Miguel Miranda

Miguel Miranda

Miguel Miranda nasceu no Porto, em 1956. Licenciou-se em medicina em 1979, especializando-se em Medicina Familiar. É membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Associação de Escritores de Gaia, da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto e do Pen Clube Português. Venceu o Grande prémio do Conto 1996 APE com o livro Contos à Moda do Porto e o Prémio Caminho de Literatura Policial 1997 com o livro: O Estranho Caso do Cadáver Sorridente. Em 2002 recebeu a medalha de ouro de mérito cultural e científico do município de V. N. Gaia. Está representado no Dicionário de Personalidades Portuenses de Século XX - publicado pela Porto Capital da Cultura 2001. Participou em várias colectâneas de contos: Dez Contos com Livro Dentro (Campo das Letras Editores, 2004); Quarenta (Publicações D. Quixote, 2005); Os Melhores Amigos (Texto Editores, 2006). Está traduzido em Itália com a obra Due Avvoltoi Crocifissi nel Cielo (Nonsoloparole Edizioni, 2006).

Obras publicadas: O Complexo de Sotavento (Athena Editora, romance, 1992); Contos à Moda do Porto (Edições Afrontamento, contos, 1996); Caçadores de Sonhos (Edições Bial, 1996); Bailado de Sombras (Edições Afrontamento, romance, 1997); O Estranho Caso do Cadáver Sorridente (Editorial Caminho, 1998); Livrai-nos do Mal (Campo das Letras, romance, 1999); A Mulher que Usava o Gato Enrolado ao Pescoço (contos, Edições Afrontamento, 2000); A Maldição do Louva-a-Deus (romance, Campo das Letras, 2001; prémio de ficção Fialho de Almeida 2001 da SOPEAM); Dois Urubus Pregados no Céu (romance policial, Campo das Letras, 2002); A Princesa Voadora (literatura infantil, Campo das Letras, 2003); Como se Fosse o Último (contos, Campo das Letras, 2004); Caçadores de Sonhos (literatura infanto-juvenil, Campo das Letras Editores, 2004) O Silêncio das Carpideiras (romance, Publicações D. Quixote, 2005)


COMENTÁRIOS

«...A história que cada conto conta raramente é a que está à vista, é antes a "outra" história, a história que, sob a história narrada, pulsa como um fio de água subterrâneo correndo entre as circunstâncias e os episódios da narração e desaguando lentamente no coração, mais do que na razão, da leitura.» Manuel António Pina, texto de apresentação de Contos à Moda do Porto, Ateneu Comercial do Porto, 27/02/1996.

«ALTAMENTE – ... uma expressão enxuta, exacta, por vezes envolvente e alada.» Fernando Venâncio, sobre Contos à Moda do Porto, JL, 10/04/1996.

«O PRAZER DA DESCOBERTA – Congeminar ou idealizar, escrever e convencer, são nesta obra atributos indesmentíveis, independentemente do grau de fantasia efabuladora, que é verdadeiramente surpreendente.» Ramiro Teixeira, sobre Contos à Moda do Porto, Primeiro de Janeiro, 5/05/1996 e Matinha, 5/05/1996.

«Pela escrita de Miguel Miranda se revela que o autor está apaixonado pelas pessoas.» José Manuel Mendes, texto de apresentação de Bailado de Sombras, Ateneu Comercial do Porto, 28/11/97.

«GARBOSO – Surpresa já não era. A grande qualidade narrativa era previsível. A malícia da linguagem fazia parte da promessa. O desenlace é altamente inesperado.» Fernando Venâncio, sobre O Estranho caso do Cadáver Sorridente, JL, 8/04/1998.

«A verdadeira dimensão do romance está muito para além do traje policial que o reveste.» Mário Cláudio, texto de apresentação de O Estranho Caso do Cadáver Sorridente, Convento dos Loios, Santa Maria da Feira, 17/04/1998.

«Em O Estranho Caso do Cadáver Sorridente, Prémio Caminho de Literatura Policial, Miguel Miranda mistura ingleses gananciosos e ex-operacionais do período revolucionário, criando uma mistura explosiva.» Francisco Mangas, DN, 12/051998.


CONTOS À MODA DO PORTO

TRIPAS COM LIMÃO


Horácio acertou os auscultadores do "walkman", à medida das orelhas comidas pelos brincos. Ficava sempre ganzado da mona, quando tinha alta do Magalhães Lemos. Batera lá com os ossos de noite, estava numa pior, suado e a tremer. Não havia cheta para o pó, já não metia há três dias. O Doutor já o topava à légua, era o mesmo das outras vezes. Não adiantou o choradinho para ficar no estaleiro uns dias, a ressacar, e começar outra vez com um quarto de grama. Jurava sempre que era para tratar, deixar mesmo, a sério. Mas eles já manjavam o esquema. Deixas, o tanas. Era só para baixar, não dava para aguentar a pagar três gramas por dia, nem a gamar.

Da primeira, tinha sido fixe. Uma curte. Quinze dias de cama, mesa, roupa lavada, uma poupança baril. Saíra só a chutar um oitavo, às escondidas, e os comprimidos era o tomas, iam pela pia. Fizera o choradinho à Assistente Social, tudo conversa altamente, paleio do rigoroso. Esticara o filme quinze dias, e saíra limpo, desintoxicado, pronto para outro.

Para celebrar, tinha comprado no Marquês duas doses, com o dinheiro da poupa. Habilitou-se com um limão e colher nova, gamados de fresco, e foi mesmo nos sanitários do Café Pereira que injectou um oitavo. Já tinha saudades daquela euforia de paz a subir-lhe pelo braço à cabeça, toda a calma do mundo a limpar-lhe a ideia.

Mas no Magalhães já era difícil. À segunda, levou só oito dias. À terceira, dois. A partir da quarta, já não pegava. Entrava à noite, saía de manhã, com duas de Valium no buxo, só para atrasar.

Saía dependurado nos drunfos, para cortar. Comprava na candonga Mandrax, Buprex, Roipnois ou Dininteis; dava para aguentar, enquanto não fanava uns rádios. Na Rua do Almada, era toma lá, dá cá. Cada rádio, uma nota de cinco mil. Os melhores de abrir eram os Unos, era só vergar as portas por cima. Fazer uma ligação directa e levar um carro por junto, era canja, mas só para passear, numa naice; era material quente, fácil de pistar pela ramona, só estando ligado a uma organização em grande.

Vivia com o cagaço da overdose, sempre a cheirar desconfiado o pó. Lembrava-se do Reis, que se tinha apagado nos seus braços, sacudido em convulsões, todo urinado, a gritar-lhe de boca torcida de espuma: "Cuidado com a estricnina..." E pumbas, fora-se mesmo.

Hoje em dia era preciso um cuidado do caraças a comprar o material. Qualquer artolas andava armado em dealer, mas de confiança, havia poucos. Andava aí gente a meter cada trampa...

Horácio acertou o passo a puxar os jeans e meteu as botas no passo elástico. Tremeu os ombros do blusão de couro, a ganhar vontade de ir fazer algum. Precisava de graveto, fatal como o destino. Duas de cuspe nas mãos deu para alisar o cabelo à falta de gel. O pior eram as tremuras e as dores.

Bateu a zona, de Sá da Bandeira para Sampaio Bruno, os olhos encovados a medir o pessoal que andava às compras. Era preciso cheirar a sorte, para não falhar. Ultimamente andava com um galo desgraçado. Um Corsa enlatado que lhe dera cabo das unhas a abrir, e uma mijoca de um CRX, com a telefonia tão colada que até dera um jeito ao pescoço no saque. E a zoeira do alarme a gritar, que lhe andara três dias a cantar nos ouvidos? Quem tinha aquelas sirenes doidas nos carros, devia ser mas é preso! E não é que os dois rádio-leitores tinham código? Isso avisa-se, senhores. Há uns auto-colantes para pôr no vidro, para o pessoal não ir em branco e não andar a perder tempo. Isto é também muita falta de consideração, ao fim e ao cabo.

Quase que lhe tinha dado o badagaio, fiado nas duas de cinco milenas, quando o Resende lhe fez o manguito: – "Eh pá, andas a dormir na forma, sacaste dois com código, nem p'ra cagar dão..."

Precisava urgente de massa, para comprar pó. Já não aguentava das dores. E fiados não havia, era el contado, à vista. Filou uma matrona na máquina Multibanco, a escavar na saca. Meteu-se a dois passos, a curtir a cassete de Van Morrison, e decorou-lhe o código. Deixou-a partir, a contar as notas, e colou nos seus calcanhares, em direcção à Brasileira. Quando viu o dinheiro desaparecer na carteira pendurada ao ombro da madame, encheu o peito de ar, e preparou o bote. Horácio era mestre do esticão, bateu os tacões na calçada, spidado de todo, e arrancou a mala, sumindo pela rua do Bonjardim acima, perdeu-se na Avenida dos Aliados, antes da mulher se poder virar a perceber o que acontecera.

Escondido nos urinois de um café da esquina da Avenida, recuperou o bafo esfalfado na corrida, enquanto esvaziava a carteira de napa barata. Do dinheiro, nem cheiro, só uns trocos em metal. O diabo da velha devia ter ficado com a massa no decote ou debaixo da peruca. Guardou os cartões de crédito, e desfez-se da maleta, atirando-a para dentro do autoclismo.

Deixou passar um bocado, para não ter maus encontros. Quando viu que o ambiente estava numa de calma, galgou o passeio a tremer até à máquina do dinheiro. Enfiou o cartão plastificado na ranhura, meteu o código. Nada. Tente outra vez, dizia a sacana da máquina. Horácio mandou-lhe outra vez o cartão, e enfiou-lhe os números, morto por colher um monte de notas, e cavar à procura do pó. E não é que o raio da máquina lhe comeu o cartão? "Para sua segurança, o cartão fica retido". Já era gozo a mais. Desatou aos murros e pontapés à máquina, meio doido de raiva. Isto não se faz a um desgraçado, à rasca, a morrer cheio de dores, desesperado para comprar uma dose de heroína.

Desandou, quando começou a juntar gente. Não adiantava perder a cabeça, máquina é assim mesmo. Era a primeira vez que faralhava um código, e logo numa altura destas!

O seu pensamento não se conseguia afastar da droga. Era assim como uma ideia fixa a puxá-lo, uma coisa que lhe arrastava a mente, com o corpo a doer, a pedir um chuto daquele pó maravilhoso. Já injectava há três anos, mais coisa menos coisa. Deixara de snifar, porque queimava muito mais heroína por dia, não dava para aguentar. Picada ficava muito mais barato, tripava na mesma, por menos.

Lembrava-se da primeira vez que enfiara uma agulha, estava tão nervoso que nem acertara à primeira na veia. O que vale é que tinha sido em grupo, e o Paulo e o Mário ajudaram. Deixara-se de grúpios, depois de apanhar a hepatite. Agora tinha cuidado, cada um com a sua agulha, nada de misturas. O Paulo já embarcara, o Xico, também; o Fernando; o Luís; o Carlos; o Manecas... Já tinha mais amigos no jardim das tabuletas que em Custoias, a coisa estava a ficar tremida.

O resto do pessoal ainda firme, andava todo spidado com coca ou com ácido, e a última curtição era o crack, perigoso nas horas, mas dava tripes do baril. Mas desse material era só para meter nos intervais, que ele continuava fiel ao cavalo.

Horácio sabia que a sua vida era um poço sem fundo, sempre a cair. Mas era tão bom apanhar uma pedrada das antigas, flutuar numa curte fantástica, tudo de bom, na maior, uma naice, uma desbunda total, nada mais importava...

Meteu uma cassete de Lou Reed, para abanar o capacete e sacudir as caímbras, e arrastou os pés pelo passeio dos Congregados. Mordeu a música de acordeão antes de ver o cego, nas escadas da igreja.

O Hilário dava concerto todos os dias nas escadas da igreja dos Congregados, sorriso vazio de cego riscado na boca, os óculos negros fumados a apontar para o céu. Abraçado à velha concertina vermelha, espremia o fole ondulado, em abraços lentos, e coava uma música lamechenta e pegajosa, que se agarrava nas orelhas e no tutano das pessoas que cruzavam a esquina. A bóina esticada no chão recebia as esmolas, que pingavam com fartura todo o dia. A cada plim, o Hilário regougava: "Deus lhe conceda a vistinha..."

Horácio olhou enfeitiçado para uma nota de dez mil que espontava da bóina. "Esmola de lorde", pensou. Tinha que ser. Era chato, dar o golpe no ceguinho, mas há horas para tudo, e essa era uma daquelas emergências, em que valia tudo. Mas tudo, mesmo. Olhou em volta com ar distraído, a curtir a música do Walkman. Apanhou uma carica de cerveja do chão, e dançou no passeio até junto da bóina. Era preciso cuidado na transacção, que o dia estava engalinhado. Com o ar mais inocente deste mundo, fingiu pescar umas moedas do bolso do blusão, e deixou cair a carica na bóina, a tilintar nos níqueis. Na viagem limpou a nota, com suavidade de artista.

– Deus lhe conceda a vistinha...

Horácio começou a abrir, passeio acima. Não contava era com o Faísca, que tinha topado a marosca toda. O pondengo rafeiro do cego saiu-lhe ao caminho, dentuça assanhada, com rosnar de poucos amigos, de olhos fixos nas canelas magras do Horácio. Horácio era um cortão, tinha um azar aos cães, dava-lhe logo o fanico. Mas o desespero deu-lhe umas ganas nas tripas e levantou a mão para o bicho, enxotando-o entre dentes: Kssss, Ksssss. Mas só conseguiu enfurecer o animal. O Faísca encrespou o pelo, e saltou-lhe às pernas.

Horácio perdeu as peneiras e zarpou de gás para o meio da rua, com as canetas a arder. Não viu nem ouviu o autocarro que vinha largado dos Clérigos, um daqueles "laranjas" que andam chispados pela cidade. O motorista bem buzinou, e tentou estacar o mastodonte com os travões a gritar. Horácio levou uma murcelada em cheio, foi projectado à distância, todo partido, nem percebeu o que lhe tinha acontecido.

Esteve três meses em coma no Stº António. Recuperou aos poucos, mas as pernas nunca mais andaram. Três vértebras esmagadas, uma cadeira de rodas para toda a vida. Mesmo assim, tivera uma sorte terrível, dera um pontapé na morte. E curara de vez o vício da heroína.

Enquanto estivera em coma, à medida que recuperava lentamente o raciocínio, tivera tempo para meditar profundamente na sua vida. Descobrira como gostava de viver, agarrara-se como uma lapa à vida, estava convencido que tinha sido por isso que não embarcara.

Quando teve alta, a primeira coisa, foi pagar a dívida. Desceu a Rua dos Clérigos a medo, a travar as rodas da cadeira. Esperou que o atravessassem na Praça da Liberdade, e rolou em direcção à Igreja dos Congregados. De longe, já ouvia a música chorada do acordeão do cego, a crescer. Parou a cadeira de rodas em frente da bóina do Hilário, e depositou uma nota de dez mil.

– Deus lhe conceda a vistinha...

Horácio atirou um biscoito ao Faísca, desconfiado, à espreita. Era justo, a eles devia ter-se recuperado.

Rolou em frente, subindo Sá da Bandeira. Enterrara o passado, na bóina do cego. Para a frente, queria construir uma vida limpa, digna, em que tivesse gosto nas pequenas coisas. Respirou o ar fresco da manhã, e sumiu-se, cheio de vontade de viver.

Hilário arrumou o acordeão no ombro, pescou a bengala branca, e assobiou ao cão. Apanhou a bóina, levantou os óculos, e assobiou devagarinho, de espanto. Mirou a nota dos dois lados, levantou-a contra o sol, para ver as marcas. Era boa. Ergueu-se apressado e marchou, de acordeão a tiracolo, com o cão a rabear de contente. Na esquina, encontrou um homem de blusão de couro, e fez-lhe um aceno. Num instante, comprou duas doses de heroína, que escondeu no casaco coçado, e correu para o café mais próximo.


BAILADO DE SOMBRAS

Não tenho memória de como tudo começou. Os olhos toldaram-se como uma tarde que se escoa, num bailado de sombras. Nunca cheguei a ficar desesperada, apenas apreensiva. E os dias esfumaram-se como um dente-de-leão batido pelo vento, enquanto eu deixava gradualmente de ver. Farrapos escuros, como longos reposteiros de veludo negro agitavam-se dentro dos meus olhos. Como se uma música inaudível os comandasse. Agora, passado tanto tempo, as vagas de recordações desfazem-se com violência dentro de mim, recuando depois em longas vazantes que tudo apagam. O coração revolta-se quando insisto em reviver um passado, que não é mais do que isso: apenas passado. No entanto, vivo e revivo tudo de novo, até ficar extenuada e sentir as forças a fugir-me...


2

Hoje é o meu dia de sorte, pensei, enquanto teclava. Já não tinha insónias mansas há muito, julgava que as tinha perdido irremediavelmente. As outras, com ânsias, o coração a tremer-me a boca, o pescoço tenso na almofada, noites suadas em claro a latejar o bombo da artéria na mossa da testa, as outras insónias eram amargas, contínuas, sentia-me envelhecer no silêncio escuro da noite, a ausência do teu corpo colado ao meu, Teolinda, é um vazio pesado, opaco, que transporto como uma canga enorme, uma submissão bovina ao dever profissional arrasta-me nesta missão; mas o que eu queria era sentir a curva doce da tua anca a subir e descer no ritmo da tua respiração pausada, percorrer com as polpas dos dedos as fragas sinuosas do teu ventre enquanto te invejo a profundeza do sono, quem me dera que estivesses aqui, Teolinda, para nos perdermos de noite, abraçados às estrelas. Aqui o céu parece mais baixo, a brisa quente queima-me os lábios num beijo longo, como os teus, mas diferente, tropical, um sabor a mistério de frutas com suor de mulatas, um coqueteil almiscarado, suave, que deixa um rasto seco na língua e me faz sonhar com os teus beijos longos, a tua boca sôfrega, apaixonada, onde me afogo em prazer até perder a respiração, onde descubro a cada momento que sou louco por ti e nunca to disse, pelo menos nunca te gritei com toda a força das entranhas como me apetece agora fazer, talvez por estares longe, talvez por isso estejas mais perto, não sei, às vezes tudo é confuso, tolda-se-me a vista e o discernimento, não sei se estou a pensar se a gritar, queria que estivesses aqui, a meu lado, que me afagasses com os teus olhos negros, me abraçasses, nos perdêssemos um no outro em marés vivas de orgasmos roucos, e ficássemos a rir toda a noite, os olhos a brilhar como pirilampos encantados, até o sono nos derrotar às primeiras horas da madrugada, aquele sono profundo com que o amor nos vence e nos convence que vale a pena viver. Escrever nesta porcaria dum computador portátil dá-me cabo dos olhos, esta pantalha cinzenta a tremer letras não me dá saúde nenhuma à vista, ainda vou acabar como a mulher do Jorge, a Mónica. Não ligues, disparates, é claro que a doença dela não tem nada a ver com isto, embora também não se conheça muito bem a causa da sua retinose pigmentar, que é uma retinopatia proliferativa de etiologia idiopática..., ora, desculpa, lá estou eu a maçar-te com pormenores técnicos, mas também é bom que entendas um pouco da minha vida, tudo o que me preocupa, me absorve de tal modo que por vezes me rouba o pensamento quando estou contigo sem que isso signifique menos amor, bem sei que é difícil compreenderes, nunca sentiste, quatro, cinco, dez problemas, gente aflita, certezas que já não sei, dúvidas a morderem-me na nuca, é bom que entendas que a minha cabeça por vezes está prestes a rebentar, com este fogo cruzado de vidas em que me meto por força da profissão. Felizmente já tenho muitas horas de voo, mais de vinte anos de clínica fazem-me planar sobre as emoções, embotar sentidos, esconder afectos, abortar ódios, às vezes quando estou cansado e baixo um pouco a guarda apetece-me gritar com o vigésimo terceiro doente, o Valdemar, por exemplo, com a mania das doenças, ouça lá, Valdemar, vá encher a molécula à sua avó, assaltam-me pensamentos mesquinhos, desejo ardentemente que o Valdemar tenha o cancro que merece e com que anda sempre a cismar, nos intestinos, na bexiga, na garganta, nos pulmões, só pode ser cansaço, Teolinda, não desejo mal ao Valdemar, estou a ver os olhos dele cozidos em pavor, cancerfobia, uma neurose fóbica, é como se chama, sabes, (lá estou eu...), não importa, só pode ser cansaço, espero eu, tenho medo que com o andar dos anos me vá tornando num monstro empedernido, mas acho que não, sinto que ainda não perdi a capacidade de ajudar, de comunicar, todos os dias começo de novo, chegam pessoas diferentes com quem ainda me consigo fundir, não há razão para ter medo, só pode ser cansaço... Ora, estava eu a escrever para te contar como tinha sido a viagem, e já me estou a perder, desculpa, já sabes como eu sou quando começo a andar em círculos, a viagem não foi má, catorze horas de avião passam-se bem a bordo de um jumbo, filme atrás de filme, comida de plástico e sumos pelo meio, dormita-se enrolado em mantas de feltro, os pés aconchegados em carapins de tafetá, o pior são as escalas, tira mala, leva mala, espera com mala, embarca com mala novamente. Apanhamos o charter em Madrid, rumamos Santiago de Compostela, depois Cancun, em cada reembarque as hospedeiras fazem uma espécie de dança nupcial macabra para nos ensinar a pôr o colete salva-vidas se o avião cair, com um sorriso plástico estudado de quem sabe muito bem que quando o pássaro metálico quinar ficamos todos feitos em massa de santola, depois descobri pelo brilho de gozo da tripulação que a função dos coletes é mais do ramo higiénico, eles transformam-se em sacos gigantes para nos apanhar os cacos e não conspurcarmos o ambiente com o fedor pútrido da nossa morte; e eles não sabem que eu sei o segredo deles, aqueles falsos carrinhos de metal em que trazem os tabuleiros de comida mais não são do que pequenas espaçonaves de modelo à Flash Gordon, com que o pessoal de bordo nos abandonaria ao tombo, troando pelos ares, em caso de queda eminente.

De qualquer modo, Teolinda, a viagem foi agradável, limpamos o cansaço em toalhetes mornos à vista de Havana, que sobrevoamos lentamente, cachos de luz rara espalhavam a capital como um manto de lantejoulas num quarto escuro. Vou ter que abreviar, se não for mais poupado, acaba-me a bateria do computador, e aqui a corrente é de cento e dez volts, não vou poder recarregar. Ao chegarmos a Varadero, um problema qualquer com a Segurança retardou a nossa saída do avião, a escala a mais em Cancun não estava no plano de voo previamente comunicado às autoridades cubanas, e nem queiras saber a confusão que deu. Eles são muito desconfiados nestas questões de entradas e saídas, obsessivamente desconfiados, pelo menos foi a impressão com que ficamos. O Jorge e a Mónica fizeram bem a viagem, a Mónica, como sabes, perdeu quase tudo, ele já só tem visão no raio de dois metros, e já muito esfarrapada, mas nós vamos fazendo o relato. Trouxe duas malas com equipamento, até uma pequena bala de oxigénio e um ambu eu trouxe, parece que cá em Cuba há muitas dificuldades sobretudo com medicamentos, embora estejam muito avançados em muitas técnicas médicas, nomeadamente na área da Oftalmologia, que é o que nos trás cá, como estás ao corrente. Agora esta de vir de médico privativo do Jorge, é uma situação que me embaraça um pouco, sinto-me um bocado como ama seca, não sei bem que atitude tomar, se faço de conta que não se passa nada e armo um ar de férias e me descontraio um pouco, afinal, o mais certo é não haver qualquer complicação, era muito azar ele ter cá uma crise epiléptica, está medicado, já não tem crises há dois anos, desde que tome a Hidantina e não se enfrasque não há problema, mas há sempre um mas... mas, como dizia, não sei se ele espera que tenha um ar profissional sempre armado, sabes como ele é, como está a pagar uma pipa de massa, com a mentalidade quadrada que ele tem, se calhar pensa que vou andar atrás dele de estetoscópio dentro da piscina, vai estar bem enganado, se tudo correr bem, e o hotel é muito confortável, toma nota, Hotel Sol Palmeras, Varadero, se tudo correr como espero, vou passar umas férias descansado, vou chegar mais fácil de aturar, vais ver, eu bem sei que tenho uma telha muito grande, mas só consigo confessar por escrito, vais ver que vou chegar muito mais meiguinho, vou comer-te essas orelhas quando te tirar os pés do chão com um abraço muito apertado, que até vais ver o céu a apagar-se de mansinho... Olha, vou acabar, amanhã volto a escrever-te, vamos passar aqui três dias para recuperar da viagem, e só depois vamos à Clinica Oftalmológica em Havana para a consulta da Mónica. Quem me dera que estivesses aqui, para me aqueceres... O sono começa agora a pesar-me nas pálpebras, até que enfim, estava-me a saber bem ter insónias e aproveitar a cumplicidade do silêncio e da noite para escrever, o portátil é um bocado trambolho, mas para isto dá jeito, vou escrever-te todas as noites, enquanto a bateria não desfalecer e eu não adormecer. Um beijo, Teolinda, um bei...

21

A maca em que me deitaram era inesperadamente fresca, acalmava-me as costas enquanto sentia a enfermeira a picar-me o punho à procura das veias. Era sempre a mesma coisa, "veias bailarinas" no dizer da enfermeira Clara, uma força da Natureza que vacinava no Centro de Saúde com a mesma mão certa com que abria os regos para a batata na horta, na sua casa que ficava nuns combros abaixo de uma bouça de meus pais. Com o dinheiro do marido emigrado na Suíça construíra uma casa bizarra, cheia de colunas e azulejos despropositados, que provocava murmúrios e risos à socapa. Lembro-me quando era pequena de dizer que a casa tinha os quartos de banho virados para fora, tal o desplante da azulejaria selvagem. Mas ela vivia feliz com a casa nova, passara miséria antiga a crescer com a família, caseiros da quinta de meus pais, viviam nuns aidos que tinham deixado de ser utilizados, o pai, o Senhor João, era mineiro e coveiro na aldeia, cobrira as cortes de gado com chapa ondulada e fizera portas de contraplacado antes de se meter dentro de paredes a fazer filhos quando não chegava a casa bêbado. Das oito crianças que Deus e a desdita tinham lançado ao mundo naquele casebre, sete eram deficientes, corcovadas e com os braços e pernas muito longos como se fossem aranhiços. Só a Clara viera perfeitinha, e por esse motivo talvez era a que mais tareia apanhava do pai, que não deixava ligar a telefonia para não gastar luz. Uma noite aziaga, toldado pela vinhaça, o Senhor João partira o velho rádio de madeira e grandes botões redondos e perseguira a Clara pelos matos empunhando a forquilha que acabou por cravar numa coxa da filha, tendo sido preso pela guarda enquanto a rapariga era cosida a sangue frio pelo doutor Pedrosa. A mamã Ritalina, que tinha insistido em ser madrinha da rapariga quando se assegurou que esta não era aleijada, incomodada por esta e outras cenas de martírio com que o Senhor João atormentava a mulher e as filhas, tinha tomado a peito pagar-lhe o curso de enfermagem, impressionada com o desvelo com que a Clara sarava as orelhas dos cães comidas pelas moscas, fazia talas para um melro cigano de asa partida, dava leite aos coelhos que ficavam sem mãe com pequenas mamadeiras improvisadas com os frascos das gotas para os olhos que ela adaptava. Lembrava-me de ouvir a mamã dizer às amigas com orgulho "Raça de rapariga, há-de dar enfermeira, é mal empregada numa fábrica". Difícil foi convencer o Senhor João, só quando o senhor meu pai o Rei da Austrália o chamou para capar um porco, o conseguiu chamar à razão. Recordo essa altura, era eu uma menina de nove anos, perguntava à mamã Ritalina o que era aquilo que o Senhor João tinha que fazer ao Bonito, um lindo porco rosado com malhas pretas nas orelhas, ela respondia que era para ele não fazer mal às porcas, e eu ficava a pensar por que se não mandava capar o Senhor João para ele também não poder fazer mal às filhas. A Clara lá acabou por tirar o curso, com alguma dificuldade pois o pai não a dispensava da labuta no campo, levantava-a às cinco da madrugada para sachar as pencas, mondar o cebolo, levar os baldes de lavagem aos porcos, regar as alfaces com canados de emborra, a água choca da fossa, até tremia de nojo a pensar nas saladas feitas com a hortaliça do Senhor João. À tarde ia esperar a filha à carreira e trazia-a no carro de bois com as rodas a chiar nos cubos, e continuava a frezar os campos, a roçar mato, a sulfatar as videiras ou a enxofrar as macieiras. Com os tempos a Clara tornou-se uma mulher rija, possante, executando todas as tarefas do campo como qualquer homem, talvez melhor até. Mais tarde viu-se finalmente livre das tiranias do pai, começou a trabalhar já como enfermeira no centro de Saúde com um pedido da madrinha, casou com um rapaz estucador emigrante na Suíça, com o dinheiro que ele mandava juntou para uma casa, não queria uma qualquer, quis uma casa que todo o povo falasse mas que tivesse quintal nas traseiras para dar uso às galochas, às socas, e trabalho aos braços e à enxada.

Quando o Doutor Pedrosa me receitava injecções para a garganta ou mandava fazer análises, a mamã Ritalina levava-me à Clara, que me deixava a perna tesa de três dias com a penicilina ou me escarafunchava os cotovelos à procura das veias bailarinas, a morder a língua para afinar a pontaria. Agora que sinto mais que vejo a enfermeira cubana a picar-me o braço, tenho saudades da Clara, do seu riso sonoro, do seu braço musculado que fazia papos dentro da bata, pegava em mim como se fosse uma trança de cebolas, "Adeus cara linda, esfrega com uma pedra de gelo, passa-te as moínhas e não encaroça", como gostava que ela me chamasse assim, embora falasse alto e empedernido gostava tanto dela, agora sinto uma sensação esquisita como se estivesse a cair a um poço, deve ser a anestesia, que coisa estranha, é como um avião desgovernado em dia de temporal mas com mais urgência, uma obrigação de dormir em queda até tudo se apagar...

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Descolar de Varadero num quadrimotor da Aerocaribe é uma empreitada com o seu quê de imprevisto e emocionante. O destino é Cayo Largo, um conjunto de ilhotas de sonho no Mar do Caribe, ao largo da costa sul de Cuba. Nas ligações aéreas internas não há bilhetes de ingresso no avião, nem outras formalidades. É pagar e andar, mas andar mesmo, chega-se a pé do edifício do aeroporto até ao pássaro voador que nos é apontado a dedo. O velho quadrimotor de fabrico soviético, um Tupolev dos anos cinquenta, ameaçava ruína nas fendas da carlinga calafetadas com pensos rápidos. Repousar é difícil nos bancos estropiados, o avião dança parado na pista como se já fosse em pleno voo, o bambolear das asas na trepidação dos motores deixava-me preocupado com a resistência das juntas rebitadas, parecia que estas seriam incapazes de resistir à viagem, pensei, começamos de aeroplano e acabamos de foguete quando ele largar as barbatanas de metal, vamos afocinhar longe, servir de pasto para os tubarões que povoam a corrente do Golfo, ao largo das Bahamas... Revi o ar cínico da hospedeira de terra que tomava nota dos nomes dos passageiros, para quê, perguntei, se não há bilhetes, ora, é para quando o avião cai...

Mal refeito, percebi que nos enfiam na fuselagem, a hospedeira fica na pista a sorrir, por isso se chama hospedeira de terra, apercebo-me que não vai ninguém connosco além do piloto, procuro controlar o pânico e não gritar. Desligam o ar condicionado para iniciar a descolagem, o calor abafa-nos e o suor escorre dos rostos, mesmo com tudo desligado o calhambeque alado geme em esforço até ao fim da pista e consegue erguer-se num soluço antes das árvores, ainda não estamos descansados de todo que as asas ainda andam perto das copas, finalmente ganha altura e o peito esvazia a respiração contida, finalmente o ar condicionado volta e já se consegue respirar, o avião abana e treme como quando estava na pista mas já vai sendo hábito, o pior já passou. Descubro a Mónica e o Jorge no outro banco também quase passados, aceno a dizer que está tudo bem, é o que esperam de mim, tenho que aparentar calma...

Meia hora de voo na Aerocaribe é assim uma espécie de teste provocativo coronário. Quem se habilita e passa incólume, pode ser inscrito sem mais formalidades como doador de miocárdio, válvulas, de todo o coração no banco de órgãos. Do alto do susto, nem deu para apreciar muito bem a vista da ilha, quadrados de verde e castanho apareciam na escotilha da janela à qual ninguém se debruçava, talvez com receio que o avião adornasse. Nunca vi uma viagem assim, todos os passageiros olhavam fixamente em frente, como se até as pequenas oscilações de cabeça pudessem desequilibrar o aparelho.

Descemos à vista dos ilhéus, riscos de areia dourada com um pequeno chapéu castanho plantados no meio do oceano. Já avisados, não estranhamos o calor sufocante que anunciava o regime de poupança de energia, o avião fez-se à pista como um corta-olhos zonzo, o suor juntava lagos no pescoço enquanto se ouvia rezar terços em espanhol, por fim chocamos com a pista em desgoverno de tal sorte que os queixos saltaram com fragor na castanhola dos dentes, quando o comandante alinhou por fim o aparelho na pista ribombou uma trovoada de palmas e as vozes voltaram a ouvir-se como se ressuscitássemos ao primeiro dia, coisa de que nem todas as divindades se podem gabar.

Desmontar do pássaro de metal é um alívio, dadas as circunstâncias, percorremos apressados os metros de asfalto que nos separam do inconcebível aeroporto, um conjunto de palhotas que é uma discoteca, de seu nome Blue Lake Disco, onde a música se interrompe para receber o desembarque dos passageiros, ocasião rara que perturba o tédio dançante local por alguns minutos. Refeitos do vomitado de avião, retomam os músicos o seu ofício, dedilhando cordas e massajando batuques com a pressa de quem vai a lado nenhum, enquanto o enésimo daiquiri começa a criar-me urticária na garganta. A caminho da praia de las Sirenas, enlatados numa wauwa, descemos para um ferry, rasgamos águas mansas entre cayos e ensenadas até aportarmos um cais de madeira de idade duvidosa. A ilha de bancos de corais é cintada por um polvilho de areia fina e doirada, que se agarra nas pernas como uma mulher louca. O mar é azul sulfato, com matizes de tons que se perdem nas curvas das baías, o olhar desmaia neste caldo de ilhotas cosido em variantes de azul e ouro, a Mónica não aproveita a não ser pelos meus relatos que são sombras pálidas da realidade a que tenho acesso, que pena que eu tenho que ela não se possa aperceber da beleza destas paragens onde os olhos encontram refúgio no horizonte prenho de emoções. A Mónica está mais ansiosa hoje, como se desesperasse de retratos infiéis. É difícil moldar emoções em palavras, sinto-me como um oleiro sonolento com mãos reumatoides a tentar dar forma a um barro demasiado seco. Sei que transmito apenas uma parte pobre do que está a acontecer, Mónica, tu não consegues ver pelas minha palavras que já me cansam na garganta, e isso me deixa também angustiado, faço um esforço sobre-humano para desenhar em traços grossos a realidade e sei que não consigo, e tu também te apercebes e não gostas, julgas que não tenho empenho suficiente. Por outro lado, pressinto que também não estás bem com o Jorge, é algo indefinido, apenas a maneira como terminas as frases, pequenas palavras ácidas que te escapam e que ele não percebe. Mas eu, que já te conheço como a lua, em diversas fases, te percebo a amargura nas dobras da voz, embora o teu sorriso nada traia, como sempre. Rumamos a Ilha das Iguanas com curiosidade de espreitar os pequenos dinossauros, eles correm para nós como uma matilha esfaimada e andarilha, estacam imóveis atentos aos sons, descubro que são quase cegas e o nosso guia confirma, não são agressivas mas podem morder julgando tratar-se de comida, talvez tu, Mónica, as entendas melhor, talvez o teu amargo seja a maneira como tu nos mordes, e nada mais...

De regresso, falta-nos a vontade por dois motivos essenciais, a atracção pelo paraíso e a ideia do viagem num Aerocaribe, exercício de faquir ou provação de quem consegue atingir o Nirvana e regressar.

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Um homem sobrevive a tudo, se mantiver os olhos sempre longe e caminhar em frente. Fazia por não pensar, repetia maquinalmente gestos que já sabia de cor. Como se atravessasse um deserto. Minha cara Mónica, se te passasse pela cabeça apenas a leve suspeita de que eu sou algo menos que um marido dedicado, estragava-se o teu sorriso de felicidade ingénua. Aguento, já aguentei pior, como o prepotente do teu pai, sempre com o maço gordo de notas no bolso das calças, a chamar-me com o desprezo enrolado na boca fanhosa "ó ‘paz, anda cá..." e lá vou eu com papeis debaixo dos braços a servir-lhe de capacho. As viagens insuportáveis no seu Mercedes cor de azeite que fede a pastilhas do Dr. Rogof, o seu nojento hábito de mascar pastilhas de alho, o bafo do hálito podre quando desalinha a sua frase preferida para início de conversa "bou-te dar uma reposta..." ,o cheiro a alho destilado no suor que lhe molha a camisa a despontar nas cavas do colete, e que entranha os estofos do carro e torna o ar pesado e insuportável à sua beira... Desde que ouvira o Fonseca da Farmácia dizer que as pastilhas de alho mantinham a juventude, o Rei da Austrália mamava daquilo como se fossem Smarties, e os impedidos como eu é que gramavam a crise do cheiro. E de juventude estávamos conversados, o Rei continuava a encarquilhar, a testa oleosa perdia-se na calva riscada pelos cabelos ralos já com meia de tinta, mantidos em paralelo com duas de brilhantina barata, cujo cheiro enjoativo fazia um refogado perfeito com o azeite da testa e o alho do bafo. O Rei fedia a morto, olhava para ele de lado a apreciar-lhe o corte do fato, o verniz dos sapatos, a imaginá-lo esticado em quatro tábuas, pronto para o velório, rodeado de candelabros altos de prata e paramentos roxos e rendas brancas a desfalecer das cómodas. Era assim que o sonhava, um dia lhe ficaria com o reino mais o rolo das notas do bolso das calças, e pagaria mulheres de virtude para gritarem na hora própria, encomendaria missas todas as novenas para recomendarem ao Senhor que lhe tratasse da alma, enquanto eu lhe tratava do património. Portanto, quem tem estômago para aguentar o Rei, aguenta a princesa mais facilmente, ao menos não cheiras mal, Mónica, mas também não me cheiras a nada, o que é também um triste desconsolo. Uma mulher cheira-me a aventura, a mistério, perigo salgado, ao odor almiscarado do sexo que me excita e me faz revirar os olhos de prazer. Como o odor penetrante de Lolita, suor de mulata provocante, sigo-a com os olhos enquanto passeia entre os coqueiros, levo a Mónica a reboque e vou no encalço do seu cheiro. Chegamos à praia deserta, Lolita dançava para mim, sorrindo divertida. Sentei a Mónica em duas desculpas tolas, ela ficou, serena, com o meio sorriso estampado no rosto tranquilo enquanto eu me afastava do seu raio de visão. Perdi-me nos braços sôfregos da corista, procurei a sua boca húmida, afogando-me de prazer com o som cavo das ondas em fundo, enquanto pensava que era preciso ser mesmo tarado para fazer uma coisa daquelas. Mas sentia-me ainda mais excitado por ver a Mónica ali tão perto de olhar parado sem se aperceber de nada, o perigo tornava-me louco de prazer, Lolita também estava como que hipnotizada, amámo-nos lenta mas apaixonadamente na areia com o sorriso da Mónica a excitar-nos quase até à loucura. Esgotados, ficamos agarrados em silêncio até recuperar o fôlego e o coração deixar de bater na boca, depois lavamos os vestígios de infidelidade no mar de cristal, Lolita afastou-se ainda um pouco perturbada, mas satisfeita. Já recuperado, corri até à beira da Mónica, gritando, olha o que eu encontrei, depositei a concha na sua mão, mas que é isto, Mónica, espetaste as unhas na mão, até fizeste sangue, ela riu-se, que disparate, devia estar distraída, não reparei, riu-se divertida, perscrutei o seu rosto e sosseguei, não dera por nada, que alívio, por momentos, pensei...


O ESTRANHO CASO DO CADÁVER SORRIDENTE

Capítulo 1

A rolha de Don Perignon rolou indolente, impelida por uma aragem invisível. É curioso como é possível desvendar tanta coisa por um pequeno objecto de cortiça, a que ninguém tinha aparentemente prestado qualquer atenção. A minha intuição impelia-me os dedos, farejei o seu odor de champagne frutado e macio, identifiquei fragâncias desencontradas, traços de Channel nº 5, charutos Monte Cristo, restos de baton Survey, uma sugestão de bismuto, uma base enjoativa de after shave Old Spice, o cheiro acre de sangue traçado com um rasto de pólvora. Tudo concentrado num pequeno cogumelo de cortiça.

O aposento vazio parecia-me um palco abandonado após o último acto. O silêncio que se segue às grandes apoteoses, encorpado, imenso. Como se tivesse acabado de ser aplaudido de pé, eu, Mário França, um dos melhores detectives do mundo. Sorrio, sempre que assim penso, loucura, há sempre alguém, em qualquer outro lugar, que nos leva a palma em tudo... Mas não há nada que não possa imaginar por um momento, quando me entrego ao fio de luz de uma lanterna de lápis para esquadrinhar documentos alheios, quando sigo uma viatura através das ruas do Porto dois quarteirões mais atrás apenas com os mínimos ligados, quando me disfarço de assador de castanhas para assistir a transacções de droga em Santa Catarina, ou quando me coso com a multidão anónima das ruas no encalço de um marido infiel. Estes pensamentos de grandeza ajudam-me a suportar as noites longas de vigília torcido no banco do carro, ajudam-me a esquecer os miseráveis honorários que sou obrigado a cobrar para não espantar a clientela. Mal agradecidos, querem serviço de luxo por meia dúzia de tostões, nem dão valor à arte, usam-me e deitam fora como um vulgar lenço de papel, depois do serviço feito. A gente que me procura tem um buraco no lugar da cara, vomita um cheque com desprezo, seguro entre dois dedos à distância como se eu contagiasse qualquer peçonha. Como se o facto de eu ficar a saber segredos proibidos da suas vidas me enchesse de uma espécie de lepra que querem esquecer com urgência. Sem cuidar de apreciar o verdadeiro talento que é necessário para descobrir, apenas pelos odores que aspiro desta pequena rolha de champanhe, que a morte de Gladys Cleminson não teve nada de natural, o provável assassino sofre de gastrite, o fumador de charutos é uma possível terceira personagem que poderá vir a esclarecer muita coisa quando eu o descobrir.

(Reprodução autorizada pelo autor)


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