J. Rentes de Carvalho

O JOALHEIRO

(contos)

A PRISÃO NOVA

Nesta história verdadeira a cidadezinha de L., no norte, tem tudo o que se espera que uma cidadezinha de romance tenha: uma praça da República, onde nas noites quentes se passeia para trás e para diante; um rio sereno; ao longo desse rio um grande jardim, quase um parque; uma praia imensa; um monte com um lindo panorama; uma paisagem onde o verde das árvores e o azul das águas se combinam em harmonia.

Em 47, talvez 48, L. tinha-se enriquecido com dois estabelecimentos – o liceu e a prisão – edifícios cujas linhas rectangulares e severas destoavam singularmente com a arquitectura dos palácios Renascença que lá havia, as janelas de estilo manuelino e o casario do século passado enfeitado de varandas frágeis.

No liceu, que separava estritamente os sexos, permitindo embora que por cima de uma cerca os rapazes espreitassem os jogos das raparigas, o professor de Canto Coral fundara uma 'comissão de festas e obras de caridade" que, talvez por ser mista, possuía um excessivo número de membros. Festas só havia duas a organizar: a do 1º de Dezembro e a do fim do ano lectivo. A caridade, porém, era semanal, tinha horário, programa, incluía aos sábados a entrega de víveres a uns quantos pobres e, a terminar, a visita à prisão.

Na prisão, todavia, só um preso tinha direito a ser por nós visitado e o extraordinário é que esse preso, o senhor Almeida, nos vinha esperar ao portão. Ele próprio abria e fechava os corredores por onde passávamos, sorridente, caminhando adiante para mostrar o caminho, até que por fim chegávamos ao seu quarto. Não à sua cela, mas ao seu quarto, um aposento de paredes brancas, sóbrio, onde a luz entrava por duas janelas enormes.

– Na prisão todas as janelas têm de ter grades, mesmo as do gabinete do director – explicava ele, quando alguém aludia aos varões.

O senhor Almeida tinha o chá à nossa espera, as raparigas desembrulhavam os pastéis, nós púnhamos sobre a mesa os livros e as revistas, alguns jornais. A tarde passava depressa, apro-veitando-se a ocasião para um flirt que fora dali seria proibido, ou então escutando o senhor Almeida que nos contava a história de L., cidade que ele conhecia na ponta dos dedos. Não somente por lá ter nascido, mas porque a sua família, outrora poderosa e rica, tratara em pé de igualdade com os Távoras e os Braganças. Era o seu hobby.

– Ainda ontem – dizia ele – ao passar atrás da estação reparei que no palacete dos condes de F. andam a renovar as janelas e já limparam o brasão.

O senhor Almeida era realmente um preso fora do comum que, além de trazer num molho que lhe pendia do cinto as chaves da prisão, adregávamos encontrar passeando na rua. Discreto, é certo. Nunca entrando nos cafés. Misterioso nos seus vaivéns. Um preso em "liberdade", o que nos levou a pensar que a nossa visita pontual dos sábados talvez fosse para ele um incómodo, que assim o obrigávamos a esperar na prisão para desempenhar o seu papel de "preso".

Quando lho perguntámos, garantiu que não: – Tenho liberdades, isso sim. Felizmente. As pessoas têm sido muito boas comigo. O senhor doutor juiz, o senhor director, o senhor presidente da Câmara. Toda a gente. A falar verdade, toda a gente. Sem excepção. A senhora marquesa de T., os filhos do senhor barão. Todos, Muito gentis, muito amigos.

Bebíamos o chá, comíamos os pastéis, e antes de se fazer escuro regressávamos pelos corredores que ele abria e fechava, dando aqui e além com a sombra furtiva dos guardas que o cumprimentavam, descobrindo por vezes atrás das grades um preso verdadeiro.

O senhor Almeida finalmente abria o portão que dava para a rua e depois de nos cumprimentar com gravidade esperava que desaparecêssemos na esquina, fazendo um último aceno.

O seu caso tinha acontecido três anos antes, mas a verdadeira desgraça começara uma noite, durante a Guerra Mundial, num baile que o marquês de T. dera para comemorar a entrada dos alemães em Paris e o retorno da civilização.

O senhor Almeida, nessa altura rapaz de vinte e poucos anos, único amparo da mãe, pobre, mas de excelente parentesco, tinha sido pessoalmente convidado pelo marquês que, bêbedo como sempre, lhe gritara que tratasse de se casar, raparigas não faltavam, que no baile não ficasse pelos cantos, bisonho e macambúzio, como era o seu mau costume.

– Atira-te, homem! Dá-lhes beliscões no cu, que é do que elas gostam!

Ele gaguejou que sim e, corando, saiu às arrecuas, menos por cortesia do que a recear que o marquês, dado a violências inesperadas, lhe atirasse o copo à cabeça.

O baile deixou fama. Anos depois tinha-se tornado lenda, contavam que fora o último com grandeza, verdadeiro marco a assinalar o fim de uma época em que ainda havia gente capaz de saber como se gastava dinheiro. Só a orquestra, contratada em Espanha, custara mais de cem contos. De champanhe tinham sido vinte contos. De comidas outros vinte. E assim por diante.

Nesse mesmo baile o filho do barão de S. tinha-se imortalizado de ridículo, ao declarar à filha de um "brasileiro" dono de fábricas: "Manuela, os seus olhos frutificam-me." E a filha do doutor G., médico estimado, descoberta a beijar sofregamente a cozinheira do marquês, fora remetida, primeiro para o hospital, a curar-se das pancadas do pai, e na semana seguinte para um convento de freiras, donde nunca mais quisera sair.

O senhor Almeida, conhecido então por Bebé Almeida, seguira o conselho do marquês e, aproveitando um tango, declarara o seu amor a uma rapariga de rosto meigo, vagamente prima da família dos S.

O namoro foi muito calmo, muito feliz, visto com bons olhos por toda a gente. Algumas noites de Verão passeavam os dois na praça da República. Ou no jardim à beira-rio, evitando o escuro dos arbustos, onde às vezes se ouviam risinhos e sussurros. Iam modestamente à praia, aos domingos, acompanhados por uma criada que levava o cesto da merenda e tinha ordens para não se afastar demasiado deles. Já noivos, subiram uma tarde o monte para apreciar o panorama, mas perderam-se por entre as mimosas e aí lhes aconteceu o primeiro beijo, pelo menos o primeiro que, como eles depois confessou, o tinha deixado com o corpo todo a tremer.

O director do banco aumentou-lhe o ordenado, atendendo "à sua nova situação, à sua conduta exemplar, e porque sempre o considerei um jovem digno do melhor futuro."

Casaram-se. Um lindo casamento com a noiva de branco e ramo de laranjeira, a igreja a abarrotar de gente, o marquês de padrinho, prendas a rodo, um jantar de cem convivas.

Foram felizes. No ano seguinte nasceu-lhes uma filha. Passeavam de mãos dadas e tinha-se notado a maneira terna como iam de braço dado à missa do domingo. No emprego fora promovido a chefe de secção. Na "Assembleia Arte e Harmonia" elegeram-no vice-presidente. Numa lotaria de Santo António saíram-lhe dez contos.

Começaram nessa altura os boatos, mas ninguém queria acreditar. Quando alguém dizia: "Vocês já ouviram que a mulher do Bebé parece que...", os outros abanavam a cabeça em negações furiosas, que era impossível, o que as más-línguas precisavam era que se lhes cozesse a boca com fio de saco.

O desenrolar do cenário foi tradicional: uma tarde, ao regressar ao trabalho depois do almoço, o senhor Almeida encontrou sobre a escrivaninha um bilhete anónimo. Nessa mesma noite, em vez de jantar na Galinha do Mar e ir depois para a Assembleia, como era seu hábito às quartas-feiras, escondeu-se num vão, pôde ver com os próprios olhos que o tenente Norberto lhe entrava em casa por volta das nove horas, para de lá sair quase à meia-noite, embrulhado numa capa, voltando-se para responder com um gesto apressado ao beijo que ela lhe soprava dentre os cortinados.

No julgamento o senhor Almeida tinha contado a sua raiva, o sentimento de se sentir traído, a agonia de não saber o que fazer, e no relato dos jornais da época lê-se que na sala do tribunal, nesse momento, a maioria dos olhos se marejou de lágrimas. Finalmente, com as poucas forças que lhe restavam, conseguira entrar em casa, ficando uma semana entre a vida e a morte, devorado por uma febre que não respondia aos medicamentos, nem à penicilina, que era então um remédio milagroso.

Porém, nem mesmo quando o juiz insistiu mansamente, foi capaz de explicar donde lhe tinha vindo aquela ideia.

– De algum livro?

– Não sei dizer, senhor doutor juiz, saiba Vossa Excelência que nunca fui dado a más leituras. Só os nossos clássicos, o nosso Eça.

O advogado de acusação interpôs-se para comentar que nos romances de Eça havia suficiente imoralidade, vergonhas, até incestos, mas o juiz obrigou-o a calar-se.

Às quartas-feiras o senhor Almeida deixou de ir jantar à Galinha do Mar, e se aparecia na Assembleia era de fugida, mas todas as manhãs, com uma regularidade de lunático "procedia à cópula com a adúltera" – expressão literal do advogado que os jornais imprimiram com relevo – após o que deixava na mesinha de cabeceira uma nota de vinte escudos, "o preço que se paga às meretrizes."

Maria Emília chorou, suplicou-lhe que explicasse porque a tratava assim. No terceiro dia "tinha recusado proceder à cópula com o acusado, tendo este, segundo consta dos autos, recorrido à violência num momento de desvairo."

Foi a vez dela adoecer, incapaz de suportar a tortura, quase louca com as notas que se amontoavam sobre a mesinha de cabeceira e que ele exigia que ali ficassem.

Na cidade sabia-se, murmurava-se com pena quando ele passava, tristonho e sem cumprimentar ninguém, que era uma vergonha que uma mulher pudesse manchar a honra de um rapaz tão querido de todos, modelo de bondade. Os colegas, discretamente, poupavam-no no trabalho, evitavam que diante dele houvesse zangas e atritos. A filha tinha sido mandada para casa da avó, e a criada, cúmplice no adultério, fora despedida no dia seguinte.

Maria Emília não se levantava da cama, ou então passava dias inteiros atrás da janela, olhando esgazeada para a rua, o que levou o doutor Pacheco, "como médico e como amigo", a exigir do senhor Almeida que fosse feito um diagnóstico.

A deposição do doutor Pacheco no tribunal foi outro momento de grande emoção. Homem de palavra fácil, ele soube descrever o interior do lar onde a tragédia assentara, o desalinho, o desleixo, o ambiente do quarto, as notas sobre a mesinha, a histeria com que a doente se apegara a ele. Tinha receitado um calmante, mas como Bebé Almeida, apático parecia não compreender, ele próprio correra à farmácia a buscá-lo. Nessa mesma noite telefonou para o hospital a pedir que reservassem uma cama.

Aos soluços, a voz cortada pela emoção, o acusado caíra de joelhos diante da mesa do juiz, jurando que não sabia, não se lembrava, que a sua única ideia fora libertá-la do sofrimento e da desonra.

Na sala ouviu-se um irmão da falecida gritar "Assassino!", mas logo os guardas correram a segurá-lo, obrigando-o a sair.

– Não me recordo, senhor doutor juiz. Sei que dizem que a sufoquei.

– Corrija, se faz favor! Que a estrangulei! – berrou-lhe o advogado da família da morta.

Condenaram-no a dez anos com atenuantes, mas pareceu um escândalo, uma injustiça. O próprio juiz, primo do marquês de T., arranjou que o internassem no hospital, porque seria uma vergonha mandá-lo para a cadeia velha, um prédio medieval onde nem havia celas e os presos viviam em promiscuidade. A cadeia nova estava quase pronta, podia-se esperar. Aliás era preciso rever o processo, o advogado que apelasse sem demora da sentença, se fosse preciso ia-se até ao Supremo.

E assim, pouco a pouco, criara-se uma situação particular: ainda a cadeia nova não funcionava e já o senhor Almeida lá ia dar uma ajuda ao pessoal, pondo a administração em dia, passando autos a limpo, encarregando-se da tarefa monótona da contabilidade. Todas as noites recolhia ao hospital e todas as manhãs retornava à prisão. O hábito ficou. Quando com discursos e festa se inaugurou o prédio novo, o próprio director achou que o senhor Almeida não merecia a cela, mas um quarto. E como já tinha as chaves da cadeia quando lá ainda não havia presos, que as continuasse a ter, que entrasse e saísse quando quisesse, pois tinha dado mostras de não abusar.



LORD WILLIAM

Lord William B. chegou a Lisboa na Primavera de 1948, vindo de Itália num dos primeiros paquetes que depois da guerra reiniciaram a ligação entre Génova e o Rio de Janeiro.

A sua bagagem causou pasmo, foi motivo de conversa para os estivadores que a tiraram do porão e os mirones que a viram passar. É certo que lord William, como toda a gente, viajava com malas. Apenas muitas mais. Mas às malas seguiram-se caixas, caixotes, grades e arcas, baús, embalagens do tamanho de um quarto, tudo isso formando no cais um montão imponente.

Encheram-se três vagões. Com o que ainda sobrava de miudezas carregou-se o camião de um homem que julgou que teria de levá-las ao Estoril – dois passos – e se enfureceu ao descobrir que a viagem era para os confins do Douro, naquele tempo dois dias para a ida, se as estradas estivessem boas, e outros tantos de volta.

O desembarque e o despacho tinham sido rápidos e, pelo menos na aparência, sem encrencas na alfândega, a ponto que no entreposto se imaginou, e depois se afirmou, que o lord era primo direito do rei da Inglaterra.

Viram-no apertar a mão do comandante antes de descer o portaló, seguido por um sujeito magro, de bengalinha, e dois rapazes que entraram com ele num carro preto com chofer, enquanto

os guardas automaticamente se punham em sentido e lhe faziam continência.

O da bengalinha ficou para tratar do carregamento dos vagões, que se fez nessa mesma tarde. Foi ele também que, com um maço de notas como o homem nunca vira, calou as pragas do dono do camião.

Semanas depois lord William instalou-se no solar herdado de um tio e em três anos aquilo estava transformado em palácio, o pessoal da casa passou a andar de uniforme branco, os vinhedos da quinta ganharam fama.

Nesses três anos trabalhou lá um exército de pedreiros, carpinteiros, estucadores, electricistas, artistas que tinham deixado tudo num brinco. Contava-se, mas ninguém tinha visto, que num salão inteiro só havia instrumentos de música; que os dois andares e a torre estavam agora com mais de setenta divisões; que dos quartos de dormir do rés-do-chão, cada um com sua lareira de granito polido e tapetes de lã felpuda, bastava abrir uma porta e se descia logo para a piscina de mármore.

Havia quem tivesse espreitado de longe, mas a piscina, infelizmente, ficava escondida pelas três alas do edifício e um renque de árvores; apenas se descortinavam lá de vez em quando uns vultos a nadar, ouviam-se gritos de alegria e risos quando o vento estava de feição.

A aldeia alvoroçara-se com a chegada do lord. Diziam-no mais rico que o falecido tio, menos sovina e, além de primo do rei da Inglaterra, parente chegado ou amigo de mais uma dúzia de soberanos e duques.

Na generosidade ultrapassou largamente as esperanças, mesmo as dos necessitados que, como é sabido, são sempre desmesuradas. Deu para a igreja, deu para a escola, os bombeiros, a Misericórdia da vila, a sopa dos pobres. Passou a custear a procissão anual e comprou mais andores. Ofereceu um altar novo ao Menino Jesus: dezanove contos daquele tempo. Os doentes e aleijados nem precisavam de pedir: o mordomo, o sujeito da bengalinha, aparecia e desembolsava para a farmácia, as cadeiras de rodas, a visita do médico. Era preciso um especialista? Vinha o especialista. O clube de futebol não tinha campo? Ele deu o terreno, pagou a terraplanagem, mandou instalar um balneário, encomendou a banda de Trancoso para a inauguração, e ainda por cima pagou a merenda e o vinho a todos.

Adoravam-no. Quando se mostrava na aldeia, raramente, ou ao vê-lo passar no carro a caminho de Lisboa, do estrangeiro, sempre com os dois mocetões loiros, as pessoas faziam-lhe vénia, os chapéus eram tirados com respeito, algumas mulheres e as crianças acenavam-lhe com a mesma maneira solene que tinham para o bispo ou para o andor da padroeira, Nossa Senhora da Boa Hora.

Claro que não era perfeito, nem toda a gente lhe ia com a cara. Nunca falava, embora se dissesse que conhecia perfeitamente a língua; e das vezes que alguém, emocionado de reconhecimento, lhe quis agarrar as mãos para beijá-las, ele logo as tinha retirado e escondido, soprando Ós!, muito corado.

Também não era bom para empenhos, nem para empregos. Na casa só trabalhavam estrangeiros e gente de fora; aos da terra dava o cavar, a vindima, algumas jornas, mas como o feitor tinha ordens para que a vez corresse por todos e a gente era muita, quem cavava não vindimava, os que ganhavam no Verão só voltavam a ganhar em Dezembro.

A maioria não achava bem. Que tivesse as suas preferências por este ou aquele, ainda compreenderiam. Se fosse forreta como o tio, um inglês ossudo que andava sempre com um xaile de mulher pelos ombros e pagava menos que os outros proprietários, também lhes pareceria dentro da ordem normal das coisas. Agora esse sistema novo – e o padre a dizer que era justo! – não agradava a ninguém: nem aos que trabalhavam, nem aos que tinham de esperar.

Resmungou-se, mas ele deu o campo de futebol e os ânimos tornaram a acalmar, a coisa esmoreceu. Tempos depois, quando a tia Ludovina morreu por não haver ambulância que a levasse ao Porto, ele mal o soube logo mandou comprar uma, os que queriam fazer exigências não acharam quem os apoiasse. Finalmente tinham-se conformado.

Por vezes ficava na quinta o ano inteiro, ou então um mês, três meses. Viam passar o carro, mas a bem dizer ninguém sabia se naquela hora ia de viagem ou a passeio, se era ida ou retorno. A generosidade é que continuava a mesma, estivesse ele ou não. Bastava o padre falar ao mordomo, este investigava e no seu português mascavado de italiano dizia "Si, si", os pobres eram ajudados, os doentes recebiam o remédio, o "Bota e Bebe" da loja fornecia os comestíveis. Coisas maiores era preciso esperar que a "Eccellenza" estivesse.

O Manuel tinha voltado da tropa com a ideia de que não haveria de demorar muito antes de juntar o bastante para a passagem e que em dois anos, no máximo, estava no Brasil. Pagassem-lhe o justo e para ele não havia horas, peso ou ladeira. Por ser assim trabalhador contratavam-no até de longe, escolhia os patrões que queria, o Simão não se opôs quando ele lhe começou a namorar a filha mais velha. Nunca se tinha sujeitado a esperar vez para trabalhar na quinta do lord, nem mesmo depois do feitor, na taberna, lhe ter acenado com a promessa de que se fosse respeitador e obediente lhe poderia suceder no cargo.

O Manuel encolheu os ombros e sorriu de maneira tão escarninha que o feitor, nessa noite, disse à mulher que não compreendia como um rapaz que pouco mais tinha que a camisa do corpo, se pudesse dar ao luxo de proceder assim.

Na taberna, os que tinham ouvido também o acharam tolo, porque o lugar de feitor na quinta, além de casa de graça, ordenado, um porco e uma pipa de vinho por ano, ainda dava muitos benefícios.

– Tem juízo, rapaz – disse alguém – o teu Brasil é aqui.

– Não trabalho p'ra panascas – rematou o Manuel.

Houve um silêncio, depois as conversas continuaram sobre outra coisa, mas com ele ninguém mais falou, só repararam que ao sair da tasca ia tão tocado que o Pinto e o Camorro lhe deram ajuda até à porta de casa.

Sabia-se, mas nunca ninguém se tinha atrevido a abrir a boca a não ser em segredo: no palácio passavam-se coisas que era melhor esquecer. O pessoal, fora o mordomo, era tudo rapaziada nova e bonita, pareciam escolhidos a dedo. Mulher não trabalhava lá nenhuma, nem mesmo na cozinha, e contava-se à boca pequena que a raiva do inglês pelas fêmeas era tão grande, que ele próprio tinha matado a cadela perdigueira que o povo lhe oferecera.

O dito do Manuel naquela noite caiu mal na aldeia e a partir desse momento só as circunstâncias e o lugar da sua morte são indiscutíveis. O resto perde-se em "contam por aí", "diz-se", "parece", mas testemunha que faça fé não há nenhuma e por isso se aceita a versão que segue.

Uma noite foi o Manuel agarrado por desconhecidos que o levaram para uma sala do palácio onde o lord estava à espera e lhe perguntou se era verdade o que contavam, que ele tinha dito que não trabalhava para panascas. É possível que por acanhamento e susto não tenha dado resposta, mas "contam por aí", "fala-se", que lhe tiraram a roupa à força, o deitaram ao chão, prenderam com cordas, e todos os matulões da quinta, uns a seguir aos outros, o tinham enrabado tantas vezes que ele perdeu os sentidos.

O próprio lord deu-lhe depois um copo de água, disse-lhe que se podia ir embora e não se esquecesse de contar na aldeia que também era roto.

Na semana seguinte desapareceu. Segunda-feira viram-no voltar na camioneta da carreira. Repararam que mancava e tinha os olhos avermelhados. "Diz-se", "parece", que tinha estado no hospital da vila, no posto da Guarda, no tribunal, para apresentar queixa, que chegara mesmo a falar com um advogado, a ver se lhe queria tratar do caso e este lhe respondera como os outros: "Não me meto nisso."

Dois dias depois, uns homens que andavam a trabalhar à beira-rio, viram-no lá sentado mais de uma hora. No sábado de madrugada encontraram-no enforcado no portão da quinta e a aldeia inteira correu a vê-lo, mas o mordomo deu ordens para que lhe deitassem um lençol por cima até as autoridades chegarem. A "Eccellenza" tinha saído de viagem na semana anterior e quando voltou no Outono estava tudo esquecido.


J. Rentes de Carvalho, O Joalheiro, Lisboa, Escritor, 1998 (reprodução autorizada pelo autor)

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