO

El-rei!

DANIEL, agarrando na pacotilha

Terrível rei que aparece ao sol posto!

Sai pelo fundo a correr. Lourenço corre à porta da direita, onde el-rei aparece, seguido de Afonso Madeira e do porteiro de Avis.

A Morta, Lisboa, Portugal-Brasil, 2ª ed., 1927.



DUPLICAÇÃO

A mulher, que adorei na tua imagem,
Essa alma, que minh'alma de improviso
Na doçura enxergou do teu sorriso,
Como um raio de sol entre a folhagem;

A imaculada e cândida miragem,
Esse vulto adorável, indeciso,
Que ainda, louco, tanta vez diviso,
Sob as pregas de uma áspera roupagem;

Essa visão que me incendia a mente,
Ao retinir do meu primeiro beijo,
Em fumo se desfez subitamente.

Agora, morto o amor, vivo o desejo,
Que perfeita revives, quando ausente!
Que saudades de ti, quando te vejo!


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