Júlio Conrado

Júlio Conrado

 

 

 

JÚLIO CONRADO

 

n. Olhão (Portugal) 26.11.1936

 

Romancista, poeta, dramaturgo, crítico literário. Vive no Concelho de Cascais desde os três anos. Foi funcionário da Câmara de Municipal de Cascais e bancário. Actualmente (2010) desempenha as funções de Director-Executivo da Fundação D. Luis I, de Cascais. Publicou o seu primeiro livro (contos) em 1963 e o primeiro ensaio literário na imprensa de âmbito nacional em 1965 (Diário de Lisboa).

 

Tem colaboração dispersa por Jornal de Notícias, Diário de Lisboa, O Século, A Capital e República. Colaborações nas revistas de cultura Latitudes, Paris, e Rua Larga, da Reitoria da Faculdade de Letras de Coimbra, A Página da Educação, Porto, revista O Escritor, da Associação Portuguesa de Escritores e na revista on line Triplov. Durante vários anos assegurou o balanço literário no Jornal O Século. Exerceu crítica literária na Vida Mundial, no Diário Popular, no Jornal de Letras e na revista Colóquio Letras.  Em 1964 fez parte da equipa fundadora do Jornal da Costa do Sol, jornal de que viria a ser director, a convite do seu amigo Jorge Miranda, por um curto período nos anos noventa (1994-1996). A página literária Texto e Diálogo, por si dirigida, surgiu neste jornal nos anos oitenta. Coordenou, com José Correia Tavares, o jornal Loreto 13, da Associação Portuguesa de Escritores. Coordenou ainda a revista de cultura e pensamento, Boca do Inferno, editada pela Câmara Municipal de Cascais. Está ligado às  principais organizações portuguesas de escritores – Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários de cujos corpos sociais faz ou fez parte. Integrou os júris dos principais prémios literários portugueses. Participou, com comunicações, em congressos e encontros de escritores realizados em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente: Havana, Neptun (Roménia), Nuoro (Sardenha), Lyon, Madrid, Valsini (Itália), Roma, Ripi (Itália) e Maputo. Fez parte das comissões executivas do II Congresso dos Escritores Portugueses (1982), I Congresso dos Escritores de Língua Portuguesa (Lisboa, 1989) e Colóquio da Associação Internacional dos Críticos Literários, (Lisboa, 1994); juntamente com Salvato Telles de Menezes, foi comissário para a literatura na Bienal da Utopia, (Cascais, 1997).

 

Foi integrado na representação portuguesa que se deslocou, em 2000, ao Salon du Livre, de Paris, por iniciativa da editora L’Inventaire, e no qual foi apresentada a versão francesa de Era a Revolução (C’était la Revolution), livro a que o jornal Le Monde se referiu elogiosamente. Como tradutor, Júlio Conrado verteu para português D. Carlos I, Rei de Portugal, do escritor francês Jean Pailler (2002) e traduziu do francês Isabel de Portugal, Princesa da Borgonha, de Daniel Lacerda (2009). Enquanto autor, alguns dos seus trabalhos estão traduzidos em alemão, francês, húngaro, inglês e grego.

A sua obra está referenciada em: Dicionário da Literatura, org. Jacinto do Prado Coelho, actualização de Ernesto Rodrigues, Pires Laranjeira e José Viale Moutinho; Biblos, ed. Verbo; Dicionário Cronológico dos Autores Portugueses, PEA / Instituto Português do Livro e da Leitura; O Grande Livro dos Portugueses, Círculo de Leitores; A Enciclopédia, Verbo / Público, Projecto Vercial (Internet). Figura com um pequeno ensaio na antologia organizada por Eugénio Lisboa, Estudos sobre Jorge de Sena  e a  sua obra é referida em Outros Sentidos da Literatura, de Duarte Faria,  A Paisagem Interior, de José Fernando Tavares, Verso e Prosa de Novecentos, de Ernesto Rodrigues, Ficção Portuguesa de Após-Abril, de Ramiro Teixeira, Breves & Longas no País das Maravilhas e Itinerário, de Annabela Rita, Arca de Gutenberg, de Serafim Ferreira, Indícios de Oiro, livro de ensaios de Eugénio Lisboa, e Ensaios de Escreviver, de Urbano Tavares Rodrigues. Eduardo Lourenço menciona Era a Revolução no livro de ensaios O Canto do Signo. A maioria das comunicações que apresentou em congressos da A.I.C.L. está publicada em versão francesa na revista desta organização internacional de críticos literários, sedeada em Paris. Escreveu prefácios para livros de José Jorge Letria, Salvato Telles de Menezes, Luís Souta, Ana Viana, José d’Encarnação, Jorge Marcel e  Paulo Alexandre. Colaborou com depoimentos no catálogo alusivo aos 50 anos de vida literária de Fernando Namora, nos volumes A David e A Sophia com que na morte dos poetas o Pen Clube Português os homenageou, no livro Leituras de José Marmelo e Silva, organizado por Ernesto Rodrigues, e com um balanço literário no catálogo do Instituto do Livro para a Bienal de S. Paulo de 1992. Em 2008 foi publicado o livro de carreira De Tempos a Tempos, trabalho que cobre quarenta e cinco anos de vida literária e constitui uma bem documentada panorâmica da sua obra, na qual são de salientar textos da autoria de alguns dos mais importantes críticos e ensaístas literários do seu tempo, tais como Fernando J. B. Martinho, Manuel Simões, Manuel Villaverde Cabral, Jorge Listopad, Annabela Rita, João Gaspar Simões, Ramiro Teixeira, Duarte Faria, João Rui de Sousa, Serafim Ferreira, Maria Estela Guedes, Maria Fernanda de Abreu, Pires Laranjeira, Ernesto Rodrigues, José Fernando Tavares, Cristina Robalo Cordeiro, António Augusto Menano, Liberto Cruz, Eugénio Lisboa, António Cândido Franco, Luísa Mellid-Franco, José do Carmo Francisco, Appio Sottomayor, José Viale Moutinho, Urbano Tavares Rodrigues e J. C. Vilhena Mesquita, entre outros.

 

 

OBRAS DE JÚLIO CONRADO:

 

A Prova Real, contos, ed. do A.,1963

Clarisse, Amargura, Dezembro, contos, ed. do A.,1969

O Deserto Habitado, romance, Prelo, 1974, 2ª ed. Âncora, 2004 

A Felicidade antes de Abril, romance, Parceria A. M. Pereira, 1976

Era a Revolução, romance, Parceria A. M. Pereira, 1977, 2ª ed. Editorial Notícias, 1997, C’Était la Revolution, Editions l’Inventaire, Paris 2000

Ou Vice-Versa, crónicas, Regra do Jogo, 1980

Dedicado a Eva, poemas, ed. do Autor, 1983; publicação de seis poemas deste livro na revista Poésie Première (nº 20), França, 2001

As Pessoas de Minha Casa, romance, Círculo de Leitores, 1985, 2ª ed. Vega,1986

Olhar a Escrita, ensaios, Vega, 1987

Gente do Metro, contos, Vega, 1989 (Prémio Cidade do Montijo); o conto Gente do Metro foi incluído em Mai Portugál Elbeszélók, antologia húngara de contos portugueses, Budapeste, 2000

Lisboa, as Lojas de um Tempo ao Outro (texto), Editorial Notícias, 1994

Lugares de Cascais na Literatura (org. e prefácio), Ed. Notícias 1995, 2ª ed. Hugin, 2001

Lisboa, As Lojas de um Tempo ao Outro (texto), II volume, Ed. Notícias 1997

Maldito entre as Mulheres, romance, Edições Colibri, 1999

O Som e a Dúvida, ensaio, Hugin, 1999

De Mãos no Fogo, romance, Ed. Notícias, 2001

Desaparecido no Salon du Livre, romance, Bertrand, 2001

Ao Sabor da Escrita, ensaios, Universitária Editora, 2001; inclui o ensaio A Poesia Portuguesa depois da Revolução de Abril, publicado na Alemanha em Portugal Heute, Vervuert, e Portugiesische Literatur, Suhurkamp, 1997; a versão inglesa deste mesmo ensaio foi incluída na revista Projected Letters, nº 4 (Internet), 2005, em tradução de Jean Pailler

Desde o Mar, Carcavelos Praia e outros poemas, Indícios de Oiro, 2005

Nos Enredos da Crítica, ensaios, Instituto Piaget, 2006

 Querido Traficante, romance, Campo da Comunicação, 2006

Estação Ardente, romance, Prémio Vergílio Ferreira/Gouveia 2006, Campo da Comunicação, 2007

De Tempos a Tempos, Antologia Pessoal, Antologia Crítica, Roma Editora, 2008

O Corno de Oiro, Teatro, Roma Editora, 2009

Barbershop, romance, Editorial Presença, 2010

 

 

 


Antologia breve

Romance

Estação Ardente

Carta nº 30

    ... e eu merecer enfim a dádiva de ti

Vergílio Ferreira, Cartas a Sandra

 

Sandra querida:

Imagino-te de chegada a um lugar de contornos imprecisos, provisório, repassado dessa neblina vaporosa dos sítios localizados algures entre o sonho e a materialidade do mundo. Empurras a porta sem bater, o olhar curioso progride, desenvolto, pelo que será o interior de uma casa, enquanto pé ante pé avanças em direcção ao refúgio onde debruçado sobre o teclado do seu computador um homem se empenha em dar corpo ao romance que o teu corpo habita. Só lhe vês a nuca em oscilação ininterrupta. Assistes, entre perplexa e divertida, ou talvez comovida, ao esbracejar violento que põe à prova a resistência da pobre máquina feita para ser objecto de digitalização serena e não agredida por rudes dedos de dactilógrafo reciclado. Despes o casaco comprido, que atiras para cima do sofá, ganhas um súbito ar levíssimo na tua blusa branca. Vens de penteado curto. Descalças-te e ficas ainda mais silenciosa e leve. Aproximas-te devagar da nuca obstinada em ignorar-te, tão denso/tenso é o seu compromisso com a vida virtual repartida entre teclado e monitor. Paras um pouco a observar o homem que te escreve, descreve e rescreve, reduzido a uma simples nuca endiabrada: é uma personagem sem rosto que te poupa, para já, ao espectáculo de declínio que os rostos em certas ocasiões oferecem a quem está muito tempo sem os ver. Propicia-te, em todo o caso, um outro espectáculo de primeiro grau: o ataque ao teclado: massacra-o para te redigir. Depois dás mais uns passos furtivos – não fora a obsessão do homem em concluir o trabalho e sentiria a proximidade da tua respiração – e estás já por detrás dele, tão perto que certamente te preparas para te fazeres anunciar. Tapas-lhe, com as mãos, os olhos. Ele fica muito quieto e expectante. Já sabe que tu és tu, reconheceu-te o tacto. Mas espera da tua voz o selo da confirmação. Qualquer palavra de boa memória será bem-vinda. Se pudesses tocar-lhe a boca, nela acharias um rasgado sorriso de felicidade.

Identificas-te – uma expressão sobrevivente sobe-te à fala com a malícia doce de outrora:

Bicho maluco

 

Beijo grande                                                                        Alcino Fortes


Poesia

BATALHA NO TAPETE

Operam os artífices na faca elementar

agem as figuras do ciclo do tecido

brandem as figuras do ciclo a faca elementar

armas de fio grosso armam os heróis do ciclo do tecido.

Textil saudade, os afazeres do ciclo.

No tecido abundam os elementos da faca

nas mãos nodosas dos construtores da pátria

em fio de lã da cor das batalhas.

É uma guerra imóvel a do ciclo do fio.

Já não há mãos calosas erguendo o muro pátrio

apenas a cena textil dos elementos da faca

diz de um estilo esquecido de talhar países.

2005


EDITORIAL NOTÍCIAS

                     Também tu

velha galdéria romântica

vais fechar os olhos

entre um filme e outro

esquecida (?) de que nos juntou um dia

aquele flirt semi-confidencial

de que não saímos todavia incólumes.

Soube a pouco o namoro.

Guardo dele os momentos irrepetíveis

de paixão

vividos em cheio

na sua equívoca brevidade.

Descansa em paz.

Um dia se dirá, talvez, que tivemos um caso.

Não é o caso. Foi apenas um flirt.

Memorável, em todo o caso.

(No ano da morte da Editorial Notícias, 2005)


NÃO SAIAM DA ASA

Mensagem para o interior:

Acordem a imaginação, já!

Preciso urgentemente dela.

Se, ao despertar, disser que um pássaro é um pássaro

todos correremos perigo.

Assegurem-lhe que esvoaça por perto um lírio.

Esbofeteiem-na, caso insista em que os lírios

não têm asas mas pétalas.

 

Devolvam-na ao inverosímil. Depressa.

Não saiam da asa.

2005


SOPHIAMAR

Liga-nos o fascínio pelo vasto oceano

o signo apolíneo

a harmonia do sul

inscrita a cal na laje do poema.

Une-me a ti a magia

das ondas em crista

dando notícia 

dos perfumes marinhos,

escuma, sal, rumores,

mergulhos e outros apelos

caóticos do mar.

Os veleiros

portadores dos mitos da viagem

rumam à ilha transparente

onde agora estás.

Baleias brancas saúdam

as velas enfunadas

sacudindo jubilosas caudas

fora de escala.

A luz,

ao desenho de veios rutilantes

no chão dos navegadores,

lembra-se de ti,

cúmplice das horas claras.

 Ler-te é descobrir no coração das águas

o lar supremo dos teus versos.

19.04.05


EGOÍSTA

Meteu num chinelo

o Mágico ilustre

os deuses pagãos.

Falou por metáforas

levadas à letra

por gentios sem luzes.

(Como saberiam estes

ler metaforicamente os sinais?)

E então tudo ficou assim: literal.

Mas para quê ir para o Inferno, em nome do Bem,

se no céu, tão grande, todos cabemos?

O Mágico ilustre, suspeita-se,

queria o céu só para uns quantos yes men.

Egoísta. 

2006


Ensaio

EM CARCAVELOS, COM FIAMA *

A obra de Fiama Hasse Pais Brandão, poeta portuguesa  nascida em 1938, é considerada uma das mais significativas da geração revelada nos anos sessenta. A escritora vive neste momento o drama de uma doença prolongada**, circunstância que trouxe para primeiro plano trabalhos de datação mais recente nos quais há aspectos biográficos de que ressalta uma íntima relação com o lugar da infância e da adolescência – uma pequena quinta de Carcavelos, em cujo portão de ferro se lê ainda o nome: Vivenda Azul.

A sua obra mais próxima do que geralmente se entende por  autobiografia é no entanto o romance intitulado Sob o Olhar de Medeia, publicado em 1998. Aí, o mundo que assiste ao crescimento de Marta, a protagonista, é mimado de modo tão ostensivo dos poemas em que o “sujeito” mais claramente se assume como produtor de sentido que somos tentados, numa primeira aproximação ao romance, a encará-lo como um daqueles textos que mais parecem autobiografia escondida com o rabo de fora - aquilo a que Helder Macedo chama “romance vindimado”. Uma observação mais atenta propiciará, em todo o caso,  inflexões na viagem da leitura que permitirão pelo menos duvidar que todo o romance seja confessional ou reprodução fiel da experiência vivida. Desde logo, o título levanta suspeitas. Medeia é uma das duas  bruxas “boas” da Antiguidade Helénica – a outra, como se sabe, é Circe. O apelo ao concurso da tutela de Medeia implica  o uso de poderes de transfiguração cujo alcance excede a capacidade de previsão do receptor desprevenido do texto.

Em princípio, Marta é Fiama, mas esta é também a Medeia detentora do dom de manipular o passado para o reconstruir reinventando-o, limpando-o de elementos disfóricos e introduzindo na descrição dele  artifícios de efabulação de base onírica ou comprazendo-se na  viciação imaginativa dos dados da memória.

   A referencialidade do lugar perdura, todavia, na narrativa, com a exactidão de um retrato sem legenda. A escassez de informantes desencoraja o estabelecimento de coordenadas identitárias capazes de definirem administrativa e socialmente o sítio – só em dois dos últimos poemas de Fiama, com a menção de terem sido escritos em Carcavelos, se vislumbra a contextualização toponímica da quinta. Sítio que é  parceiro num processo de aquisição de conhecimento que decorre à margem da faculdade de nomear e de socializar, pois prevalece o ensinamento do mestre-escola de Marta, mentor da aprendizagem individual do mundo pela leitura dos mitos da Antiguidade. A quinta é a quinta, a Vila é a Vila, a praia é a praia, entidades inomináveis, “povoadas” por  Ulisses e pelos Argonautas em demanda do Velo de Ouro. A ausência da crispação que a hegemonia do nome cristaliza à roda de um certo modo de certificar o espaço cénico do paraíso, recorda a lição dos primitivos, radicalmente ligados à terra, alheios ainda  a  leis de organização civilizacional que virão um dia  transformar em mito esse convívio directo com os elementos primordiais – a luz, a terra, o ar, a água, o fogo – aqui recuperados pelos poderes mágicos de uma feiticeira culta para dourar a arrumação literária de um singular percurso de descoberta.

Poderá então falar-se, lendo o romance de Fiama, de um lugar sem nome, paridisíaco, de flora variada, exuberante, onde elementares saberes de cultivo e artes ancestrais de pastoreio combinam com a proximidade do mar e com as inclemências ou as amenidades climatéricas na constituição do palco sobre o qual as vidas de Marta e de Fiama são representadas em harmonia plena com a Natureza. Neste lugar não há luta de classes. A relação servo-amo perde sentido ante a inexistência de conflito e de aspirações reivindicativas por parte de quem se submete, o Caseiro, a quem submete, o Senhor da Casa, ou a Voz, como aparece sibilinamente caracterizado no processo revelador das tensões entre pai e filha.

Assim, da contiguidade diferenças sociais/Natureza viva ressalta a naturalização dessas mesmas diferenças que do futuro o olhar de Medeia torna ainda mais assépticas e destituídas de perigo. Os sinais de distúrbio e de fractura vêm, então, de Lázaro, o filho do Caseiro, ciumento dos desvelos prodigalizados pelo pai à Menina; dos rapazes pobres incitados por ele, Lázaro, a assaltarem a quinta para o roubo da fruta; dos lenhadores furtivos causadores do acidente de Jesus devido a um abate clandestino de árvores; da própria Marta, ao ser capaz de detectar na austeridade paterna cambiantes despóticas a que instintivamente se opõe e que o omnipresente olhar de Medeia não desautoriza, evita ou desdramatiza. Mas estes são focos isolados de revolta facilmente neutralizáveis pelas defesas do sistema, à época vigente, baseado no direito à propriedade, na desigualdade entre ricos e pobres e na supremacia do homem sobre a mulher – esta última consubstanciada na submissão da mãe de Marta às “orientações” do Senhor da Casa, com grande indignação da filha, que não encontra na que lhe deu o ser a aliada desejada contra o “ditador”.

Sabemos que Marta abandonará um dia este seu paraíso vigiado, este mundo paradoxal de clausura e conforto típico de uma alta burguesia que prosperou à sombra da ditadura, para dilatar os horizontes de conhecimento entregando-se a causas edificantes, merecedoras de intervenção cívica activa. Aquela que Fiama define como uma “geração quase perdida” sacode-se do torpor para, independentemente da origem de classe, se bater contra a privação da liberdade de expressão do pensamento num quadro de repúdio pela guerra colonial, esse fenómeno que agitou a consciência da juventude portuguesa nos anos sessenta. O lance final de Sob o Olhar de Medeia oferece-nos a imagem de uma Marta integrada numa manifestação estudantil que sobe a Avenida da Liberdade, em Lisboa, ao encontro da polícia de choque que a tiro tenta dispersar os contestatários.

Sabemos que Fiama, percorridos os caminhos da participação cívica, do amor, da maternidade, da dor, da realização literária por domínios tão diversificados como o teatro, o ensaio , a tradução, a poesia e o romance, regressa à quinta para, num último sobressalto suscitado pelo apelo das origens, acertar contas com os seus fantasmas mas também glorificar o lugar da aprendizagem da vida, sempre surpreendente na sua capacidade sasonal de renovação, sempre caixa de ressonância dos ruídos trazidos pelos ventos do norte ou pelas brisas oceânicas que nela despertam as vibrações do mundo reminiscente lavado pela ternura do olhar novo e sábio com que o revisita.

Os últimos livros de poemas de Fiama – As Fábulas, Espístolas e Memorandos e Cenas Vivas – são um diálogo permanente com o lugar e os seus espíritos, um perscrutar minucioso de pistas que o cheiro da terra  e a configuração dos espaços mantêm intactas para que possa rescrever-se no soberano respeito por um imaginário criado a partir desse chão o último capítulo de um grande amor por ele. Em dois poemas lê-se a palavra Carcavelos. Num endereço postal lemos uma marca precisa: Vivenda Azul. A quinta ainda lá está, não se sabe por quanto tempo mais assim, nas mãos de outros proprietários. Mas o que dela resta como testemunha de uma presença humana singular já só existe nos livros que as descrevem a ambas em versos luminosos e apaixonados.

*Comunicação apresentada na Convenção

 da Associação Internacional dos Críticos

 Literários de Ripi, Itália

 25 de Novembro de 2002

** Fiama Hasse Pais Brandão 1938-2007               


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