D. Francisco Manuel de Melo

CARTA DE GUIA DE CASADOS

Cap. I

Em meio estou, Senhor N., daquelas duas coisas mais poderosas com os homens: amor, e obediência. Amo a V. M.cê. Manda-me V. M.cê. E suposto que me manda uma coisa bem dificultosa; a obediência, e o amor, que já fizeram impossíveis, não se negarão hoje a vencer dificuldades.

Diz-me V. M.cê que se casa, e que lhe dê eu, para se governar nesse seu novo estado, alguns bons conselhos. Esta é uma das coisas de que eu cuido que falta mais quem a peça, que quem a dê.

Pois por certo que aquele que deseja bons conselhos, já parece que deles não necessita, porque é tão grande prudência pedir conselho, que do homem que o sabe pedir, crerei que nenhum lhe fará falta.

O primeiro que aconselharei a V. M.cê será que se não fie em nada só do meu voto; pois suposto que em mim possa haver vontade para o bem servir, pode ser que nem por isso haja entendimento para o bem aconselhar, porque entendimento e vontade ainda se ajuntam menos vezes que a honra e o proveito; e ela, com que seja potência poderosa, nem sempre guia ao acerto, se lhe faltam olhos de suficiência.

Grandes coisas deixou escrito a antiguidade, para advertência dos casados. Muitas são e graves são; a que também os modernos acrescentaram outras, ou nos puseram em outras palavras as antigas.

Mas nós aqui, Senhor N., nos havemos de entender ambos em prática como do lar, a cujo abrigo nestas longas noites de Janeiro, vou escrevendo a V. M.cê estas regras em estilo alegre, e fácil, qual requer o estado e idade de V. M.cê, bem que tão diverso do meu humor, e da minha fortuna.

Darão licença os Sénecas, Aristóteles, Plutarcos, e Platões; nem ficaremos mal com as Pórcias, Cassandras, Zenóbias e Lucrécias; tudo tão desenrolado nestas doutrinas; porque sem seus ditos deles, e sem seus feitos delas, espero que nos faça Deus mercê de que atinemos com o que V. M.cê deseja ouvir, e eu procuro dizer-lhe.

Não sou já mancebo. Criei-me em cortes; andei por esse mundo; atentava para as coisas; guardava-as na memória. Vi, li, ouvi. Estes serão os textos, estes os livros que citarei a V. M.cê, neste papel; onde, juntas algumas histórias que me forem lembrando, pode muito bem ser não sejam agora menos úteis que essa máquina de gregos e romanos, de que os que chamamos doutos, para cada coisa nos fazem prato, que às vezes nos enfastia.

Ora assentemos que qualquer mudança causa estranheza. Mudar de umas casas a outras é em alguma maneira esquivo. Segue-se logo que não se mudará a vida sem algum receio.

Porque se perca, imagine V. M.cê que para este estado nasceu, e o criaram seus pais. Este foi o que V. M.cê sabia o estava esperando. Este lhe é próprio, o outro alheio. Ninguém se queixa de haver chegado ao fim de seu caminho.

Considere que aqui não padece alguma força sua liberdade; antes, assim como aquele que sobe açodado por uma escada íngreme, quantos mais são os degraus, mais se deseja achar um mainel em que se descanse; assim também, subindo o homem pela escada da vida, quantos mais são os anos, quanto mais soltamente os vai vivendo, tanto lhe é mais necessário o repouso de um honrado casamento, que já por essa razão lhe chamamos estado, por ser não só fim, mas também descanso.

Tem V. M.cê subido, se não muitos degraus, digo se não tem vivido muitos anos, vivido tem aqueles que bastem; e ainda mal, porque a tal curso, que bem pode já dar o descanso a que chega, por chegado ao melhor tempo.

Paga o filho a seu pai, em se casar, aquele benefício que recebeu dele: pois se seu pai não casara, o filho não fora. Vão assim os homens contribuindo uns aos outros; e todos à memória dos que lhe deram ser, a que, depois de Deus, somos mais obrigados que a tudo o mais.

Cap. II

Espantam-se os moços com o que ouvem dizer do casamento de ordinário aos mal-casados, porque, Senhor, há V. M.cê de saber que muito mais certo é que o matrimónio bom se converta no mau humor que em nós acha, do que converter o mau humor nessa sua boa virtude. Parece-lhes aos moços intolerável a carga do matrimónio. É, 5enhor, pesadíssima para os que a não sabem levar; para os que sabem, é ligeira. Uma arroba de ferro ao ombro carrega um homem, que com o fácil artifício de duas rodas pode levar um quintal. Não excede o peso do casamento nossas forças, falta-lhe as mais das vezes nossa prudência para que o sustente; e daí vem que nos pareça grande.

Quer V. M.cê ver quão leve é a carga deste modo de vida que toma? Meça-a com o peso dessa outra vida que deixa.

Ponha, Senhor N., em balança a inquietação passada, os perigos, os desgostos, a desordem dos afectos, aquele temer tudo, não fiar de nada, o queixume que dói, a vingança que arrisca, a ruim lei que desespera, os ciúmes que abrasam, os amores que consomem, a honra em ocasião, a saúde diminuída, a vida arriscada, e, o que é mais, a consciência sempre queixosa.

Ora alvíssaras, Senhor N., que já lá vai tudo isto.

Em verdade, que quando ~ casamento não trouxera outro algum bem mais que livrar de tantos males, justamente merecia o nome de santa e doce vida.

Pois vejamos o que se lhe dá a um casado, a troco dessa liberdade, que eles tanto alegam que deixam.

Dá-se-lhe outra: entrega-se-lhe a mulher com a liberdade, com a vontade, com a fazenda, com o cuidado, com a obediência, com a vida, com a alma.

Quem pesará o que deixa com o que recebe, que logo não conheça os ganhos desta troca?

Cap. III

Uma das coisas que mais assegurar podem a futura felicidade de casados é a proporção do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda, causa contradição; a contradição, discórdia. E eis daqui os trabalhos por onde vêm. Perde-se a paz, e a vida é inferno.

Para satisfação dos pais convém muito a proporção do sangue, para o proveito dos filhos, a da fazenda, para o gosto dos casados, a das idades. Não porém que seja preciso uma conformidade, de dia a dia, entre o marido e mulher; mas que não seja excessiva a vantagem de um a outro. Deve ser esta vantagem, quando a haja, sempre a parte do marido em tudo à mulher superior. E quando em tudo sejam iguais, essa é a suma felicidade do casamento.

Dizia um nosso cortesão, havia três castas de casamento no mundo: casamento de Deus, casamento do diabo, casamento de morte. De Deus, o do mancebo com a moça. Do diabo, o da velha com o mancebo. Da morte, o da moça com o velho.

Ele certo tinha razão porque os casados moços podem viver com alegria; as velhas casadas com moços vivem em perpétua discórdia; os velhos casados com moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias.

Mas porque estas coisas são muito gerais, e ainda os incapazes têm delas conhecimento que aos entendidos lhes sobeja, é tempo de passar a alguns mais particulares avisos.

Senhor, saiba V. M.cê que à sua alma se acrescenta outra alma de novo: à sua obrigação se junta outra obrigação. Assim devem crescer seus cuidados, e seus respeitos. E da mesma sorte que, se a um homem que possuísse uma herdade, a qual cultivasse, lhe fosse deixada outra de novo, para o mesmo efeito esse tal homem, sem diminuir em sua alegria, era força que na diligência se avantajasse, por abranger com o seu trabalho a ambas aquelas suas fazendas; nem mais nem menos deve o casado multiplicar o tento e a fadiga (sem que por isso se entristeça), por não faltar ao novo cargo que tomou, e lhe entregaram, com a mulher que lhe deram; não para que a arriscasse, e perdesse (e a si mesmo com ela), mas para que maior cómodo e descanso pudesse passar com ela a vida.


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