Onésimo Teotónio Almeida

QUE NOME É ESSE, Ó NÉZIMO?
E OUTROS ADVÉRBIOS DE DÚVIDA


ARTIGOS DISPONÍVEIS:

O SER (AUTOR) E O NADA


Telefonaram-me um dia destes da biblioteca central da Universidade. Tinham comprado parte da colecção portuguesa de um lusófilo, mas vinham muitos livros que a Brown já possuía. Sabedores do meu vício, davam-me mais uma vez a oportunidade de fazer uma rusga antes de os enviarem para revenda.

Foi uma festa. Em duplicado. Embebedei-me de livros e diverti-me à grande a ler as dedicatórias que neles, em separatas, folhetos e folhetins, o mundo lusófilo fazia ao investigador, e que ele talvez não tenha nunca lido, a ajuizar pelo aspecto virgem de muitos deles, não raro com prova apodíctica de hímen e tudo: as folhas nem sequer haviam sido cortadas.

Não levo a mal o senhor. Faço uma pálida ideia do que seja receber montes de ofertas com as dedicatórias mais pirosas, esperançadas nuns minutos do seu tempo e de umas linhas a dizer "li e gostei muito". Poderia ter feito como aquele outro que pôs a circular um aviso para não lhe enviarem mais nada relacionado com qualquer coisa posterior ao século XVIII.

Imaginei-me um dos ofertantes a ver agora ali o meu livro retornado. Imitaria talvez George Bernard Shaw, que, diz-se, ao deparar-se num alfarrabista com um livro seu, por ele oferecido a um amigo, em que escrevera "Com os cumprimentos de George Bernard Shaw", o comprou e enviou de novo a esse tal amigo da onça, acrescentado à dedicatória: "Com os cumprimentos renovados de G.B.S."

Antigamente era de boa educação escrever-se a agradecer um livro só depois de lê-lo. Agora generalizou-se essa de escrever, logo após a recepção, uma nota, frequentemente computorizada e em que apenas se preencheram os espaços em branco, dizendo estar o recipiente muito grato pela oferta, que lerá na primeiríssima oportunidade. E a gente imagina o livro a ser enterrado na estante.  É a versão moderna da suposta carta de Voltaire a um crítico que lhe descencara num livro:

"Senhor: estou sentado no quarto mais pequeno da minha casa. Diante de mim tenho a sua crítica. Dentro de instantes ela estará atrás de mim."

Nessa linha blasée de Voltaire está aquela outra de Frank Herbert. Num party oferecido pela sua editora nova-iorquina, uma senhora aproximou-se do escritor: "Você  é que escreveu Dune, não foi?... Olhe, eu não gostei nada do livro!" E desandou por ali fora num rosário minucioso de razões do seu desagrado, até ser interrompida por Herbert: "Desculpe, minha senhora, mas parece-me que me confundiu com alguém que se importa com a sua opinião."

Quem como eu está a ficar cada vez mais tradicional nessas ninharias de educação, apanha a fama de malcriado precisamente porque não quer agradecer sem ler. Mas o pior é quando o(a) autor(a) telefona: "Já leu o meu livrinho?" E a gente a desfazer-se em desculpas para não esmigalhar ainda mais o ego do(a) pobre. Não é fácil ser cruel como Oswald de Andrade, o pândego modernista brasileiro. À pergunta do ofertante de uma obrinha – "Já leu o livro?", ripostou: "Não li e não gostei!" (Acautelo-me avisando que esta é atribuída a outra gente, incluindo Adolfo Casais Monteiro. A minha regra, porém,  é aceitar sempre a fonte mais antiga.)

A propósito de atribuições múltiplas, ocorre-me um incidente com Humphrey Bogart, que, conhecedor da técnica hollywoodesca de escrever livros – o ghost writer -, disse a Ilka Chase ter gostado de Past Imperfect, mas acrescentou com maldade. "Quem foi que lho escreveu?" E ela com a mesma rapidez: "Escrevi-o eu! E quem foi quem lho leu?"

Mas há também as pessoas simpáticas em excesso, como aquele senhor engenheiro que se virou para mim um dia: "Li o seu livro." Sem querer armar-me, perguntei-lhe cuidadosamente: "Qual deles?" O homem afinou e atirou-me com desdém: "Não me lembro do título. Era um livro de capas azuis." E este vosso criado, que não  é de pau, pegou no tom: "Desculpe. É que, depois desse, escrevi um de capa vermelha, outro de capa branca e ainda um outro de capa verde."

Quem não se pode queixar do silêncio dos leitores é John Lenz, meu antigo professor de História e Filosofia. Assinou um contrato com a Prentice-Hall para escrever um volume sobre Filosofia da Educação na série Philosophical Foundations, traduzida em várias línguas, e que punha na capa de cada volume a lista completa dos livros publicados e a publicar, sem qualquer distinção. Lenz nunca chegou a escrever a obra, mas confessou-me o embaraço, repetido umas quantas vezes, ao ouvir gentilíssima gente declarar-lhe ter beneficiado muito da sua leitura.

Pelo que me diz respeito, embora por norma atrasadíssimo, escrevo sempre um agradecimento comentado dos livros que me oferecem. Mas a recíproca não  é verdadeira. Envio dezenas de pacotes a amigos e só uma minoria acusa a recepção. Certa vez resolvi acompanhar a oferta de uma carta-postal. Num lado levava o meu endereço, o quadradinho para o selo e esta citação:

Coimbra, 26 de Maio de 1942 – Mais um livro. Mais uma tonelada de energia perdida, que, gasta na minha terra a saibrar monte, dava pelo menos um milheiro de bacelo plantado. Mas pobre de quem tem uma chaga! Pobre de quem tem a mísera condenação de ser poeta, e de o ser aqui...

Coimbra, 27 de Maio de 1942 – Lá foi o livro para as quatro ou cinco pessoas a quem ainda, por amizade melancólica, ofereço as minhas coisas, sem a esperança de uma linha sequer a dizer – cá recebi.

(Miguel Torga, Diário, vol. II, p. 35)

No verso, estes dizeres a serem completados pelo destinatário:

Caro(a) amigo(a):

Após a recepção deste livro, agradecia que preenchesse o cupão

abaixo e mo remetesse na próxima oportunidade.

Onésimo

Caro Onésimo:

Acuso recepção do teu livro

................................., que já (assinale a resposta apropriada)

– pus na estante

– pus no caixote do lixo

– ainda não tive curiosidade de abrir

– vou ler quando me reformar.

Quanto ao teus próximos livros, e para que não gastes mais papel

nem dinheiro com os correios (assinale a resposta apropriada)

– envia-mos se tos solicitar

– pela tua saúde, não mos envies!

Cordialmente,

(Ass.) .............................

Membro do Movimento pela Redução do Consumo de Papel

Não sei se foi por não quererem assinar o seu nome diante da palavras ass – pura e inocente coincidência! – mas quase ninguém devolveu o carão. Duas pessoas preencheram uma fotocópia, pois queriam ficar com o original. Vá lá, sempre foi alguma coisa.

Por isso, com o meu recente No Seio Desse Amargo Mar, amargamente perdido no seio dessas livrarias, estou em não incomodar ninguém. Aliás, mesmo que quisesse fazê-lo não poderia, que já tem mês e meio de publicado e ainda não recebi volumes para oferta. Quando vierem, se calhar fico com eles, como Henry David Thoreau, que, não tendo conseguido vender a maioria dos exemplares de uma das suas obras, dizia em carta a um amigo: "Eu tenho agora uma biblioteca com cerca de novecentos volumes, setecentos dos quais eu  é que escrevi." Outra alternativa é seguir o exemplo da livraria da Brown, que, todos os verões, para limpar as prateleiras, vende livros no passeio a um dólar. O quilo.

Afinal, um livro só  é realmente importante para o autor. Ideia, diga-se, muito melhor expressa no cartoon que vi numa revista não sei onde, em que um indivíduo contemplava em êxtase o seu precioso livrito sumido nas prateleiras sem fim de uma biblioteca. A legenda captava-lhe o pensamento: "Que experiência única é ser autor de um livro!"

 É por estas e por outras que, na próxima vez que eu for a Portugal, bem pode acontecer-me como ao outro que alguém abordou para dizer: "Olhe, eu comprei o seu livro." E o autor muito surpreendido: "Ah! Foi você?!"



O INSUSTENTÁVEL PESO DO SABER

O peixe morre pela boca. Quem não dá ouvidos à sabedoria popular, lixa-se. Eu, que achava um piadão  àquele grafito anarca "Abaixo a cultura. O povo é que sabe!", tenho por acaso muito respeitinho pelas máximas herdadas da sabedoria de gerações, e até gosto de usá-las. Com a devida moderação, porque elas, levadas à letra, quase se anulam reciprocamente. Falha que a própria sabedoria popular resolve, sabiamente também.

Para que fui eu insurgir-me contra o mau hábito, muito cultivado em Portugal, de se receberem livros sem agradecimento nem resposta, sequer essa mentirinha bem-intencionada "vou ler na primeira ocasião"?

Foi logo. Arribou aí uma carta do Brasil a lembrar-me que ainda não tinha acusado a recepção de um livro oferecido, um calhamaço, tese de doutoramento minuciosíssima sobre uma pequena comunidade de que nunca ouvira falar, num Estado que nunca visitei. Toma, Onésimo, para aprenderes!

Depois dessa paulada, fui  à estante onde acumulo os livros oferecidos e que aguardam a aplicação da minha regra de não agradecer sem ler primeiro. Foi duro, humilhante mesmo, constatar que não só estou atrasadíssimo como eles continuam a chegar e cada vez se tornará mais difícil cumprir o preceito. Que fazer, por exemplo, a uma prateleira a abarrotar com esses portentos de teses de doutoramento, imensas e massivas, opressivas e imponentes? Vou mentir  à Maria Norberta Amorim sobre a sua Evolução Demográfica de Três Paróquias do Sul do Pico, desde 1680?  É que fui eu, inveterado masoquista, a pedir à autora que me oferecesse um exemplar quando terminasse a pesquisa. Nabo em demografia, vou impingir-lhe que até li de fio a pavio e com sofreguidão as 600 páginas do "Apêndice Genealógico", uma listagem de nomes, datas de nascimento, de casamento e óbito? Que comentário vou fazer? Que só faltam os números de telefone? Mas como é possível juntar-se tanta informação sobre tão pouca gente? Certo estava quem disse que hoje a função das universidades é fazer-nos saber cada vez mais sobre cada vez menos.

Por deveres de ofício não tenho podido furtaram me à obrigação de pertencer a júris de teses em áreas em que sou ignorante encartado. Pois a regra é que elas sejam passadas a pente fino por gente de todos os quadrantes, que possa de algum modo ter a ver com o assunto em questão. Nesta altura do ano a epidemia é garantida. Ultimamente têm- me calhado em sorte uns não pouco indigestos que devem ser (reconheço humildemente) importantíssimos estudos nas subsubsubsubáreas em que cada doutorando decidiu estragar parta da sua vida e desfazer-se de muito cabelo. Eu próprio, quando foi a minha vez, gastei avantajadas resmas de papel à volta de uma única palavra – ideologia – por me ter deixado fascinar pelas guerras enormes que ela desencadeava. Quando, na defesa oral, me perguntaram que propunha eu se fizesse a tão endiabrado termo, sugeri que fosse abolido. Aliás, dei eu próprio o exemplo: não o usei durante dez anos. E não lhe senti a falta. Mas continuei na minha de julgar importante tratar da saúde a semelhante bicho impertinente, embora toda a gente continuasse a sua vida normalmente sem se preocupar com isso. Os que usavam a palavra e os que dela nunca ouviram falar.

Um pobre, que tem de se submeter a esses ritos de passagem, espremendo uma ideia até  à última gota e  à milésima nota de rodapé, não quer saber se o resto dos mortais acha urgente o estudo do seu tema eleito, pupila do seu afecto. Misteriosas e insondáveis estas flagelações iniciáticas de que eu também me fiz gostosamente vítima.

Digam-me lá se não foi por gosto que um indivíduo como João Saramago (João não é gralha) passou anos a estudar e depois a escrever uma tese de doutoramento sobre a população de uma ilha de trezentas e poucas pessoas? Tenho agora aí para ler e agradecer (outra pedincha minha) esse seu Le Parler de l'Ile de Corvo, Açores, com uma quase inacreditável minúcia de dados, uma quantidade de gráficos com registos acústicos que me transcendem, para não falar de estatísticas e percentagens de uso de vocábulos e o caneco. É preciso ter amor à língua, à linguística e ao Corvo. (E que lhe vou eu dizer? Que o papel é de um branco finíssimo e a capa está gira à brava com uma bela foto da sua ilha?!)

Mas tenho mais, muitas mais teses para aí. E o pior é que algumas são para ler mesmo de ponta a ponta, ainda que redondamente me ultrapassem, como por exemplo a do meu compadre João Bilhim, a quem não pude recusar o pedido, embora lhe tivesse confessado quase de joelhos que nada, três vezes nadinha, sabia sobre Factores Organizacionais do Sistema Português de I&D. Encontrei, por acaso, uma passagem onde faltava uma vírgula. Ah!, e num parágrafo recomendei-lhe que seguisse aquela velha regra estilística de nunca começar uma frase com porém. Porém, essas pertinentes sugestões valeram-me umas palavras quentes e reconhecidíssimas na página dos agradecimentos da praxe, na versão final que ele me entregou aquando da minha última passagem por Lisboa. Pedindo-me que voltasse a ler, claro!

Estou eu para aqui a brincar com coisas tão sérias como o buraco sem fundo que o saber de uma tese abre na cabeça de um mortal. Não é justo. Até porque reconheço o exagero de aplicar à toa, a qualquer tese, aquela história da conversa entre Nicholas Murray Butler e o Professor Brander Matthews, da Columbia University, que escrevera um artigo sobre o plágio. Segundo este, quando alguém usa uma história pela primeira vez,  é o original. Se um segundo refere a mesma história, plagia. O terceiro já só revela falta de originalidade; o quarto, porém, recorre simplesmente  à tradição. Ao que o Butler terá acrescentado: "Mas quando um quinto a usa, chama-se investigação!"

Ninguém de fora compreenderia o entusiasmo para-fanático que abrasava quatro linguistas com quem almocei uma vez. Era um congresso mundial e eu desaguei naquela mesa por trabalharem com a nossa língua, mas dei afinal com uma animadíssima conversa em linguagem cifrada. Um deles anunciava a publicação próxima de um trabalho seu que iria revolucionar completamente o campo. Meia hora depois, descobri que, no mundo inteiro, só mais duas pessoas faziam pesquisa naquela área.

 Á mesa estava uma linguista americana, minha colega de universidade. Dedicava-se à língua portuguesa. Escrevera uma tese de doutoramento sobre os nossos sons nasais. Não falava; torpedeava os presentes com um voluptuoso discorrer sobre ens e ins, uns e  ões. Varado com tão entusiástico saber, comentei para a Martha que tanto fervor se me tornava quase incompreensível. Só por analogia era capaz de simpatizar.

Com um enorme sorriso, confessou-me:

– Se queres que te diga a verdade toda, a minha grande paixão nem é

esta...

E, sem me dar tempo para conjecturar alternativas, desvenda-me a alma

em pleno:

– ... a minha grande paixão é o ditongo português  ão!



O ESPÓLIO NÃO CAI DO CÉU


Um dia desses, um telefonema de Camila Miguéis. Havia um tom de mágoa dentro do meu auscultador. NewYork é Já ali em baixo. Ao telefone, mesmo ao pé da porta. Não, das linhas não era certamente... e Camila não fala assim. Mas falou dessa vez. Tinha saído em Lisboa um livro sobre o seu José, o Rodrigues Miguéis, da autoria de um grande amigo dele, Mário Neves (J. R. Miguéis – Vida e Obra. Caminho, 1990). Fazia uma censura velada – e delicada, acrescente-se – ao facto de ela ter oferecido o espólio do escritor e marido à Universidade de Brown em vez de oferecê-lo a Portugal. O pior não era isso. Tal comentário, em livro, fica na estante, pois em Portugal quase ninguém lê ensaios. Para mais, no contexto do livro, muito simpático para com Miguéis e a sua obra, era pormenor de somenos. Mas os jornais, sempre à procura de um escandalozinho e de motivo para se entregarem ao prazer da bordoada moral, tinham pegado e espremido a queixa a seu gosto. Camila leu-me, por exemplo, um parágrafo d'A Capital, que me prometeu e enviou pelo correio de seguida. A paulada batia assim: "É também com visível discordância que Mário Neves comenta o destino dado pela viúva ao legado pessoal e literário do escritor: 'O espólio de Miguéis foi entregue por D. Camila a uma universidade americana, privando assim os portugueses de um património com inestimável valor cultural.'"

Não foi preciso ser muito intuitivo para perceber ao que vinha aquele desabafo. Era altura de eu vir a terreiro e limpar-lhe a memória, confessando o crime. Prometi fazê-lo, embora sem saber bem como.

Algum tempo depois, telefona José Carlos de Vasconcelos. O JL preparava um número especial sobre a cultura portuguesa no mundo, e pedia um depoimento da América. Mas tratava-se de uma temática para ficar no activo. Quer dizer que, depois de satisfazer a encomenda, poderia enviar outros flashes sobre a cultura portuguesa na América para publicação em números posteriores. É ao que venho hoje. Começarei por umas pinceladas de contexto.

A primeira década americana de Miguéis foi de activismo intenso. Envolveu-se sobretudo com os grupos políticos hispânicos e antifranquistas. Eram os anos trinta e quarenta. Depois dessa fase que o desiludiu, entregou-se à escrita. Em português. Falando inglês muito bem, reconheceu não poder ser essa a sua língua de criação. Apenas um conto aparece em inglês numa antologia de ficcionistas europeus. Até morrer em 1980, Miguéis foi uma ilha portuguesa na ilha de Manhattan, construindo ano após ano um arranha-céus de literatura, invisível a olhos anglos. Era de Portugal que se podia vê-lo. De lá, e dos poucos e minúsculos ilhéus dispersos América fora, onde os espanhóis toleravam que se ensinasse português.

Miguéis morreu assim nesse mausoléu que Aquilino terá dito ser a língua portuguesa. Na Universidade de Brown, a gente de um Centro de Estudos Portugueses recém-formado ainda tentou trazê-lo para uma conferência, mas ele cancelou à última hora. A saúde já não lhe permitia dispêndios exagerados de esforços para além do deambular quotidiano pelas ruas de New York. No entanto, um ano depois da sua morte realizava-se na Brown um simpósio sobre a sua obra. Havia já uma tese de doutoramento sobre o escritor, pelo professor John Kerr Jr., um dos presentes no encontro, tese, por sinal, dirigida por Jorge de Sena, falecido dois anos antes de Miguéis. De Kerr era também o livro Miguéis – To the Seventh Decade, cuidadosa biobibliografia, indispensável a qualquer estudioso do escritor. Falta apenas mencionar outra tese, de Maria Angelina Duarte, ainda não publicada.

Fez-se o propósito de divulgar a obra do escritor em inglês, e só aos poucos isso tem sido concretizado. Primeiro, a publicação das actas, num volume a que dei o nome de José Rodrigues Miguéis – Lisbon in Manhattan. Depois, a primeira colectânea de contos em tradução, da responsabilidade de George Monteiro, Steerage and Ten Other Stories, publicado pela Gávea-Brown, editora do mencionado Centro. A seguir saiu, na University Press of New England, uma outra de Um Homem Sorri à Morte – com meia-cara, que o tradutor George Monteiro chamou A Man Smiles at Death – with half a face.

É neste retrato, que contrasta um tanto com ó "tão grande interess" de que Miguéis "tem sido alvo nos Estados Unidos", onde os estudos sobre ele não têm a "larga divulgação", de que fala Mário Neves no seu livro. Mas esta distorção não lhe é exclusiva. A imprensa portuguesa tem o hábito de fazer essas ampliações desmedidas. Mário Neves deve, aliás, ter forçado a tecla para vincar o contraste com o silêncio que sobre Miguéis em Portugal se fez. (Dir-se-ia melhor: esquecimento.) Queixara-se o escritor da passagem desapercebida, entre os críticos do seu país, de um romance de grande fôlego como O Milagre Segundo Salomé e de outras desatenções à sua escrita. Nada se alterou. Só dez anos depois de morrer lhe publicam uma biografia e, assim mesmo, graças à amizade de Mário Neves. (Os dois leves reparos aqui feitos não devem de modo nenhum subtrair mérito ao livro.)

Camila esteve, ao longo de todos estes anos, em contacto frequente com o Centro da Brown única instituição a promover a obra do marido. Mais do que uma vez deixou transparecer os seus escrúpulos sobre o destino do espólio. Receava poder desaparecer também um dia sem ter dado bom caminho aos papéis e à biblioteca do escritor.

De Portugal, era o já dito silêncio. E toda a gente da cultura sabia que Miguéis era morto. E que teria um espólio, naturalmente. Mas andava-se distraído destas coisas. A política era tudo e não havia surgido ainda o actual interesse generalizado pela "cultura". Recordo-me de ter abordado a editora de Miguéis para fazer sair em edição portuguesa o volume com as actas do simpósio da Brown. A resposta desculpava-se, explicando não ser rentável e que isso deveria interessar era ao público americano, não ao português. (Guardo a carta.)

Um dia, George Monteiro, doente crónico de bibliotecas e desde muito envolvido com a John Hay Library de Brown, especializada em Americana, veio com a sugestão de libertar Camila do seu pesadelo, trazendo o espólio para a Brown. A ideia foi rapidamente aceite por todos os envolvidos.

A mim coube o papel de bagageiro. Aluguei um U-Hall – uma carrinha espaçosa bastante para carregar uma biblioteca no ventre – e lá fui a acelerar pela estrada 95 abaixo, na companhia de José Brites, então aluno. Foi um dia a empacotar caixotes, e a carregá-los às costas do 11º andar para a carrinha. Valeu-nos o elevador. Mas só quem não sabe de estacionamentos em New York imaginará termos conseguido um junto ao prédio. De regresso, e com ginástica para uma semana, o Zé e eu parámos num café da Quinta Avenida, e recordo-me de ter garatujado umas linhas sobre aquela aventura. Perdi os papéis, mas recordo que metia D. Quixote e Sancho Pança (não sei quem era quem, se o Zé e eu tínhamos ambos bocados dos dois), Pascal e as razões do coração que a cultura portuguesa no estrangeiro tem e Portugal não entende, e não sei que mais. (Como o leitor pode ver, nada se perdeu com o desaparecimento do meu manuscrito.)

E foi desse modo que se perpetrou o crime. Os livros e todo o espólio foram profissional e mimosamente tratados. A Gulbenkian, solicitada, colaborou. De todos os manuscritos vão seguir microfilmes para a Biblioteca Nacional de Lisboa, como foi acordado, pelo que nenhum português tem razão de vir chorar nos jornais a grande perda para a cultura portuguesa que terá sido a oferta de Camila à Brown.

Morre um estrangeiro em Portugal e os portugueses naturalizam-no. Morre um português, quase esquecido metade da sua vida no estrangeiro, e por que razão há-de a esposa, americana, oferecer a Portugal o que ninguém se mostrou interessado em adquirir?

Para salvaguarda do patriotismo luso e da honra nacional, espero que valha alguma coisa o facto de os dois ladrões assaltantes do 11C do número 40 da First Avenue serem cidadãos portugueses. Ficou assim tudo dentro da tão badalada Comunidade Lusíada. E o espólio do autor de O Pão Não Cai do Céu ficou em casa. Na América, que também foi sua. Por escolha dele.

© Onésimo Teotónio Almeida, Que nome é esse, ó Nézimo? E outros advérbios de dúvida, Lisboa, Colecção Garajau, Edições Salamandra 1994, pp. 49-53, pp. 55-58 e pp. 77-80 (reprodução autorizada pelo autor).


Voltar à página inicial de Onésimo Teotónio Almeida