Onésimo Teotónio Almeida

(SAPA)TEIA AMERICANA


CONTOS DISPONÍVEIS:

(Da nota introdutória)

«A obra literária de Onésimo Teotónio Almeida abre à nossa frente o espaço maior de um capítulo da nossa história literária, que é, sem dúvida, o da emigração para a América.»

«E então (Sapa)teia Americana o que é? Para mim, é tão-só isto: o intenso, o profundo e o mais autêntico repositório literário da vida, do pensar e do ser dos açorianos na América de hoje, sendo eles, ainda e sempre, os homens da Ilha.»

«LUSAlandeses, portugueses e às vezes... americanos, porque sim: o próprio livro, na arrumação e na ordenação dos contos, estabelece um percurso francamente circular. Assim é o 7 de Outubro no longe, texto de abertura, que os meninos ini– ciam a viagem americana. Será em O(s) Adriano(s), a encerrar o volume, que um desses meninos deixa definitiva– mente para trás o cheiro a bosta das vacas da sua Ilha e encara definitiva– mente o futuro do businessman

João de Melo



7 DE OUTUBRO NO LONGE


Ao meu tio
José Carreiro de Almeida


O primeiro dia de escola era um flash-forward da confusão do fim do mundo. Nenhum computador era capaz de atinar com a variedade de passados que cada criança trazia escondida debaixo da documentação: Angola, retornado em pânico; Cabo Verde, mulato professando-se eternamente português da Europa Ribeira Quente de São Miguel de festa do senhor São Paulo e peixe apenas; jorgense esquecido na passagem prolongada na megalópole do mesmo São Paulo, mas do Brasil; transmontano mais iniciado na TV espanhola do que na reforma do ensino de Abril; algarvio que foi à África e já veio para trocá-la por um bidonville e vem agora chorar francês nas salas da Heart Street School; maideirense de Camacha que dançara garrida o balhinho nas festas de saudades do Clube de Português de Caracas; luso de pai e mãe; mas alemão de berço e fala; corvino que no mundo da ilha vira muito menos gente do que naquele formigueiro. E havia o ora Joe ora José; o Marc agora, Mário logo; a Maria de Fátima que em inglês não dava Mary, porque era tudo Maria em português, nem Fátima, porque Pat era mais naice (1). E havia também o Manny, que até nascera no mar, e viera aprender a falar primeiro o inglês em casa com a televisão, enquanto os pais marravam na fábrica. Era só volta e meia ao frigorífico e depois cocacolava-se diante daquele professor que não chateava. Mas um dia, fartos de se sentirem abUSAdos, voltaram às cebolas do Egipto das ilhas onde o Manny a princípio falava inglês com a outra garotada, até que a mãe – ó corisco rapaz, não vês que eles não falam inglês? – e ele todo evidentemente ainda a funcionar só dentro do seu mundo lUSAlandês – falam, falam! Os grandes é que só falam português! – Mas foi inglês de pouca dura. Derreteu-se na humidade da ilha e já quase nada restava quando os pais se aperceberam de que as cebolas do Egipto faziam chorar mais do que eles se lembravam, e tiveram saudades dos mechins (2) do chápe (3), que à sexta-feira cantavam uma letra bonita escrita num cheque. E até o professor ex-Fernando, agora Fred, bacharelara-se na arte de bem cavalgar em toda a sela na Southampton Mass. University, mas cujas iniciais o vulgo corrigira para São Michael University, dividia entre o Atlântico e o El Dorado a fala, a pronúncia, o coração e o cérebro.

Tudo ali era fora dos catálogos. Cada par de pernas daquelas havia calcorreado atalhos diferentes. Só a grinanidade (4) – mesmo para quem não quer crer nas essências – era o substantivo abstracto comum a toda aquela pequenada. Concretos eram todos eles. Lá isso eram. E tanto assim que faziam rebentar os fuzíveis a quem quer que andasse de folha na mão a tentar fazer de tanta individualidade anónima um grupo de fosse o que fosse para aquela babel de sotaques e traçados de nariz.

Eram duas da tarde e uma secretária, lusa já só na lembrança dos bisavós. devota da ordem e da (eficiência, conseguira o milagre técnico de descobrir em comum os endereços daquela pequenada polícroma. Cada autocarro devidamente numerado sairia para ume zona de Riverville com as crianças que ostentassem, alfinetado nos arredores do coração, um cartão amarelo gritando o número correspondente.

A operação de despejo tinha começado. No ar berravam mãos procurando atrair a atenção dos professores e do condutor do autocarro número um, prumêro bus (5), como se lhe referia a Mrs. Travers (em tempos, Tavares) na boa vontade de se lembrar do lUSAlandês de vavó.

– No! No! Come on! Wait! Wait! (6) Espera pelo teu vez, já disse a ti. Põe a mão para baixo. Everybody is gonna go (7). Todo o gente vai ir para casa. É preciso é vocês não serem desorganizados como em Portugal. This is not Portugal, kid. Behave! you... I said you! (8) O teu bus é o número quatro. Só quando o bus driver (9) disser number four é que tu vais. Agora primeiro é o bus para o South End. Everybody, toda a gente do South End, tudo para o bus number one, número um. Damn it! Ffff... (10) ah!... You drive me crazy! Hold on! Hold on! (11) Esperem. Tu és para o último bus, o number eight, oito.

E o Mr. Smith (cujo avô achara naquele último nome uma magia que Ferreira nem por sombras tinha, embora nunca sonhasse que a mudança de língua não alterara o significado, mas, enfim, ao menos o som do novo nome não lhe malhava no ouvido a fazer faíscas no subconsciente) praguejava para dentro de si fucking greenhorns! (12) a eito, não fosse ele perder o tacho, levado à justiça por algum sanavagane (13) que tivesse aberto os olhos mais depressa do que os outros e ouvisse falar na eficácia sacramental da palavra discriminação apontada a dedo aos américas de sangue ou adoptivos.

Mr. Medeiros era grinano (4) também. Sabido nas ideias abstractas dos suplementos culturais da imprensa, das mesas-redondas e dos (cir)colóquios lisboetas, tinha o coração romântico temperado nos anos sessenta com os protestos da guerra de Angola, eufemisticamente chamada Vietnam na poesia neo-realista que se lia nos corajosos serões de porta-fechada nos intervalos do Zeca Afonso e do Sérgio Reggiani Monsieur le Président, je vais vous faîse une lettre... je viens de recevoir mes papiers militaires... s'il faut donner son sang, allez donner le votre. Letra que lhe inspirara, aliás, o salto. O estar ali.

Escrevia versos com Luther King é Bob Kennedy e servia-se até de Che Guevara para rimas. Ia-lhe na cabeça uma confusão sem aquela nem pés, mas que tinha de aguenta-te não caias, pois era uma vergonha ter-se muito mais estudo em Portugal do que aquela maralha miúda e não saber a quantas andava. Mr. Medeiros topou no meio da arraia, dois pares de mãos que não gritavam. Vestidos de igual, um era aspas do outro, mas mais pequeno. Lindos à brava. Não sabia bem donde vinha tal íman. Talvez daquela candura ingénua, com terror nos braços encolhidos e um mundo imenso nas pupilas meio escondidas nas pálpebras medrosas e envergonhadas. Aquilo era aproximadamente uma dúzia de anos dividida por dois, aí com ano e pico de diferença. O Mr. Medeiros abeirou-se e os búzios encolheram-se ainda mais na concha:

– Há quanto tempo vocês estão aqui na América?

O búzio pequenino olhou de esgueira para o búzio maior. Silêncio. Os dois arrumaram-se e só veio de um deles o som:

– Há uma semana.

Mas empurrão daqui, safanão dacolá, Mr. Medeiros, Mr. Medeiros, the telephone o talafone – chamava a Mrs. Travers.

Quando o Mr. Medeiros voltou era já o autocarro número três que engavelava pequerruchada para distribuir ao domicílio pelo North End. A um canto, na delicadeza retraída que buscava segurança nas paredes, contra as investidas daquele infantil jardim, sim senhor, mas zoológico, os dois irmãos lá estavam, obedientes, com certeza, aos últimos conselhos da mamã ao saírem de casa pela manhãzinha, não se faz nada sem o senhor professor mandar! O Mr. Medeiros só teve tempo de passar por eles e sorrir-lhes com os dedos na face uma carícia de quem revivia neles uma infância de bibe com idênticas riscas.

Na volta seguinte do Mr. Medeiros, a balbúrdia amainara um pouco, como se ó arraial se tivesse prolongado para lá da meia-noite e Maria, vamo-nos que é tarde!, começasse a deixar clareiras e cascas de tremoços pelo chão. No rosto daquela dupla misturava-se agora a agressividade reprimida com a paciência começando a cansar-se nas pernas.

– Ainda não chamaram vocês?

– Não, senhor.

Vozes de professores e auxiliares já chamavam number six! Número seis! e iam inspeccionando o rabisco preto no fundo amarelo das tarjetas que a garotada trazia ao peito. Dentro e fora, fora e dentro, Mr. Medeiros isto, Mr. Medeiros aquilo, senhor professor este menino deu-me um coice, Mr. Medeiros eu sumi o cartão com o número do meu base (14), e lá se foi indo o seis e enchendo o sete. Mr. Medeiros só atirou os olhos rápidos para o canto lá ao fundo e ainda topou imóveis os dois mocitos, mas não lhes deu aquele segundo mais que lhe diria da ânsia e do medo perdido a acacular-se em cima deles e a fazê-los chegar mais um para o outro, apesar de lhes crescer agora mais espaço à volta.

Ao regressar de lá de dentro do edifício, Mr. Medeiros ainda topara o condutor a agarrar os últimos números oito, puxar sobre eles a porta e arrancar rumo ao Dexter Point. Diante do agora atónito e intrigado Mr. Medeiros, chorava-lhe um molho de dois troncos num só, enfaixado em quatro braços. O professor sentiu roçarem-lhe assim uns ares de remorso por não ter penetrado um pouco mais naqueles dois bocados de timidez vestidos de bibe, aproximou-se sabendo-se tardio, desfez o molho nos dois garotos originais, secou lágrimas com a manga da camisa e perguntou:

– Ninguém chamou por vocês?

Em choro soluçado, veio um não estereofónico.

Intrigado, pronto a chamar nomes à frieza insensível e anglo-saxónica dos professores e à curteza humana da técnica manca da Mrs. Travers, o Mr. Medeiros procurou no peito dos pequerruchos o número do autocarro que tivera aqueles dois esquecimentos. No amarelo da tarjeta, em vez dum número, por cima do endereço que era duma casa na mesma rua da escola, apenas a dois passos dali daquele passeio da Heart Street School, estava escrito: «Walks home». Vai a pé para casa.

NOTAS:

(1) de nice, bonito.
(2) de machins, máquinas
(3) de shops, fábrica
(4) de grinano (greenhorn), «cornos-verdes», imigrante recente
(5) autocarro
(6) Não! Não! Então! Espera!
(7) Toda a gente vai ir
(8) Isto não é Portugal, pequeno. Porta-te bem. Tu... Eu disse: tu.
(9) Condutor de autocarro
(10) Poça!
(11) Tu pões-me doido! Pára aí!
(12) Imigrantes duma porra.
(13) Son of a gun, – filho da gata
(14) de bus, autocarro

(pp. 29-33)

POSTAL DE BOAS-FESTAS


Estavam fresquinhos de chegar. Tinham o Portugal ilhéu na roupa e, nos olhos, o traço do desconhecido a invadir-lhes o dentro. Faltavam ainda umas semanas para o Natal, mas o Natal das bísinas (1) b uma quadra longa e começa bem cedo. Ali, naquele mall (2), cidade coberta protegida da neve e do frio e ainda por cima sem carros e com aquecimento, o jingle bells, o we wish you a merry Christmas e o go, tell it on the mountains saíam dos altifalantes e espalhavam-se a fazer pisca-pisca na policromia das luzes que vestiam aquela floresta artificial de árvores de Natal com sorrisos de merry Christmas aos transeuntes atarefados a abarrotar de caixas de cartão e sacos. Nem mil e uma noites de arraiais do Santo Cristo juntos chegavam àquilo. A América dos postais e das cartas estava ali todinha enlatada naquele mall, felicidade a vender-se aos dólares dos que os possuíam. A pequena americana queria o mall todo na chaminé e safanava a atenção dos papás ora para uma banda ora para a outra a ditar-lhes as surpresas obrigatórias. O Tónio e a Lúcia seguravam as mãos do seu pimpolho, o Tito, na insegurança que eles deambulavam ali por entre aquela estranja que sorna inglês na confusão e nos altifalantes, nos anúncios e nos preços. O Tito olhava, mas não via nada. Ao menos os pais disso não se apercebiam. O garoto não podia de modo nenhum ler as contas que ne cabeça eles faziam entre os desejos que vinham das montras e o fôlego da carteira do Tónio. Talvez porque, aos olhos do miúdo, tudo lhe parecesse dele.

Numa das praças do mall, uma concentração maior de gente. Emoldurado num trenó em fundo de neve, um Pai Natal vivo, bonacheirão e pachorrento, sentava no colo crianças e sorria-lhes festinhas por uns segundos, até o fotógrafo captar num clic recordações-a-ser de infância, para o efeito ao menos, transbordando felicidade. Se algumas crianças mais afoitas metiam conversa com o Pai Natal a rezar-lhes a ladainha dos pedidos, já o fotógrafo, que tinha o cálculo dos seus proventos estipulado com base em fracções invariáveis de minutos, se apressava a abrir a cancela do recinto em que trabalhava e next, please! (3) Lá vinha outro .pequerrucho todo feliz com os papás a ajeitarem-no sobre os joelhos de Santa Claus (4).

O Tónio e a Lúcia sentiram-se crianças, quiseram pôr no Tito o desejo dum prazer de infância nunca tido e decidiram esperar na fila pela vez do seu garoto. Ela veio não demorada; mas o abrir-se da cancela e o fotógrafo com as pressas a inglesar direcções, que nem o Tito nem os pais entendiam, acordaram na criança receios que vieram protestando berros e lágrimas de medo e recusa. Além da insegurança, estava agora ali também o embaraço num palco com uma assistência enorme, ainda por cima impacientemente aguardando a sua vez. Nenhuma palavrinha doce fazia de chucha à boca escancarada do Tito. A do fotógrafo ia já mesmo abrir-se para declarar desistência a anunciar next please!, quando o Pai Natal, segurando o Tito com uma das mãos, passou-lhe a outra pela face em gesto paternal e serenou-lhe a genica fazendo-lhe arregalar os olhos submersos em lágrimas com um nã se chora mê rico pequene, nã se chora, queride!, no mais gostoso sotaque micalense que alguma gramática jamais ouviu nem conseguiu saborear.

NOTAS:

(1) de business, negócios
(2) centro comercial
(3) a seguir
(4) Pai Natal

(pp. 65-66)

O(S) ADRIANO(S)


Vocês conhecem o Adriano? Um par de olhos velozes e penetrantes num corpo irrequieto de onze anos de dinamite, cinco dos quais trazem ainda a marca da Terceira no português raro que ele fala.

Vi-o pela primeira vez apanhando um volume imenso de jornais ali junto à College Travel, na esquina da Waterman e Thayer Streets. O camião do Providence Journal deixara-lhe acolá aquele Himalaia havia minutos e ele, chegado da escola, agarrou um alicate da algibeira de trás e cortou o arame grosso. O vento rodopiava à volta da biblioteca de Ciências e, no termómetro ali ao pé 28º Farenheit; que a gente só lhe mede o efeito quando traduz para dois abaixo, em centígrados. Agarrou dum saco que trazia, emborcou nele os jornais e pôs-se em marcha de tronco derreado e braço direito a quarenta e cinco graus, enquanto o outro braço procurava titanicamente equilibrar o peso. Foi aliviando carga deixando exemplares no Barus and Holley, no Departamento de Linguística no de Matemática Aplicada, no Laboratório de Informática.

Eu segui aquele pacotinho de energia e determinação. Junto ao Departamento de Antropologia, meti conversa. Que não lhe estava muito para ela porque tinha de chegar a horas e a clientela esperava em casa notícias da tarde. Mas que, sim, passaria pelo departamento no dia seguinte. Tinha escola só até meio-dia.

Foi-me lá ter como prometido. Sentou-se-me na cadeira em frente como se fôssemos colegas de há muito. Falou sempre inglês, mas sabia-me português porque me ouvira já falá-lo na rua. Desbobinou-me de si e do seu mundo. É um businessman (1). Não quer ser outra coisa. Além dos jornais, tem outros negócios. Vende sementes de flores, por exemplo. E postais. Recebe as encomendas pelo correio. Traduzida, da fala dele perde-se o poético, neste caso da prosaica businessmanlike (2) linguagem do mundão americano num corpinho português ilhéu.

– Quero ser um businessman (1). É só isso que me interessa. Porque adoro dinheiro. I love money.

Viera da Terceira há seis anos e 6 por isso já mais americano que português. Quer esquecer-se, aliás, do pouco que se recorda das ilhas. Que partiu a cabeça contra uma parede, que quebrou uma perna..., um monte ali, chão acolá, o mar cinzento feio, vacas... ah! tirar-se-lhes o leite com uma bacia e a vaca a pôr os pés dentro do leite...

– Mas isso é para esquecer. Eu odeio os portugueses. Não gosto de ser português. Gostava de ter nascido aqui. Os portugueses são estúpidos. O meu sangue já b todo americano. Os melhores negócios que eu faço são com portugueses estúpidos... Eu preferia não saber português. Estou mesmo a tentar esquecê-lo. Mas todos os businessmen (1) com quem eu falo dizem-me que saber português E bom para o negócio aqui. Verdade, mas... chatice!... Sou português. O que é que posso fazer? Mas detesto. Odeio ser português. Não gosto que me chamem português. E nem sequer é por vergonha. É por ódio! Sobre isto, acabem-se as perguntas. Não há mais respostas. Nem gosto de falar sobre essa treta...

Ah! Ainda bem bom que sou da Terceira, e não de S. Miguel. Eu odeio os micaelenses. Na minha escola é quase tudo de S. Miguel. Nunca ouvi falar de S. Miguel antes de vir para a América. Só aqui é que soube que esses coriscos existiam, mais a Ásia e a Califórnia. Mas a Califórnia é boa! É até um lugar onde eu gostava de viver. Uma casa em Beverly Hills e ser um produtor de cinema em Hollywood! Bom... dreams (3).

Da gente de S. Miguel só gosto de ouvi-la brigar. A fala deles é engraçada. Soa mal, mas tem laracha; e adoro rir. Eles dizem as mesmas palavras, mas fazem não sei o quê dentro da boca e saem aqueles sons estranhos. Não sou eu só que não gosto deles. Meu pai também não. Ele não gosta de pretos nem de são-michaels (4)...

Mas eu faço business com eles. Não só, claro! Com americanos também. E com alunos da Brown. Muitos são meus amigos. Compram-me o jornal e outras coisas que vendo. Já disse a alguns que, se eu percebo que eles me compram só porque têm pena de mim, eu atiro-lhes o dinheiro à cara... Eu vendo livros... Ganho 10c em cada. Tenho duas contas no banco. Abri uma sozinho sem ninguém saber... Como? É segredo! A outra foi com o meu pai. Tenho quatrocentos e vinte cinco dólares e oitenta cêntimos numa, na minha, a secreta. Cento e sete e meio na outra, no Old Stone Bank...

Jogo ao dinheiro. Faço tudo o que for preciso para ganhar uns trocos. Nunca o levanto do banco. Posso levantar se quiser; mas quando for há-de ser para um negócio de peso. Um dia hei-de arranjar umas big business (5). Vou sentar-me no meu escritório como um senhor e então aquilo é que vai ser negociar só pelo telefone e computador. O dinheiro vai cair como milho. Uma casa grande. Piscina. Casa de Varão no Cape Cod e casa de Inverno em Vermont. E chicks (6) loiras ao meu lado... Vermont é bonito à brava. Tem vacas, mas não cagam na estrada como nos Açores. Têm classe.

Televisão? Vejo o «Charlie's Angels». Por causa dos mamilos da Farrah Fawcett. Lindos! Gosto do Elton John, dos Beatles e do Elvis. Morreu drogado, sabe? Não descobriu o segredo: um bocadinho para a gente se sentir bem e... senão, vão-se as business...

Na televisão, que mais? Vejo tudo. Viu aquele programa ontem em que o pai violou a filha? Grandessíssimo filho da puta. É preciso estar-se mesmo esganado... Vejo televisão até querer. Meus pais não entendem. Não sabem o que se passa. Perguntam-me e eu, ou finjo que não ouço, ou respondo umas tretas. Aquilo é demais pára eles. O que é que eles sabem do mundo? Só vão a East Providence! A minha mãe... dava-lhe um fanico. Mas eles mesmo quase nunca vêem televisão. A minha mãe só limpa. Limpa sempre. Quando acaba, começa de novo. O meu pai só trabalha. Depois da fábrica, trabalha das seis às dez a limpar dois bancos no centro da cidade. Ao fim de semana, limpa uma fábrica em Warren. Se ele pudesse viver sem dormir, arranjava ainda mais um trabalho. Para as horas que eu trabalho, quase ponho mais dinheiro no banco do que ele. Business é que dá. Ele faz serviço de escravo. Trabalho de portugee (7). Ao domingo ele não trabalha. Fica em casa. É por isso que eu detesto domingos. Ele já me bateu três vezes com uma corda. Tenho as marcas nas costas, quer ver? Ele já esteve várias vezes quase divorciado. Eu sei tudo o que se passa. Eles deviam esconder certas coisas de mim, mas não. Mas eu acho que mesmo que o fizessem, não fazia diferença nenhuma. Eu sinto tudo o que se passa com eles. Que quer? E n mesmo sangue. Parece que julgam que eu não vejo... ou não entendo. E as coisas que eu quero descobrir, é só questão de segundos. Sou um detective. Mas em casa não gosto de saber certas coisas. Às vezes chego mesmo tarde para não ver o que se passa. Se eu fosse adulto, desapegava-me de casa para fora. Quem me dera sair. Não me parece que eles gostem de mim.

A minha irmã casou cedo por causa do meu pai. Ele é teso da verga. Quem manda é ele. Quem paga as contas é a minha mãe, mas está tudo no nome dele. No banco, para a minha conta, ele assinou lá umas folhas para eu não poder fazer nada sem licença dele. Mas ele aqui ,nesta terra é cegueta... Sabe? Já me habituei a viver sem eles no meu espírito. Só à noite é que eles me chateiam. E eu não estou lá, mesmo quando estou. No verão, vão à praia e a minha mãe nem tira o vestido. E levam a comida de casa. São agarrados àquele dinheiro. Eu não. Gosto de dinheiro, mas não é como eles. Adoro gozar a vida.

Interrompi aquele turbilhão, cascata, levada, torrente, catarata. Convidei-o a ir tomar o lanche comigo.

– Porque não? Como não pago impostos, não posso é chamar-lhe um business lunch (8) e descontá-lo no fim do ano.

Fiz que não ouvi. E lá fomos até ao Spats. Já conhecia. Aquele e todos os restaurantes da Thayer Street e não só. Entrara para ver como era a coisa. Nalguns, foi posto fora por não ter idade, mas deu-lhe tempo para ver tudo. Para saber como é e poder depois contar como foi. Duma vez foi mesmo a um restaurante bem chique em Newport, onde os ricos vão de iate e os pobres vão de carro: Ele foi de iate com uns senhores do East Side.

– Os meus pais nunca foram a um restaurante. Nem seques ao McDonald's. Para eles, o hotel Biltmore deve ser um bicho da África. E eu já comi lá. À borla. Como um senhor grande... A minha mãe, além de East Providence, vai ver agora mais uma vez o caminho para Boston. Vai às ilhas pagar uma promessa ao Espírito Santo. Parece que o Espírito Santo joga pela Terceira, e o Santo Cristo por S. Miguel. Quando eu nasci estive mesmo quase a morrer e ela disse que, se eu vivesse, havia de... não sei como é que se diz em inglês... só sei em português: pagar uma promessa. Há coisas que eu só sei dizer em inglês e outras que eu só sei em português. Mas as coisas portuguesas que eu não sei dizer em inglês são... como é que se diz... sound funny, parecem tolices.

Eu não morri. Bem bom. Se fosse para ficar lá nas ilhas a empastar os pés na bosta de vaca, não me importava de ter ido para o maneta; mas, já que vim para aqui, ela que vá lá em paz fazer a promessa. Pelo sim, pelo não, sempre fico mais no seguro...

*

* *

 – Ah! O Senhor conhece o meu filho, o Adriano? Aquele diabrete que Deus me perdoe? Não sei que lhe hei-de fazer. Em má hora vim eu para esta terra.

Eu escutava calado a pintura do Adriano feito pelo pai do garoto que eu conhecera havia poucas semanas. Estava em meio de umas compras lusas no supermercado e mall (9) em simultâneo traduzido em beirão ali perto do Wickenden Street, o Family Market.

– A mãe está cozida com ele. Recusa-se a falar português e, quando fala, é para dizer que não percebemos nada. Não lhe faltamos com roupa nem comida. Trabalhamos como burros, noite e dia, e até mesmo fins-de-semana. Para nada. Não nos dá valor nenhum. Anda para aí metido em negócios a comprar e a vender coisas. Sai com estudantes daquela escola alta (10) muito grande aqui em cima e vai com eles para o diabo. Dizem-me que entra em bàrruns (11), e já tem nome na polícia. Já me disseram que ele b amigo duns rapazes que vendem drogas aí em Fox Point.

Vim eu para esta terra consertar a minha vida e estragar a do rapaz. Está perdido. Não sei o que se lhe pode fazer. Faz bísinas (12) com o diabo, se for preciso. Mesmo se eu me pusesse a andar daqui para fora, ele não ia. Dou-lhe umas cacetadas valentes de vez em quando, mas não têm dado resultado. Se calhar não têm sido bastantes. Que hei-de fazer? Estou amarrado nesta terra. De está perdido. Não quer saber de pais, nem de igreja, nem das nossas coisas, que é o que a gente tem e é nosso... 

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 Oh! You know Adriano too, hein? (13) – perguntou-me há dias no GCB o Steve, que anda no quarto ano de medicina.

Que sim, claro. Evidentemente. E o Steve:

– Que moço admirável! Esperto, inteligente, vivo. Percebe tudo. Apanha tudo. Mesmo no ar. Que visão das coisas. E do mundo! Espírito empreendedor. Lá no dormitório, toda a gente o conhece. Passa pelos corredores e entra nos quartos de todos. Fala, pergunta. Responde sem mais aquela. Tem amigos em toda a universidade. Foi passar um fim-de-semana em Vermont com o meu colega Dave e aprendeu a esquiar. Disse-me o Dave que ele se lançava como um danado pela pista abaixo... Mas bem educadinho. Desprega-se com as suas quando lhe pisam os calos mesmo se só para experimentá-lo, mas tem uma sensibilidade incrível. Tem uma perspectiva maduríssima sobre o mundo e a vida. Possui sentimentos humanos profundos de mais para a sua idade. Nós levámo-lo a Nova Iorque este fim-de-semana para assistir ao jogo do hóquei com a Columbia University. Passámos a tarde em Manhattan e ele queria ir a todo o lado. Se o deixássemos, em pouco conhecia aquilo tudo. Diz que Nova Iorque é que é uma selva boa para ele. Challenging (14). Ali E que apetece atirar-se de cabeça. E ali é que se pode crescer e montar um negócio do tamanho dos arranha-céus.

Eu conheci-o a primeira vez quando trabalhava part-time na biblioteca de Ciências. O guarda de segurança veio dizer-nos que um garoto tinha entrado no hall (15) e desaparecido entre a estudantada num dos elevadores. Fomos topá-lo no 14º andar admirando a paisagem. Quando o guarda lhe disse que ele não podia entrar, respondeu que sabia disso muito bem e fora mesmo por essa razão que lhe cortara as voltas. Agora já não lhe importava a proibição pois já sabia como era a vista lá de cima e não lhe criava mais macacos na cabeça quando passasse na rua.

Espremeu-se num assento de trás de um dos autocarros da equipa de football da Brown para ir a Cambridge ver o jogo com o Harvard. Não tem corpo para jogar football, mas não gosta de soccer. Diz que é o jogo dos greenhorns (16) e dos portugee (7). Está na fase da rejeição da sua cultura, mas pode sair dali um grande homem – porque não? –, um grande empreendedor, como ele aliás sonha. É um fenómeno. É brilhante o rapaz. Cheio de qualidades. Um portento. Pelo caminho que segue, tem um futuro garantido. Um grande futuro. Um grande Adriano vai ser ele, que já é um little big man (17)

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 – Conhece o Adriano? Um rapazinho da Terceira aqui da minha paróquia e que anda muito aí pela universidade e que vende jornais depois da escola?

Que sim. Mas ao que vinha aquilo, senhor padre?

– Sabe, várias pessoas me têm falado nesse rapazinho a ver se se pode fazer alguma coisa. Pelo que me dizem, não creio ser possível, porque o rapaz já deve andar completamente atolado no vício. Com tanta má companhia... Dizem que vai com estudantes para as montanhas fazer ski, para Nova Iorque, aos concertos de jazz para Newport e aos dessa nojeira que eles chamam punk ao Civic Center. Dizem que fuma marijuana e que faz dinheiro para comprar drogas vendendo coisas por aí. Não quer saber de igreja e só me apareceu uma vez na reitoria a pedir-me autorização para vender postais de boas-festas num baile no hall (15) da igreja.

Dizem que frequenta bares (e a polícia não diz nada!) e atira frases indecentes para as moças que passam na rua. Na procissão da Senhora da Saúde pôs-se no passeio a fazer pouco das criancinhas da comunhão e atravessou o cortejo para tirar uma fotografia a um rapazinho vestido de S. João Baptista, para andar mostrando-a agora por todos os lados e a chamar mariquinhas ao pequeno.

O pai não se importa e a mãe não sabe nada do que se passa. A Confraria da Senhora do Rosário estava disposta a pagar uma percentagem das despesas se ele fosse para uma casa de correcção. Ele meteu-se muito com a canalha americana e agora está como eles ou pior. O senhor não verá maneira de falar com alguém aí que tenha mão nele e o possa chamar à responsabilidade? Ele tem muita influência sobre muitos rapazes mesmo mais velhos do que ele e alguns ao sábado já não vêm à catequese por sua causa. E ainda por cima criou com eles uma rede de vendedores sob a sua direcção. Tem a alma vendida ao diabo já tão novo.  

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 – Do you know Adriano? He is Portuguese! What a kid! (18) – dizia-me a semana passada o director do departamento de distribuição do Providence Journal.

Se eu era português, tinha que conhecê-lo. Não era nada como as outras crianças portuguesas, passivas e tímidas. Era atiradiço. Tinha a agressividade que se requer dum homem de negócios. É corajoso. Não tem complexos. Tem presença de espírito. Sentido das responsabilidades. É hard-worker (19). Trabalha no duro como um bom português, mas tem a garra, o espirito de agressividade que faltam aos portugueses. E é rijo na competição com os outros. Ganha sempre todos os prémios para o melhor vendedor de jornais. Entrou já em contacto com várias companhias que anunciam a pedir vendedores. Recebe a mercadoria pelo correio e dá conta do recado. Já recebeu mesmo um prémio para o melhor revendedor da área. Arranjou um P.O.Box (20) no correio com o seu nome e dizem-me que está sempre a chegar lá mercadoria. Se Portugal tivesse uns quantos daqueles, não era preciso emigrar tanta gente para aqui. A vocês falta é daquela têmpera. Mais daqui por uns anos, se ele quiser, tem portas abertas na companhia. Não no jornal apenas. Com aquele talento e uns estudos, ele vai longe. Ainda acaba à frente duma multinacional. 

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 – Conhece aquilo? O Adriano? O demónio em pessoa – comentava a senhora Olinda Ferreira pondo as mãos e elevando os olhos ao céu enquanto o senhor Machado lhe empacotava uns bolos de massa sovada à moda das ilhas e o Adriano entrara e saíra de repelão a deixar um molho de jornais. A senhora Olinda presenciou o brevíssimo hi! (21) que os dois trocáramos nos escassos segundos que o Adriano demorou na Machado's Portuguese Sweet Bread (22).

– O que aquilo é, louvado seja Deus! E os pais sabem, mas não se importam. Diz que até tem no banco uma conta à ordem e que o pai só pode levantar dinheiro com autorização dele. Droga-se. Sai de casa e só chega tarde, se chega. Já anda com mulheres e não quer saber da religião. Diz que os portugueses são grinanos (16) e dâme (23), mas ele parece que não repara que também é português. De carne e osso como a gente todos. Feito lá todinho, à conta de Deus. Ou do diabo, salvo seja!, que aquilo se calhar já tem contas com ele, credo! O que eu ouço dizer que ele faz, Santo Deus. É uma vergonha até para a gente portuguesa, que sempre temos sido bem ensinados e respeitadores dos costumes desta nação. O que é que os americanos hão-de dizer? Que os portugueses não educam os filhos, que lhes deixam fazer o que querem. Fica feio e 6 um mau nome que dá à nossa comunidade portuguesa... 

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 – Oh! Do you know Adriano? I guess everybody knows him (24) – comentou um dia a professora entre uns goles de café depois de uma reunião já não sei para quê. Ele é muito inteligente. Direi talvez melhor: esperto, mas não muito aplicado. Tem sempre graça no que diz e faz. Algumas são mesmo incríveis. Há dias pôs-se a gozar com uma mocita que não sabia português. Ele chamava-lhe my girl e depois virava-se para os amigos que sabem português e troçava: my dear girl (25), minha querida gal...inha. Doutra vez, ao ouvir uma professora contar para outra a propósito de um cavalheiro que nunca lhe fora apresentada – I was never introduced (26), – meteu-se na conversa e insinuou com atrevimento: «A senhora nunca foi introduzida?»

Deram-lhe um raspanete, mas depois riram-se, a partir, na sala dos professores.

Na minha aula uma vez andava ele sempre a olhar para trás para as moças. Olha para a frente, para o quadro, Adriano, disse-lhe eu. E ele logo: Atrás também tem quadro e a paisagem é mais bonita!

Pena ele não ser um pouquinho mais estudioso. Não b mau rapaz. Parece ter problemas em casa mas nunca se abre sobre isso. Só me recordo de falar do pai uma vez. Apanhou numa sala dum professor cabo-verdiano um livro de Manuel Ferreira – por acaso também o nome do pai – e começou a mostrá-lo aos colegas como sendo uma obra que o pai escrevera. Quando todos acreditaram, desatou uma gargalhada e disse só: o meu pai já morreu.

Não gosta de guardar trabalhos para casa. Fá-los nos recreios. Parece que os pais o obrigam a trabalhar para ele ajudar-lhes a pagar a casa. Como fazem tantos imigrantes, aliás. Só é pena se o obrigarem a deixar a escola aos dezasseis anos.

De resto, E um rapaz como os outros. Vê «Soap» tarde da noite na televisão e capta tudo. Sabe que um dos personagens é homossexual, o outro é travesti e que o Danny e a Hellen tiveram que casar à pressa, mas qual é o moço da idade dele hoje que não sabe isso tudo e mais? Tem uns olhos giros à brava. Não ofende quando é atrevido. Apesar de às vezes ser mesmo atrevido. Mas tem uma doçura, talvez aquela doçura portuguesa que as ilhas deixam nas pessoas. E um pequenino vulcão saído daquela paz, mas de fogo que não queima e, se queima, não dói. I love him (27)

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 – Ah! Conhece o Adriano?... Sabe? Ele é...


NOTAS:

(1) homem de negócios
(2) à homem de negócios
(3) sonhos
(4) os «são-miguéis» (micaelenses)
(5) negócios grandes
(6) Moças
(7) depreciativo para «português»
(8) almoço por conta da companhia (descontável nos impostos)
(9) centro comercial
(10) liceu. Para alguns imigrantes, como aqui, também a universidade
(11) de bar-room, bar
(12) de business, negócios
(13) Você também conhece o Adriano?
(14) que provoca desafio
(15) salão
(16) cornos verdes – depreciativo para «imigrante recente»
(17) pequeno grande homem
(18) Conhece o Adriano? Ele é português! Que moço!
(19) trabalhador esforçado
(20) caixa postal
(21) olá
(22) massa sovada
(23) de dumb, estúpido
(24) Creio que toda a gente o conhece
(25) minha querida
(26) nunca fui apresentada
(27) Eu adoro-o

(pp. 171-181. Reprodução autorizada pelo autor)

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