Padre Manuel Bernardes

Padre Manuel Bernardes

O Padre Manuel Bernardes (1644-1710) professou em 1674 na Congregação do Oratório de S. Filipe de Néri. Escreveu diversos tratados de espiritualidade e vários guias morais, como Exercícios Espirituais (1686), Luz e Calor (1696) e Pão Partido em Pequeninos (1696); dois volumes de Sermões e Práticas (1711) e a Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas em cinco volumes publicados entre 1706 e 1728. Esta última obra é uma colecção de «ditos bons e sentenciosos de varões ilustres» que apresenta por ordem alfabética o comentário a um pecado ou virtude. O autor não chegou a ir além da letra J e da virtude «Justiça», pois falecera entretanto.



NOVA FLORESTA OU SILVA DE VÁRIOS APOTEGMAS


TRÊS PÁTRIAS

Qualquer homem tem três pátrias: uma da origem, outra da natureza e outra do direito. A pátria da origem é aquela em que os nossos maiores foram e viveram; a da natureza é a terra ou lugar onde cada um nasce; a do direito é onde cada um é naturalizado pelas leis ou príncipes, e onde serve, e merece, e costuma habitar: neste sentido disse Túlio de Catão que tivera a Túsculo por pátria da natureza, mas a Roma por pátria do direito.

Quanto à pátria da origem, todos os homens somos do Céu, porque ali está, vive e reina o nosso pai celestial, que vai criando as almas e unindo-as a nossos corpos.

Quanto à segunda pátria, falando geralmente, todos homens somos da Terra; por isso dela falamos tão frequentemente. Neste sentido todos os filhos de Adão somos compatriotas, sem diferença do rei ao rústico. Neste sentido, também, os que desejavam negar as imperfeições do amor a tal ou a tal terra em particular, ou por arrogância e fasto filosófico ou por mortificação religiosa e santa, disseram que todo o mundo era pátria sua. Do primeiro temos exemplo em Sócrates, que, perguntado donde era, respondeu:

– Do mundo: porque de todo o mundo sou cidadão e habitador.

E em Séneca, que disse:

– Não encerramos a grandeza do ânimo nos muros de uma cidade, antes o deixamos livre para o comércio de todo o mundo, porque esta é a pátria que professamos, para darmos campo mais largo à virtude.

Do segundo temos exemplo em S. Basílio, que, ameaçado com desterro pelo prefeito do imperador Valente, respondeu que não conhecia desterro quem não estava adicto a certos lugares.

Semelhante resposta foi a do v. p. frei António das Chagas, que, avisado por certa pessoa não falasse tão acremente nos sermões da morte, porque se arriscava a ser desterrado, disse mui seguramente:

– Desterrar-me? Para onde? Quem não tem aqui pátria não pode ter daqui desterro.

Mas, além desta pátria do lugar comum, há outra do particular, que é a terra onde cada um nasceu. Quanto esta é mais pequena, tanto une mais os seus filhos, de sorte que parece o mesmo ser compatriotas que parentes, especialmente quando se acham fora dela. E parece-se este amor com a virtude da erva tápsia, da qual escreve Teofrasto que, metida na panela com a carne a cozer, de tal modo conglutina os pedaços dela que, para os tirar, é necessário quebrá-la. Quanto, porém, a pátria é terra mais populosa, rica e ilustre, tanto costuma ser matéria de vaidade aos que põem a sua glória fora de si. Assim se esvaneciam os Arianos da sua Constantinopla, lançando em rosto a S. Gregório Nazianzeno a sua terrinha, que nem muros a cingiam. Porém o santo doutor lhes respondeu que, se isso era culpa nele, também o seria no golfinho não haver nascido na terra, e no boi não haver nascido mo mar. E, pelo contrário, se neles era glória, também o seria para os jumentos da cidade assoberbarem os do campo.

Quanto à terceira pátria, é esta o lugar onde estamos naturalizados, por mercê da república, ou rescrito dos príncipes, ou habitação continua, de modo que Sto. António se chama de Pádua, não sendo senão de Lisboa, e S. Nicolau de Tolentino, sendo de Saint-Angel. Tomando, porém, isto espiritualmente, onde cada um habita com o espírito e desejo, daí é natural. Por isso, Cristo disse a seus adversários que eles eram cá de baixo: Vos deorsum estis... vos de mundo hoc estis. E, pelo contrário, a seus discípulos, que eles não eram deste mundo: De mundo non estis.

PLEITO ENTRE FRADES E FORMIGAS

Foi o caso (conforme narrou um sacerdote da mesma religião e província) que naquela capitania as formigas, que são muitas, e mui grandes e daninhas, para estenderem o seu reino subterrâneo e ensancharem os seus celeiros, de tal sorte minaram a despensa dos frades, afastando a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava próxima ruína. E, acrescentando delito a delito, furtavam a farinha de pau, que ali estava guardada para quotidiano abasto da comunidade. Como as turmas do inimigo eram tão bastas e incansáveis a toda a hora do dia e da noite, vieram os religiosos a padecer falta e a buscar-lhe o remédio: e, não aproveitando alguns do que fizeram experiência, porque, enfim, a concórdia na multidão a torna insuperável, ultimamente, por instinto superior (ao que se pode crer), saiu um religioso com este arbítrio: que eles, revezando-se daquele espírito de humildade e simplicidade com que seu seráfico patriarca a todas as criaturas chamava irmãs (irmão sol, irmão lobo, irmã andorinha, etc.), pusessem demanda àquelas irmãs formigas, perante o tribunal da Divina Providência, e sinalassem procuradores, assim por parte deles, autores, como delas, rés; e o seu prelado fosse o juiz, que, em nome da Suprema Equidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa.

Agradou a traça, e isto assim disposto, deu o procurador dos padres piedosos libelo contra as formigas; contestada por parte delas a demanda, veio articulando que eles, autores, conformando-se com seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho seu pelas roças daquele país, e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao Evangelho, e por isso aborrecido de seu padre S. Francisco, não faziam mais que roubá-los, e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a. E, portanto, dessem razão de si, ou, quando não, fossem todas mortas com algum ar pestilente ou afogadas com alguma inundação ou, pelo menos, exterminadas para sempre daquele distrito.

A isto veio contrariando o procurador daquele negro e miúdo povo, e alegou, por sua parte, fielmente:

«Em primeiro lugar: que elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor lhes ensinara;

Item: que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos de virtudes que lhes mandara, a saber: de prudência, acautelando os futuros e guardando para o tempo da necessidade; de diligência, ajuntando nesta vida merecimentos para a vida eterna; de caridade ajudando umas às outras, quando a carga é maior que as forças; e também de religião e piedade, dando sepultura aos mortos da sua espécie...;

Item: que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o deles, autores, em ajuntar as esmolas, porque a carga muitas vezes era maior que o corpo, e o ânimo que as forças;

Item: que, suposto que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas, e que a vantagem do seu grau racional harto se descontava e batia com haverem ofendido ao Criador, não observando as regras da razão, como elas observavam as da natureza, pelo que se faziam indignos de que criatura alguma os servisse e acomodasse, pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de Deus por tantas vias, do que nelas furtarem sua farinha;

Item: que elas estavam de posse daquele sítio antes deles, autores, fundarem, e, portanto, não deviam ser dele esbulhadas, e da força que se lhes fizesse apelariam para a Coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos como os grandes e a cada espécie deputou seu anjo conservador. E, ultimamente, concluíram que defendessem eles a sua casa e farinha, pelos modos humanos que soubessem, porque isto lhes não tolhiam, porém que elas, sem embargo, haviam de continuar as suas diligências, pois do Senhor, e não deles, era a terra e quanto ela cria (Domini est terra et plenitudo eius).»

Sobre esta contrariedade houve réplicas e contra-réplicas, de sorte que o procurador dos autores se viu apertado, porque, uma vez deduzida a contenda ao simples foro de criaturas, e abstraindo razões contemplativas com espírito de humanidade, não estavam as formigas destituídas de direito, pelo que o juiz, vistos os autos, e pondo-se com ânimo sincero na equidade que lhe pareceu mais racionável, deu sentença que os frades fossem obrigados a sinalar dentro da sua cerca sítio competente para vivenda das formigas, e que elas, sob pena de excomunhão, mudassem logo habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo, maiormente porque eles, religiosos, tinham vindo ali, por obediência, a semear o grão evangélico e era digno o operário do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio da sua indústria, a menos custo.

Lançada esta sentença, foi outro religioso, de mandado do juiz, intimá-la em nome do Criador àquele povo, em voz sensível, nas bocas dos formigueiros.

Caso maravilhoso e que mostra como se agradou deste requerimento aquele Supremo Senhor de quem está escrito que brinca com as suas criaturas (Ludens in orbe terrarum!). Imediatamente saíram, a toda a pressa, milhares de milhares daqueles animalejos, que, formando longas e grossas fieiras, demandaram em direitura o sinalado campo, deixando as antigas moradas, e livres de sua molestíssima opressão aqueles santos religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência!

DÁ DUAS VEZES QUEM DÁ LOGO

Passando el-rei D. Sebastião do Paço de Xabregas para o mosteiro, chegou uma mulher a apresentar-lhe um memorial. Recebeu-o e entregou-o a um fidalgo dos que o acompanhavam.

Ela, afligida, disse:

– Senhor, corre minha honra perigo na tardança.

Pôs nela os olhos el-rei, com aquele afecto de pai que foi tão próprio de seus antepassados para com seus vassalos; pediu recado de escrever e ali mesmo despachou o memorial, dizendo:

– Os negócios desta qualidade em toda a parte devem ter despacho pronto.

Semelhante presteza em despachar se escreve de Viroldo, duque de Lituânia, o qual, até estando à mesa, ouvia os requerimentos, assinava os papéis, recebia as embaixadas. De João Corvino, governador do reino de Hungria, dizem que em qualquer parte, em pé, e sentado, e andando, e a cavalo, sempre ia administrando as obrigações de seu ofício.

O imperador Trajano, de alcunha O Erva Parietária (porque em todos os edifícios que fez mandou pôr o seu nome na parede), estando de partida contra os Dacos, ao passar de Roma lhe saiu uma viúva clamando justiça contra os homicidas de seu filho. E o César, desmontando do cavalo, a ouviu benignamente e satisfez a seus desejos.

Há negócios e ocorrências que se lhe deve acudir, como se tangeram a fogo. Que ridículo seria o que, chamado para apagar um incêndio, respondesse mui repousado:

– Em almoçando, eu vou logo!

Gabeliano foi réu de morte por deter três dias o aviso de uma conjuração que lhe foi delatada. e fundou-se a sentença em que em ordem a cautelar o próprio dano, podia cada um ser incrédulo ou animoso, mas, em ordem a salvar o alheio, quem mais teme, melhor satisfaz à sua obrigação.

Importa que o espírito do príncipe e do magistrado tenha alguma porção ígnea que o incline a fazer o seu ofício, não frouxamente, mas com prontidão e viveza, porque a caridade, que, pelo que toca ao bem próprio, há-de ser paciente, pelo que toca ao bem do próximo, há-de participar, às vezes, algum tanto de impaciência. E esta é a índole boa, que Séneca descobria até naquilo que em outras ocasiões podia ser repreensível (Saepe tibi indolem bonam in malis quoque tuis ostendam). E esta é a que mostrou aquele rei, cujo coração aprovou Deus, dizendo que era conforme ao seu, quando respondeu logo à mulher Tecuitis, que lhe pedia um seguro tal para lhe não matarem a seu filho:

– Quem ousar a tocar-te, traz-mo aqui. Vive Deus, que nem um só cabelo há-de cair da cabeça de teu filho.

Veja-se como prendeu depressa neste espírito a chama do zelo, tanto que caiu sobre ele a faísca da injustiça, ainda só fingida, como aquela era.

Tanto que o agente se aproxima ao Paço – diz o filósofo – logo resulta acção; e tanto que o miserável se chega ao poderoso, logo há-de haver amparo; tanto que o injuriado recorre ao juiz, logo há-de haver satisfação. Aquele leproso que pediu saúde a Cristo, apenas explicou o seu desejo sem petição expressa e formal. Domine, si vis, potes me mundare (Senhor, se quereis, podereis alimpar-me). Quando logo o Senhor lhe respondeu: «Quero; fica limpo» (Volo; Mundare), e, estendendo a mão, o tocou e sarou. De sorte que, por este caso, podíamos com mais razão dizer o que lá o outro da velocidade dos notários, que tomavam por pena as palavras mais depressa do que outrem lhas pronunciava. Assim parece que ainda a língua do leproso não tinha bem declarado a sua petição, quando a mão do Senhor a tinha já remediado.

Assim como quem dá logo dá duas vezes (Bis dat qui cito dat), assim parece que despacha duas vezes quem despacha bem e logo. Despacha uma vez, concedendo a mercê, e despacha outra, atalhando passos, cuidados e despesas.

Ao rei D. João II de Portugal chegou um pretendente, pedindo certo ofício.

– Já está dado – disse o rei.

E o pretendente lhe rendeu as graças, beijou a mão e despediu-se.

Suspeitou o rei que não percebera a repulsa, e disse:

– Vinde cá: De que me destes as graças?

– Pela mercê – respondeu – que V. A. me acaba de fazer.

Tornou o rei:

– Que mercê vos fiz eu?

– Senhor – disse ultimamente o homem -, a de desenganar-me sem me remeter a ministros, porque nisso me poupou muitos passos, e enfado; e dinheiro, que havia de desembolsar sem proveito.

Nestes danos não reparam os ministros e seus oficiais, retendo as causas e derretendo as partes tanto tempo, que na sua mão parecem estar os papéis não só presos, mas já mortos e sepultados, porque lhes põem uma pedra em cima, que é mais do que dizia o adágio antigo De paxillo suspendere (pendurá-los de um torno ou cabide), para significar a negligência e descuido nos negócios.

Há causas (se não são das que morreram desesperadas) que podem competir com João dos Tempos, de que dizem que viveu 361 anos. Se não param de cansadas, pelo menos andam tão devagar que tudo se vai em Manda, remanda; manda, remanda; expecta, reexpecta; expecta, reexpecta, e, com este manda e remanda, se faz eterna a demanda, e, com este espera e reespera, o pobre, enfim, desespera.

Dizem que Hábis, filha do rei Górgon, por haver sido criada nos bosques com leite de uma cerva, saiu ligeiríssima no correr. Estou considerando que leite mamaria uma destas causas ou requerimentos na mão dos ministros e seus oficiais, que não há remédio a fazê-la correr. Se beberia o leite da preguiça do Brasil (a quem os Castelhanos chamam por ironia perrillo ligero), que gasta dois dias em subir a uma árvore e outros dois em descer?

Mas não é adequado o símil. Porque a preguiça do Brasil anda devagar, mas anda, e a preguiça do Reino e seus ministros, a cada passo pára e dorme. Dois meses para entrar um papel, e parou; outros dois para subir a consulta, e tornou a parar; outros dois para descer abaixo, e temo-la outra vez parada. Mais tantos meses para se verem os autos, mais outros tantos para se formar a tenção, mais tantos anos para embargos, apelações, suspensões, dilações, visitas, revistas, réplicas, tréplicas... Oh! preguiça do Brasil, já eu digo, não por ironia, senão por boa verdade, que tu, em comparação da preguiça do Reino, és perrillo ligero.

Diz Plínio que o lavrador que se não encurva sobre o arado prevarica, isto é, faz os sulcos da terra torcidos (Arator, nisi incurvus, praevaricatur), e, sendo torcidos, claro está que hão-de sair mais compridos do que podiam ser, pois a linha recta sempre é a mais breve. Parece-me que daqui procede (pelo não atribuirmos a piores causas) serem tão compridos e prolongados os sulcos ou caminhos que faz uma causa nas mãos de um ministro. São compridos porque não são rectos, e não são rectos, porque ele não se encurva sobre a banca, não se inclina sobre os livros, não se aplica ao seu ofício – e isto é o mesmo que prevaricar.

EMBAIXADA DE D. MANUEL AO PAPA LEÃO X

O nosso ínclito rei D. Manuel, de feliz recordação, quando se viu dominador dos reinos do Oriente (de sorte que podíamos dizer que as asas do Sol se mediam com o seu Império, e que aqueles povos infiéis se não confederavam contra a potência das suas armas mais que para ser delas triunfo e ouvir os anúncios da palavra evangélica), então folgou de submeter toda esta grandeza aos pés do Sumo Pontífice Leão X, por seus embaixadores particulares tributando-lhe juntamente as primícias das riquezas do Oriente.

O principal delas era Tristão da Conha, a quem faziam lados outros dois, a saber: Diogo Pacheco e João de Faria, desembargadores, e outros cinquenta cavaleiros. E era em todos tanta a riqueza e lustre, que havia selas, freios, peitorais e estribos de ouro de martelo, com pedraria fina e pérolas a montes.

Todos os embaixadores dos príncipes cristãos, que se achavam em Roma, e o governador da mesma cidade, e muitos bispos, e famílias dos cardeais, e outra inumerável nobreza, deram nobres aumentos a esta pompa, e o mesmo papa quis lograr o vistoso desta entrada, desde o Castelo de Sto. Angelo.

Levavam-lhe um presente com um grande e preciosíssimo cofre, coberto com pano de ouro e nele debuxadas as reais quinas posto sobre um elefante, o qual tanto que avistou ao Sumo Pontífice, ajoelhou três vezes, ensinado pelo naire que de cima o governava, e logo, metendo a tromba em um grande vaso de água que ali estava prevenido, borrifou os cardeais e outras pessoas que estavam pelas janelas, e o mesmo sinal de festa usou com o mais povo que estava apinhado pelas ruas.

Em outro dia foi recebida a embaixada, orando elegantemente o Pacheco em consistório. E, no fim da oração, o papa exaltou com excessivos louvores as prendas d'el-rei D. Manuel, e o católico zelo com que naquele Novo Mundo solicitava propagar o Império de Cristo e a glória de sua santa igreja.

Os pontos principais da embaixada eram três: o primeiro, que Sua Santidade empreendesse guerra contra o Turco; segundo, que se tratasse mui de veras da reforma da Igreja; terceiro, que a este fim se prosseguisse e concluísse o sagrado ecuménico concílio de Trento.

Em outro dia se abriu o cofre, tornando a ajoelhar o elefante diante de Sua Santidade. Encerrava um ornamento pontifical inteiro, não só para a pessoa do papa, mas para todos os seus ministros: Era todo de chaparia e figuras de ouro e pedraria preciosa, e a trechos umas romãs de rubis escachadas e, sendo a matéria tal, ainda dos primores da arte era vencida. Iam juntamente outras riquíssimas jóias e ducatões de 500 escudos de ouro, como para entulho.

Avaliaram alguns o presente em um milhão, o qual veio a ser dos que saquearam Roma. Finalmente, Alberto de Carpe, escrevendo ao imperador Maximiliano, como seu embaixador que então era, diz, na sua carta, este capítulo:

«Todo o povo universal de Roma concorreu por ver esta novidade; e não é maravilha, porque poucas vezes, ou nunca, sucedeu enviarem príncipes cristãos a Roma tão magnífico aparato.»

Este sinal de rendimento deu à pessoa do vigário de Cristo o nosso católico monarca, visto que a distância de terras e a ocasião lhe não concediam venerá-lo com outras demonstrações pessoais da sua humildade.

Quem desejar fazer-se presente àquele memorável espectáculo, referido aqui tosca e sumariamente, recorra ao elegante aparo das penas do bispo Osório e de Manuel de Faria e Sousa.


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