Bento da Cruz

Bento da Cruz

Bento Gonçalves da Cruz nasceu em 1925, na aldeia de Peirezes, freguesia da Chã, concelho de Montalegre, Trás-os-Montes. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, exercendo Odontologia em Trás-os-Montes e no Porto. Foi nesta cidade que fixou residência. Em 1959 publica em Coimbra sob o pseudónimo de Sabiel Truta o seu primeiro livro, uma colectânea de poemas intitulada Hemopise. Colaborou no suplemento literário do Jornal de Notícias e na Antologia da Poesia Contemporânea de Trás-os-Montes e Alto Douro, coordenada por Carlos Loures (Coleccção Setentrião, Vila Real, 1968). A propósito das tradições e vivências do Barroso, publicou várias obras de ficção. Ganhou o Prémio Literário Diário de Notícias em 1991. Após o 25 de Abril, fundou o quinzenário regionalista Correio do Planalto que ainda hoje dirige. Obras: Planalto em Chamas (1963), Ao Longo da Fronteira (1964), Filhas de Lot (1967), Contos de Gostofrio (1973), O Lobo Guerrilheiro (198O), Planalto do Gostofrio (1982), Histórias da Vermelhinha (1991), Victor Branco, Escritor Barrosão – Vida e Obra (1995); O Retábulo das Virgens Loucas (1996); A Loba (2000).




O RETÁBULO DAS VIRGENS LOUCAS

(Extractos)

Nos meses seguintes encontraram-se quase diariamente, sob a capa da noite. Qualquer canto lhes servia para o amor. Mas Picholeta tinha uma predilecção especial pelo palheiro. Aliás o palheiro do Soutelo parecia adrede concebido para encontros deste jaez. Duas portas diametralmente opostas, uma para o pátio, outra para a eira. O Caixeiro entrava por esta, Picholeta por aquela. Sempre depois da ceia, hora em que, provavelmente, ninguém ali poria os pés. E que pusesse. O que os dois amantes tinham a fazer, era ficarem muito quietinhos, enquanto o intruso se não retirasse. Mesmo que algum ruído fizessem, facilmente seria imputado a algum gato murador, às ratazanas que gostam de cabriolar na palha, aos pardais que se aninham no forro das beiras.

Picholeta adorava o contacto e o perfume do feno à flor da pele. Para ela, o palheiro era um afrodisíaco. O amante usava gemadas de ovos com vinho e açúcar. Naquele tempo, o Zé Caixeiro era um brutamontes. Sempre o foi. Mas Picholeta estava apaixonada e não o escondia. Era com o Zé Caixeiro que dançava, aos domingos, no eirão do forno; era para ele que apanhava o colmo nas eiras, durante as malhadas; era para ele que virava o linho nos maçadoiros, nas tardes calmosas; era com ele que palrava e ria a caminho da missa, uns seis quilómetros, ida e volta. À vista do que, as crianças começaram a segredar umas às outras:

– A Picholeta e o Zé Caixeiro... – e modulavam umas risadinhas cheias de inflexões maliciosas.

Os adultos achavam aquilo natural.

– Desde que ele a pretenda para bem – ressalvava Felisbela.

E, para se tirar de dúvidas, fez-se encontrada com a Albina Caixeira.

– Ó tia Albina? Faça favor de guardar o seu filho, ouviu? Ele que me faça algum mal à rapariga...

– Ai eu é que hei-de guardar o filho? Se calhar, é ele que veste saia... Olhai que o disparate... Não guardes tu a filha, e depois queixa-te...

Felisbela ficou elucidada. Chamou Picholeta à puridade e exigiu-lhe que terminasse com o namoro.

– A boas horas me vinha você com o recado.

– Que queres dizer com isso?

– O que a mãe vê. Ou anda cega?

Felisbela olhou-lhe para a barriga e empalideceu-

– Matava-te!

– Era uma esmola que me fazia.

– Não ma peças duas vezes, desgraçada!

E, dizendo, arremeteu com ela a punhos e dentes cerrados. A pequena foi para se defender, desequilibrou-se e caiu. Felisbela calçava socos abertos. Começou a agredi-la a pontapés, de preferência no ventre, que a rapariga protegia, enovelada em bicho-de-conta.

– Porca! Perdida! Cadela! Vaca! – gritava a fúria, a cada novo golpe.

Quando lhe pareceu que teria morto, pelo menos, o feto, deteve-se. Aliás já lhe doíam braços e pernas de tanto murro e couce disparado.

Passava-se isto no palheiro, onde Felisbela atraíra a filha a pretexto de a ajudar a fazer uma ração de feno para uma vaca parida. Picholeta jazia, por morta, no chão.

– Grande puta! – cuspiu-lhe ainda Felisbela. E acrescentou, com visível prazer vingativo-

– Prepara-te! Que sem as do teu pai não escapas...

Como a filha não reagisse, rolou-a com a ponta do soco:

– Estás a ouvir-me'!

– Estou. Deixe-me.

Felisbela saiu do palheiro a carpir-se em voz baixa. Dir-se-ia ter sido ela a agredida.

Pelo contrário, Picholeta não soltou o mínimo queixume. Afinal, para ela, o contacto e o cheiro do feno, para além de afrodisíacos, eram também anestésicos. Quase não sentira as pancadas. Mas tinha sangue no rosto e nas mãos. E a promessa de mais porrada, logo que o pai chegasse do monte. Que fazer? O primeiro refúgio que lhe ocorreu foram os braços da senhora Marcelina. Ergueu-se e correu para eles.

A velha tecedeira enxugou-lhe maternalmente as lágrimas e o sangue.

– Eu compreendo a tua amargura, minha filha. Mas não desesperes. Eu já passei por situações piores do que a tua, e ainda aqui estou.

– Piores do que a minha, como? A senhora nunca se viu prenha e abandonada.

– Canté! Tu, pelo menos, és solteira. Eu era casada e com o marido no Brasil. Ora adeus. Farta de saberes isso estarás tu.

– Juro-lhe que nunca ouvi dizer nada.

– Esse favor devo aos meus vizinhos. Esqueceram o meu crime. Eu é que não consigo esquecê-lo. Todas as minhas horas são de arrependimento e de lágrimas.

E a senhora Marcelina calou-se para enxugar os olhos ao avental.

– Conte-me. Bacoreja-me que me fazia bem ouvi-la.

– E a mim desabafar contigo. Mas deixemos isso para depois. Agora vamos ao que interessa: há quantas luas te falhou a menstruação?

– Na minha inocência, nem liguei às falhas. Só me apercebi do meu estado quando a criança me começou a fazer cócegas na barriga.

– Avisaste o namorado?

– Claro.

– Que disse ele?

– Que ia tratar dos papéis para o casamento. E nunca mais me apareceu.

– Era de esperar. Triste condição a nossa. Mas não te aflijas. Eu vou falar com os teus pais e com os dele.

– Vai aborrecer-se para nada.

– Mas ficamos a saber com aquilo que podemos contar.

Enquanto isto, o Soutelo veio dos campos, viu a cara-metade na carpideirice e perguntou-lhe porque chorava.

– Por mor da Picholeta.

– Que tem ela?

– Está prenha.

– Tu não me digas uma coisa dessas, mulher!

– Olha-lhe para a barriga.

– Onde está ela?

– Deixei-a por morta no palheiro.

– Vou acabar-lhe com a tosse.

O Soutelo a sair da cozinha e a senhora Marcelina a entrar no pátio.

– Com licença.

– Tem-na.

– A Felisbela?

– Está aí dentro.

– Então entre o senhor Alípio também, que desejo falar com os dois.

– Sente-se. Sente-se, tia Marcelina – disse Felisbela, abrindo espaço no escano para a visita.

A tecedeira sentou-se e prosseguiu:

– Já sei da cizânia que vai nesta casa e da vossa justa cólera. Mas peço licença para vos advertir de que não é com pancada que estes casos se resolvem.

– Ai já sabe? – interrompeu o Soutelo – Lá diz o ditado:

O como é sempre o último a saber – concluiu, muito ferido no seu orgulho de pater-famílias.

– Soube-o hoje pela boca da Picholeta, por sinal muito mal tratada pelos tamancos da Felisbela.

– Não estou arrependida.

– Fazes mal. A culpa não é só da pequena.

– Ai o sedutor não escapa sem uma olhada de sacho nos cornos – farroncou o Soutelo.

– Cala-te. Cala-te burro capado. Que se a minha filha tivesse outro pai, talvez as coisas não chegassem onde chegaram.

– Quem nos diz a nós que o rapaz não está disposto a reparar o mal que fez?

– E a Caixeira consentia no casamento? Olha e mais que soberba...

– Não há como perguntar-lho. E, se não tendes nada a opor, é o que eu vou fazer.

– Nós agradecíamos.

– Então com licença.

A senhora Marcelina embiocou a capa de burel e saiu. Por sorte, a Caixeira descia a rua com um cesto de couves à cabeça.

– Ó Albina? Espera aí que te quero uma coisa.

A Caixeira era escanelada e azeda. P arou a olhar de soslaio por sob o cesto das couves, muito hirta e esfíngica na calçada.

– Pois eu vinha falar-te a respeito do teu Zé.

– Que mal te fez ele?

– A mim, nenhum. Mas já da Picholeta se não poderá dizer outro tanto.

– De que se queixa ela?

– Desfloramento, gravidez e abandono.

– Que não fosse tola. Emprenhou? Que aguente. Não será a primeira nem a última fêmea a parir.

– Ela não tem medo do parto. O que não quer é um filho zorro.

– Que faça um aborto.

– Lembra-te que é teu neto.

– Olha com o que tu me vinhas agora... Nunca ouviste dizer: os filhos da minha filha, meus netos são; os do meu filho, ou serão ou não?

– Coitada da pequena.

– Uma sabidona... Queria então deitar os gatázios ao meu Zé? A bom lenço se assoava...

– Se te não servia para nora, repreendesses o rapaz. Não o deixasses brincar com a honra e a felicidade de uma donzela.

– Os rapazes procuram o que lhes faz falta. As raparigas que se defendam.

– Aprovas então o que ele fez?

– Aprovar, não aprovo. Mas que queres tu que eu te diga?

– Que vais remediar o agravo.

– De que maneira?

– Casando-os.

– Ó Marcelina? Tu não estás boa da cabeça. Boa noite.

E voltou-lhe as costas malcriadamente.

A velha tecedeira perdera os dentes molares e, à força de mastigar com os incisivos, projectara os superiores de molde a imprimirem-lhe ao rosto a doçura de um coelhinho branco. Foi com aspecto de coelhinho branco de lágrimas nos olhos que reentrou em casa dos Soutelos. Estes olharam para ela e compreenderam.

– Vai-se para a justiça – exclamaram ambos a um tempo.

Depois o Soutelo calou-se e a Felisbela prosseguiu sozinha-

– A rapariga é menor. O Zé Caixeiro tem pouco por onde escolher: ou casamento ou cadeia.

– Tende calma. Deus é pai. Ainda não perdi as esperanças de resolver as coisas sem ir às do cabo.

– Como?

– Deixando acalmar os ânimos. Hoje estamos todos muito exaltados. Amanhã veremos o acontecido com outros olhos. E vou andando, que a pequena deve estar para ali sozinha e às escuras.

– Mande-no-la para casa.

– Se não te importas, esta noite ceia e dorme comigo.

– Isso vai causar-lhe transtorno.

– Nenhum. Até me faz companhia. Com vossa licença.

– Vá na paz de Cristo.

A senhora Marcelina embiocou-se de novo na capa de burel e dirigiu-se a casa naquele passo diligente e humilde que era o dela.

– Picholeta? – chamou, do limiar da porta entreaberta. Como ninguém respondesse e a casa estivesse às escuras, riscou um fósforo. Picholeta jazia reclinada no escano e profundamente adormecida. A senhora Marcelina sorriu, deitou-lhe a capa por cima, acendeu a candeia e o lume. A cotio, ceava apenas um caldo de hortos. Naquela noite cozeu batatas e foi buscar uma assadura que lhe haviam oferecido pela matança dos porcos e ela guardava embebida em pingue. Tudo feito em pezinhos de lã, mil cuidados, para não acordar a hóspeda. Só chamou por ela com a mesa posta. Picholeta pestanejou muito antes de se aperceber onde estava:

– T'arrenego! Que sono me deu...

E, reparando na pitança:

– Ena, tanta coisa! Espera por alguém?

– Por ti.

– Não me diga que se esteve a incomodar por minha causa?

– Incómodo nenhum. Pelo contrário. Estou para aqui sempre sozinha e triste. Nem sabes o contentamento que a tua companhia me dá. Come. Despacha-te que deves estar morta de fome. Ademais, agora tens de te alimentar por dois.

– Se tiver com que.

– Então não hás-de ter? Virgem Santíssima!

– Desculpe se a aborreço com tanta pergunta. Mas gostava de saber se falou com os pais do Zé.

– Só com a mãe.

– E então?

– Que ia consultar o marido e depois me daria a resposta – mentiu. E, batendo com a mão na testa-

– Ai que me esquecia o melhor.

E foi ao louceiro buscar uma cabacinha de vinho engravatada de laçarote.

– Que tal achas a assadura?

– Um petisco. Não me lembro de comer coisa que tanto me soubesse.

– Pois que te preste, minha filha.

– E a senhora não come?

– Eu? Como e bebo, olha.

E levava o garfo à boca, e a cabacinha aos lábios, tudo a fingir, a dar tempo a que a hóspeda se banqueteasse. O que de facto aconteceu. A ponto de se espernegar na parrogueira, num estremecimento de todos os membros.

– Bem me custa, mas tenho de ir, que os meus já devem estar em cuidado.

– Não estão que eu disse-lhes que hoje dormias comigo.

– Ai que bom! A senhora é uma santa!

E, saltando-lhe ao pescoço, beijocou-lhe as faces com uma ternura tão sôfrega, que a velhota se comoveu. Para disfarçar a pieguice, propôs:

– Vamos oferecer a mesa.

Picholeta chegou a temer que a senhora Marcelina lesse pela cartilha do pai Soutelo, o qual, quando se punha a oferecer a mesa, só não chegava a invocar quantos santos há no céu e defuntos no purgatório porque, para alívio de mulher e filhos, adormecia aí por alturas do vigésimo padre-nosso. Mas não. A bondosa tecedeira, entre o «Assim como o Senhor nos deu para hoje, nos dê para amanhã e para todo o sempre», e o «Deus, que benzeu o mar e a terra, benza esta mesa e mais quem comeu nela», intercalou apenas um padre-nosso e uma avé-maria em sufrágio dos pais e do marido e outro e outra por uma intenção particular, cuja Picholeta facilmente adivinhou quem fosse.

– Deite-me a sua bênção – disse, indo beijar-lhe a mão.

– O Senhor te abençoe, meu anjo! – correspondeu a devota tecedeira, dando-lhe a dextra a beijar e impondo-lhe a sinistra na cabeça, num gesto de ternura e protecção. Depois soltou um suspiro de Ai Jesus! tão fundo e sentido, que a pupila estremeceu.

– Que foi?

– Nada. Coisas cá da minha vida.

– Conte-me!

Enquanto arrumavam a cozinha, a senhora Marcelina contou uma longa história. Picholeta ainda queria mais. Mas a velha tecedeira refreou-lhe maternalmente a curiosidade.

– Para outra vez. Agora vamos dormir, que são que horas da noite.

Rezaram o «Com Deus me deito, com Deus me levanto», fizeram o «Pelo sinal» e estenderam-se entre lençóis, linho supra, estopa infra. A senhora Marcelina adormeceu logo na paz de uma consciência tranquila. Picholeta ficou tempos infinitos a magicar na história que a velha tecedeira lhe havia contado.

© Bento da Cruz, O Retábulo das Virgens Loucas, Lisboa, Editorial Notícias, 1996, pp. 78-86 (reprodução autorizada pelo autor).


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