José Emílio-Nelson nasceu em 1948 em Espinho. Obras: Polifonia (1979), Polifemo e Outros Poemas (1983), Extrema Paixão (1984), Nu Inclinado (1985), Queda do Homem (1989), Vida Quotidiana e Arte Menor (1990), A Palidez do Pensamento (1990), Claro Escuro ou a Nefasta Aurora (1992), Sodoma Sacrílega e Poesia Vária (1991), Mosaico (1996), A Alegria do Mal - Obra Poética 1979-2004 (Quasi, 2004).
Nota crítica sobre a poesia de José Emílio-Nelson, por Luís Adriano Carlos
José Emílio-Nelson, editor dos seus próprios livros, é um daqueles poetas que a crítica insiste em não reconhecer como uma das vozes mais originais da poesia portuguesa das últimas duas décadas. Situando as suas referências numa genealogia heteróclita e maldita que passa principalmente por Sade, Lautréamont, Rimbaud, Nietzsche, Jarry, Ângelo de Lima, Artaud e Bataille, associa com ostensivo sentido derrisório uma altivez aristocrática da expressão a um hieratismo litúrgico em que o simbolismo sacral da linguagem é atravessado por intensos odores de profanação escatológica. Poesia que cinicamente recusa a ética da virtude e dos bons sentimentos, encontra na reinvenção de uma inconfundível estética do vício e da crueldade o melhor caminho para separar a estética da moral e exercer sem contemplações uma crítica ética da natureza infra-humana ou demasiado humana que a Moderna poesia virtuosa e benquista acaba por camuflar sob o manto da beleza, do bom gosto, da razão ou mesmo do prestígio cultural. Dionisíaca e satânica, dissolvendo as imagens da tentação em cenários que evocam o mundo-cão boschiano e enfatizando a violência transgressora do erotismo, liberta das palavras as suas pulsões mais negras com vista a uma teatralização da escrita plena de descrições que perfuram perversamente os objectos nomeados. Tudo isto implica uma desarmante consciência da escrita como gozo sensual e libidinoso, apesar de contida e despojada, ou como voluptuosa deglutição de fragmentos citacionais, oriundos de toda uma rede de textos literários e artísticos, que actuam reactivamente no metabolismo do discurso para proporem um pacto de leitura assente no mais excessivo dos desconfortos críticos.
ANTOLOGIA
Não se pede segredos a uma pedra. Diz-se à criança: - Fica muda, de pedra.
Sempre houve pedras mais pedras que outras que são preciosas, pedras que se tingem das cores que assombram. Pedras que dão sombras para adormecer. Pedras que de noite se escondem no ar, assustam. Pedras que cortam árvores e outras que adormecem a seus pés, lembram rebanhos curvados. Há pedras que estão de cabeça levantada à espera da mão de Deus?
Todas as pedras deambulam. Evadem-se. Os ventos do céu sabem disso. Na montanha a voz das pedras sente-se pesada. (A montanha escoou-se entoando a pedra.)
- Estrondosa, diz-se à criança. Sacodem o silêncio que abriga sementes e as revestia. Belos animais pardos e luzidios com quem falamos. Nocturnos e diurnos, dentro e fora da terra. Pedras nos compêndios escolares e à chuva com fastidiosa passividade. Pedras com cabeça de nuvens. E pedras no bolsito da criança.
Há a pedra sombreada enquanto a Lua parece a pedra do céu. Há a que retém lágrimas demais, se se quiser, orvalho, por ser triste pela manhã. Há pedras alegres que são espelhos as mais das vezes. Abrem-se e a criança entra nas portas encerradas.
(in Claro Escuro ou a Nefasta Aurora)
A PALIDEZ DO PENSAMENTO
I
"Sonhei que retirava uma pena do meu cérebro", disse. Com a pena transparente escrevia sobre si própria, uma tatuagem clara que ensombrava.
O que revela não tem a pose do desânimo.
Sim. Há uma dimensão erótica que nem sempre nos surge velada: a dor que substitui o olhar.
Sentir, uma visão do prazer. É esse o sentido do tempo em que se vive com estremecimento, o alumbramento da solidão. Momentos únicos,
trazem quase sempre a demência. A que surge para que cada um se ilumine no outro.
II
Falava da vontade do sol e da vontade da chuva, Nem sei o nome do desprezo. Lodaçal, que disse? Não beijei, por isso, a beleza, mas a sua urina. O castanho profundo das cicatrizes. Falava da loucura como se fosse a sua pele.
"Falo da dor que é volúpia. A que se reparte pelas noites sombrosas. A que ilumina a vigília da minha tristeza.", escreveu-me.
IV
Saber escutar o próprio pensamento é uma dádiva. Um excesso de aparições, o desenho entrega-se ao fascínio dessa intransigência da expressão sobre o aniquilamento da imagem.
V
"Sou um manequim sem eloquência. Nem me refiro às vestes. Estranho para mim. Que palavras para o meu suplício?", disse.
"À parte o sossego, nada existiu entre nós.
Sou filha de Lang. Tão metálica. Com areia no sangue", disse. Manhã obstinada, a minha.
A nostalgia esfuma-a, obsequiosa.
"Repuxo. Água caindo (em sentimentos) (ora secura) noutra água." Lê no postal Villa Borghese.
VI
"Olhe, desculpe. Deram-me um álbum de Munch. São os meus gestos, a indignação. Sabe, é isso que, que quero dizer. Que lhe quero
dizer", disse-me quando a conheci.
Ela espera-me à saída. ("Desculpe, vou ter aula com modelo".)
O pau de carvão, as folhas do papel. ("Não sei desenhar a rapariguinha, as regras da escola".)
Conversámos. Pergunto. Respondeu.
("O vexame que o espelho repete. A mão atada. Masoch? O seu sapato. Têm lugar na minha pele e alma." Creio que é isso.)
É a figura de uma máscara. Um rapaz de luto. Entre narcisistas a comunhão para a morte é desejável. Angustiante dizer isto.
(A beleza da lágrima no sorriso masculino. Nada a dizer. Enfraquecida; interesso-me pela sua timidez. Permaneceu, ao lado dele, à porta sem entrar.)
VII
Vivera numa casa em que os homens encontravam uns rapazes. Às vezes repartiam comprimidos nas doenças parecidas. E passeavam nus pelos corredores. "A noite findada era branca de tanta nudez adolescente.", disse sem mais.
Reconheço essa retórica.
VIII
A visão de um fiozinho de sangue. Todo o rosto marmóreo. O sangue a enegrecer. Eu recordo o mar excessivo, o rapaz a soçobrar. Ou o brilho de uma pequena noite, um gato, para o ar esbranquiçado de tudo. Tanta luz que o corpo escurece. "Possuiu-me. Prazer que se inteirou da alma, fui rapaz, melancólica como você. Perdoe-me." Disse. É o mar enlameado que descubro. E cada vez mais lentura. Há pedras largas nos músculos. Rasgões. Arcos de luz a debruar a lassidão. (A heroína desfralda para o pavimento do céu.)
"Ele ressoa. Ele odeia-nos.", diz a condoer-se.
IX
Dominada pela palidez do pensamento. Li em Lacan. Algures, suspirando, a figura angélica. Ao crepúsculo, com pressentimentos, escondia a tonalidade dos cabelos e o ânimo.
"Os seiozinhos, os pêlos, a sensação de vidros estilhaçados dentro da vagina. Na respiração. Os medicamentos pesam", disse-me. Adormeceu.
X
Estou agora na sala da sua escola a comparar os esboços, as telas inacabadas. O seu quadro retém a observação serena, severa do modelo e a dilaceração das feições no traço fictício das cores. Ninguém verá isso.
XI
Os seus desenhos partilham de uma decantação que consagra a ingenuidade. Não há parecença na harmonia final. Há pequenas presenças embutidas numa desorientação prodigiosa, comum.
Toda a discordância parece emergir da finura das improvisações. A incompletude das figuras fecha-se no deslumbramento, desvendar de paradoxos confundidos na fantasia da infância. (Se entrelaçam.)
Progredindo o delírio, as significações deixam a sua forma primordial para se transfigurarem no esplêndido da representação.
(Diz-me o que é, recordando-me.)
XII
"Uma noite sonhei que me esfolavam a pele para um oboé.
Depois, estou lembrada, astutos cavalos fundiram-se com os homens. Copulavam numa desesperante imobilidade", ela recordou.
(Foder, foder. É só isso. Maravilhosamente chorava).
XIII
"Escolhe a tua morte comigo. Pensando intimamente, imperceptivelmente a nossa euforia", repeti-lhe.
"A morte é inexpiável. Esvanece o seu timbre nas nossas palavras", diz ela.
A morte, quando a pensamos. Chamejante só no sonho.
(Quando li Hamlet a palidez do pensamento despojou-me de todo o orgulho. Sou agora cruel, Deus sabe, prostrado, lavado em lágrimas, de joelhos, cruel.)
(in A Palidez do Pensamento)
CÉU E TERRA DE MANTEGNA
Eis a pedra de muletas, ou eis-me de muletas no pântano? (A pedra muda mutante para nenhures). Era terra de animais desviados, segurando no dorso a sua pantomina. Olho empoleirado, petrificava no meu braço visionário. Caía do nariz a cabeça-senso-comum, porque pensava sempre por todas as cabeças que a repetiam melífluas. A cabeça-cabeça ferrava nos ouvidos da cabeça-epígonos, peremptória, que deviam usar cabelos brilhantes de vaselinas, penteados-de-tagarelar-cãibra. Mas uma mão rojando-se até à pena da estupefacção funde chaves.
A chave abriu o portal faunesco e hediondo dos escaravelhos; vi a orquestra, o gramofone trespassava o coro prostrado. Cada vez mais o maravilhoso-ressequido suprime a solidão. Providencial, com o nariz de cera, a congeminar. A orquestra irreparável. Sopravam, raspavam o mar, pronunciavam o abismo, dedilhavam no céu e na vingança. (Ouviu-O o uivo, consternado!)
A segunda chave levou-me ao jardim da aurora roxa da paixão, jardim de orvalho ferido e carmesim. (O perfume do cravo no chão, também exalei o do roseiral.) Aí chegada, padeceu Baptista, Salomé dançava ardentíssima (dançava, dança).
A terceira chave deu para um lugar onde todo o espelho é pedestal e arabesco sulcado de delírio encadeando a infinidade. Nesse sítio da audácia imprevisível. Diana caçadora pelos cumes-lambris resplandecentes.
A quarta chave (dita de Lautréamont), do alçapão incessante para os tentáculos de uma praça. Estranhos seres enraizados nos pensamentos, gesticulando ao som das confidências as linguagens intermináveis. Alguns tentaculiformes transeuntes-buxos-rasteiros saciados. À porta da câmara funerária não perguntavam e não respondiam.
A quinta chave, a da estranheza dos horrores. Alastravam bestas vestidas de cocheiros, flagelavam homens entorpecidos, atrelados a carroças puxadas por mulheres descoradas; os corpos retalhados estão ganchados em colunas coríntias. A expirar uma mulher perfurada (por flechas de Mantegna) uivava golpeando os céus com "Fodido seja Deus!" que li em Sade. E em palanque giratório, como no álbum do Inferno da pestilência: foles aniquilavam o cadáver a arder, trovejava em redor; degolavam e violavam com aguçadas pedras de chumbo outros forçados. Ensurdeciam os gritos dos exasperados com olhos que as faúlhas apagavam.
Com a sexta chave penetrei nos bastidores em que as estações rodavam como num carrocel; sentimentos cinzentos clareavam com a gratidão florida e a súbita aparição da terra seca engrinalda, recorta qualquer aura de comoção (amontoando chuva).
Aberta pela sétima chave havia, na clausura da morada, quem suplicasse: "Toma o meu filho, resigno-me a ouvir-Lhe os martírios. Quero amar-Te. Como amar-Te?" Ajoelhou-se e rezou. Como se receasse e diz: "Perdoa o meu pecado".
A chave da oitava porta, o largo espaço para as alucinações. As lâminas sem distância e sem direcção como pilares frouxos. Catapulta de vislumbres, leques coloridos (espalhados ora sub-repticiamente ora abruptamente) de filigranas investindo como vegetação embrenhada em ruídos, lenta, de rugas de impávidos brancos, empunhando zumbidos forrados de cristalina e cintilante cor granulada. Estrias se espraiam, estendem-se nessa consumação, estremecem a desembocar em frémitos arremetidas. "Isso é ilógico!", ripostei.
A nona chave. Diziam incautos: O mar, o mar, o mar como harpa, como lampadário. O mar do lume que ascende da bruma aflorando. O mar na tempestade, ardendo, sonoro. O mar peregrino que encimava plumas de escuridão, o mar da orla entorpecido, nublado, a rebentar, destroçado, a consumar-se, cambaleante ainda.
Agora, a décima chave. Em cada baixio, Mantegna, mutilado, atracado, a ungir-Lhe o ânus: "Cobiça o cutelo e lisonjeia o carrasco"; "A flecha da dor é da oração no látego".
A undécima chave encaminha-O para o grasnido do corvo Hoffmann; calcinado, disse a custo que "os abetos cegavam; desabaram paredes; rasparam na porta; a baronesa esmaecia com o duende; tapeçarias negras e um braço hirto de cadáver." (Relanceava o tempo atroz, acre melancolia.)
Pela duodécima chave o negrume atinge as clareiras do pinhal. Cães farejavam. Mirrada, a luxúria, acariciava o pénis, a vagina esgaçada. A gula arrotava e peidava. Amontoavam-se restos nas caçarolas. Os cães escanzelados avidamente lambiam Gargântua.
Guardava a décima terceira chave a peste. A algidez fantasmal que raspava o ombro e gangrenava a língua, rapina o ar em que se embrenhou. Inesperada em redor da cabeça putrefacta, a devorá-la portentosa quando se apeava; a peste.
Com a décima quarta chave escarnecia o aguilhão da morte. (A morte como dádiva nociva, de um sopro de silêncios? A morte é mármore das lágrimas.) Com a décima quarta chave deteve o tempo. (O tempo continha a compaixão, tempo é habilidosa insensatez do repouso.)
"E é isso", sussurrou.
Enovelada a antemanhã emergia amaciada. O pôr do sol, será mordido pelo esbranquiçado do alvorecer. Mas pela décima quinta chave a fuligem da noite impressionava.
A chave do Estado "da abjuração", a décima sexta chave, a das caves nebulosas que ardem com mnemónica. Entronizado Lúcifer, transeunte do mundo. No séquito: um pálio lustroso, um relicário e candelabros de círios. (Ululante a retórica plúmbea.)
Trazida a décima sétima chave descubro o vício de Correggio, o alcance dos frisos do presbitério e as mãos de Cristo Morto.
A décima oitava chave indicava o arvoredo plácido e nostálgico de brancor. E cálida púbis. Aos rapazes a nudez secava o feno; molestavam com silvas um deles, davam-lhe amoras silvestres. Na graciosidade e gentileza, ele fazia da mão a copa do vinho. (Reaparecia o lívido entardecer, derramava inocência.)
Com a décima nona chave caía na página o furor dos confins do mundo. (A esvair-se, Prometeu suporta a idade do tempo.)
vigésima chave introduz no aposento dos licórnios imolados. (Sala sepulcral, nefanda.)
Encerra em si, a vigésima primeira chave, enxofre e mercúrio. Céu e Terra.
(in Sodoma Sacrílega e Poesia Vária)
© José Emílio-Nelson (reprodução autorizada pelo autor).