Frei Lucas de Santa Catarina

Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740) era frade dominicano e exerceu o cargo de cronista da Ordem de São Domingos, sucedendo a Frei Luís de Sousa. Foi membro fundador da Academia Real de História. Escreveu sob vários pseudónimos, entre os quais Feliz da Castanheira Turacen (anagrama do próprio nome), Cirurgião da Experiência. Licenciado Nada Lhe Escapa, Doutor Tudo Espreita e Taralhão Mor de Lisboa. Além de obras de historiografia religiosa, dedicou-se à sátira, escrevendo narrativas burlescas e cartas freiráticas. É um dos autores mais curiosos e menos conhecidos da prosa barroca portuguesa. Obras: Quarta Parte da História de S. Domingos Particular do Reino e Conquistas de Portugal (1899), Memórias da Ordem Militar de S. João de Malta (1734), Serão Político e Oriente Ilustrado.


TORINA

QUOTIDIANA

Composta pelo Licenciado

NADA LHE ESCAPA

graduado em murmurações, dirigida ao muito alto, e atorinado senhor

MONCIUR MARTELO

Administrador das modas, inventor dos mogigangas, conservador dos faceiras, espadachim dos quitós; perniquebrado das bengalas, remosador dos vestidos, sanguessuga dos jantares, carrapato de Lisboa, quotidiana estaca dos Lausperenes e Namorador extraordinário.

DEDICATÓRIA

A quem senão a vos, Protofaceira, se haviam de consagrar os rasgos que neste pequeno norte ou são linhas para o enfeite, ou alinho para o atalho? A vós, a quem devem os vestidos a maior anatomia e os concursos a maior gralha e as conversações a maior bulha pois nos vestidos, voltas e embrexados com habilidade dais mostra de ser um grande arquitecto, pois com ele nos concursos desinquietais o populoso, e nas conversações confundis o inquieto, com a vossa arquitetura digam-no os vossos vestidos, as mangas tão remossadas no Jordão da vossa curiosidade, que as que ontem caducavam de encarquilhadas, podem hoje eternizar-se de crespas. Diga-o a mínima fita que a pura lavagem comprando-se algum tempo negra nos desengana castiça mulata; diga-o o mesmo chapéu, que de velhice se lhe não enxergava cor e já hoje com duas tintas de campexe mostra a sua negligência; confesse-o o quitó, cujo punho seco já de velho a puro sufrágio do laço passa das velhices de caduco, às vaidades de mancebo pelo enfeitado, repitam-no os mesmos sapatos quantas vezes lhes sucedeu recolherem-se Quaresma pelo fraco, e amanhecerem no outro dia carnal pelo gordo; enfim anoitecem chinelas, e amanhecem sapatos; digam-no as maiores sevandijas, como meias, gravata, e luvas, que esquecidas do seu nascimento, vão vivendo por milagre.

A vós pois singular arbitrista das modas, busca reverente este papel, não só como an6doto contra as invejas do tempo, mas como velhacouto contra os tempos, que se os papeis são primogénitos dos trapos, porque não eternizarão os papeis a quem transforma de lixo os mesmos trapos? O céu dilate os famosos anos, e únicos progressos de vossa namorada vida, para eterno gosto dos faceiras, e para espantalho dos Lausperenes.

Pigmeu Panegerista de vossas prendas, que vossas estrangeiras mãos beija com assaz nojo.

O Licenciado Nada lhe escapa.

PRÓLOGO

ao Leitor

Não te chamo amigo, porque não nos conhecemos. Se te chama o teu pecado pelo caminho das Torinas, neste papel tens o melhor espelho das modas. Se fores tolo não entenderás nada, se fores discreto, de tudo te darás por entendido, se fores faceira não te rias, porque contigo falo e se fores homem de bom gosto perdoa-me o satírico, pelo verdadeiro, e para que ambos nos acomodemos, desculpa-me a paciência de escrever, que eu te desculparei a curiosidade de o leres porque de entre ambos, venha o Demo à escolha.

Vale por não dizer (...)

SEMANA

Pecadora

OUTAVÁRIO DE OCIOSOS

REPARTIDO EM CAPÍTULOS

CAPÍTULO 1º

Domingo todo o dia

Em Deus amanhecendo, se levantará da cama o verdadeiro faceira e sairá à janela a ver como está o tempo, desejando entranhavelmente que se lhe não es6rem os cabelos, e se lhe não sujem os sapatos. Recolher-se-á para dentro rosnando algüas letras em falsete; depois disto lavar-se-á com toda a impertinência, e começar-se-á a vestir continuando a mesma música. Vestido, já, se entregará de todo o coração a um espelho, já voltando-se de ilharga a ilharga diante dele tirando os papéis dos caracóis com toda a brandura; arroje-se ao pente com todo o valor, e já ganindo, já uivando lhe irá dando um penso com toda a brandura; comporá o quitó, ou a espada; pegará no chapéu, dar-lhe-á üa esfregação e chegando-se outra vez com escrupulosa curiosidade ao espelho, começará a preparar-se de cara para aquele dia, ou seja de olhos dormidos, ou de queixo caído, ou de melancólico, ou de arreganhado, ou de benigno que he de beiço caído, ou cara risonha; enfim aquela cara, que lhe cair melhor, e em mais graça.

Sairá de casa banboleando o corpo, com jeito aflamengado, passadas de arremessado, mas direito; já se entende que com braços de arame, luvas de manopla, calçadas em todo o caso, que fazem o braço mais airoso; chapéu de três ventos, que com o que está na cabeça, fazem quatro; fita agarrochada, emproada no lado esquerdo em cima do estômago, misteriosa moda, pois fica côncavo o sovaco, que um faceira é bem que ponha sempre o chapéu no vazio; a cabeça descoberta, não só por poupar o topete, mas por mostrar como anda leve de tudo.

Assim começará o nosso faceira a caminhar para algüa igreja, aonde houver festa, e em falta dela recorra ao Lausperene, que neste particu1ar é alívio de tristes, e consolação de queixosos. Entrará na igreja arrastando os sapatos para que voltem ao estrondo as mulheres; tomará agua benta por toque e fará oração por remoque; benza-se com as luvas calçadas, que fazem as acções mais airosas; ponha-se de joelhos em postura de fariseu; namore a primeira missa, que se lhe oferecer, e supostas as circunstancias ao Evangelho se levantará em pé, como se fora católico; fará sua cortesia com trocadilho de pernas por se mostrar palaciano. Acabada a missa vá pelo meio da igreja abaixo, lançando as pernas com descuido, seu chapéu debaixo do braço, a mão direita metida na algibeira, que tem mil graças. Ponha-se na capela mor a todo o custo, ainda que lhe custe alguns empurrões, posto na capela mor vire-se para o povo, feito boneco de Cupido, e ainda que volte as costas para o altar, os hereges têm licença para tudo. Se estiver aí algum fidalgo, pegue-se a esse com toda a devoção, e muita fé, que são especiais advogados do conhecimento, e aos dous dedos de conversação, está um homem conhecido por grave, e para muita gente tido por leve. Pergunte-lhe se foi El-Rei para Salvaterra? e diga que teve üa carta de Polónia, de França, e de Estromboque; fale com muito afinco nas conquistas do Império; não lhe esqueçam nunca aquelas palavras de guerra, como são ataques, choques da infantaria, que a governava o Polaco, e os senhores eleitores, e outras palavras que inculcam notícia. Meta com muita pressa a mão na algibeira, e diga não sei se trago aqui a carta, e ficará em um instante fidalgo chapado. As raparigas, que es6verem a tiro de assistência, veja se lhe adverte desinquietações na vista, descuidos no manto, e cuidado no leque, não deixe de lhe fazer sua zumbaia, porque poderá ser que algüa caia.

De tarde sairá com o seu lenço e água de Córdova, ou de corda, que he mais próprio; lance polvilhos novos ainda que seja farinha, não se lhe de, mas não me vá sem eles; porque poderão dizer que não vai todo trigo.

Dará consigo, na festa, que 6ver mais a mão, ou se for Quaresma, não me falte na novena de S. Francisco Xavier, para fazer üa cortesia à rainha, e outra às damas, que elas como são senhoras, não hão de faltar, e a gente cuidará, que tem grande conhecimento; e se for no Carnal vá á novena de S. Gonçalo em S. Domingos, ou onde houver mais concurso de fêmeas, ou Lausperene me fecit, entrando sempre na igreja com os pés arrastos, fazendo cortesias a todo o bicho vivo; deixará cair as luvas, pôr-se-á de joelhos a modo de caçador, com um pé no ar, e outro no chão, bufando, e enchendo as bochechas de vento; isto não esqueça. Benzer-se-á de espirro, e daí irá para o altar mor, aonde se mostre ao povo cara alegre, pernas largas; se cantarem dé à cabeça, tire o lenço, que como vem baptizado não há-de estranhar a igreja; cona com ele o rosto, e quando chegar ao nariz detenha-se quanto for possível, para que cuidem todos que cheira; sacuda as orelhas a modo que lhe dá a mosca; emprenhe-se de barriga, desencalme-se de gravata, e dê um arroto surdo para mostrar que jantou, o que podia ser mentira; senão houver povoação de raparigas, sairá com a cerimonia costumada.

Indo pela rua comesse a namorar, arrecade o chapéu debaixo do braço, a mão direita no seio, as pemas ao lançar zangas, e ao pôr inteiras; e nesta postura irá correndo as ruas com a cabeça no ar, como em seu verdadeiro centro; e fazendo isto, eu o dou por verdadeiro faceira.

CAPÍTULO 2º

À segunda-feira se levantará o verdadeiro faceira, registando a graça do seu ves6do, espreitando sempre o tempo; vestir-se-á conforme o declarado ao domingo, porque para estes pecadores, todos os dias são santos.

Sairá para fora, e como comummente este dia he desocupado, se não houver algüa festa, namore como bofalinheiro pelas ruas, tudo quanto achar, mostrando as suas fitas, por onde lhe parecer que terão gasto. Terá decorado as suas ruas, e estudará as janelas, aonde estão figuras, que caem em costelas. Não faltará contudo de tarde, e de manhã ao Lausperene, aonde, e no passeio das ruas gastará o dia, porque o verdadeiro faceira há-de ter Lausperene infuso, e passeio gratis dato.

CAPÍTULO 3º

À terça feira, se levantará o verdadeiro faceira, e fará um acto voluntário interiormente de ir ao rocio a namorar toda a cousa viva. Sairá com toda a arrogância direito a S. Domingos, não por ouvir missa, mas por ver se há fêmeas, e irá com suas contas na mão, que se não enxerguem, e suas Ave Marias, que se não escutem. Se não achar nimguém sairá para fora muito depressa, escarrando grosso e pisando largo; irá por baixo dos arcos, saltando por El-Rei de França como cão de cego, que he cão de Cupido todo o faceira, pois em vendo qualquer deidade, logo lhe fas festa com o rabo. Por-se-á na feira das flores conversando com Brites, muito airoso, oferecendo rosas e ramilhetes, às senhoras que passarem e dirá: mas isto é lançar água, no mar; e as flores querem buscar o seu centro; as boninas, minhas senhoras, sempre foram atributo da primavera. Daí irá tomar a sua porção de Lausperene e virá acabar o dia ao Adro de S. Domingos, esperando as chulas para lhe dizer suas grassas; arreganhando os dentes em quanto se fazem horas, andará passeando de parte a parte com um amigo, e repetindo aos passageiros aquele fiambre das cortesias: Criado meu senhor. As suas ordens. Senhor meu, sou de vossa mercê.

CAPÍTULO 4º

À quarta feira também he dia desocupado, e não tem mais que fazer o nosso faceira, que tomar a fartura do Lausperene por onde quer que o achar.

CAPÍTULO 5º

A quinta feira também é dia desocupado, com que poderá o bom faceira dispor da sua pessoa, saindo a casa de um amigo, e se não chegue à casa de jogo, e ponha-se à janela para que as vizinhas o tenham por depravado naquela matéria, que he meio caminho andado para que o reputem por perdulário, e daqui se engenha muito facilmente um conceito de liberalidade, com que nasce nas mulheres üa desinquietação de interesse, e com só duas razões, da que dá lá no Lausperene se dará o faceira por satisfeito à quinta-feira, recolhendo-se para casa tão vazio, como saiu.

CAPÍTULO 6º

A sexta feira de manhã precedendo húa impertinente acomodação de vestido e um rigoroso exame de espelho, dará o nosso faceira consigo na Trindade, e namorará a sua missa na capela de Santo Cristo; depois saindo para o adro armando às passagens, dizendo às moças algüas picuínhas e üa lasca de Lausperene se estiver a tiro de passeio, tem o feito muito bem para a idade.

De tarde sairá com todos os abanicos de vinte e quatro alfinetes sem cabeça que assim o pede a armação; na costumada postura; irá direito a S. Bento, e entrando na igreja emborcando cortesias, e rangendo solas, posto no adro, se entulhará no concurso dos que aí governam em seco, para que se dilate a prática. Isto é se tiver fêmea que namorar, se não, não se lhe de que ela dure nem um credo. Encoste-se a üa coluna e daí se não estiver bem, dará üa volta até o Senhor das Francesas, com muita tenção e devoção de namorar, mas nenhüa de rezar. Daqui se recolherá para casa, e não deixe de dar üa chegada ao Lausperene, e ainda que ele esteja em Belém não se lhe dê de la ir, se lá houver concurso de fêmeas. E traga esta devoção sempre no coração, que de qualquer sorte será aceita no tribunal do faceira.

CAPÍTULO 7º

Ao sábado se contentará o nosso faceira, com o Lausperene, que Deus lhe der porque nem de manhã, nem de tarde, tem mais para onde apelar salvo as missas de Nosso Senhor que são tão de madrugada, que não tem um homem tempo para se pentear, e nas jornadas de madrugada, sai o cabelo em molhos, e recolhe-se em tripas.

De tarde até às três horas, üa lembrança de Lausperene, e daí até noute ladainhas em S. Domingos ou no Loreto, que é mais acomodada igreja para a namoração. Entrará feito estafermo do guardavento; se não no passeio do adro, se gasta üa tarde arrazoadamente. Recolher-se-á enfim para casa dando muitas graças a Deus, e mil parabéns ao seu vestido de o deixar acabar a semana em serviço da Torina; e então se porá em fresco dando üa barrela ao menor trapo que tiver, que seja capaz de galear sem receios de lhe ficar em algum apertão, ou lhe cair na rua, por não poder aturar, porque a força dos anos, ocasiona estas descomposturas. Ao cabelo dará um garrote, porque lhe não caia a carga dos polvilhos; a gravata levará o seu sabão; os sapatos enfadados dos passeios, untar-se-ão para tornarem ao corro, e ainda que se lhe achem algüas roturas nas entre solas, sempre se lhe dará a sua crena, que ainda que façam água, não importa que a sofram os pés, pois mais sofrem os de qualquer mariola e mais não andam em passeios, contanto que as não vejam os olhos.

Com estas e semelhantes ocupações sem haver lembrança de Deus, nem de Santa Maria, o bom, e verdadeiro faceira, virá a pôr-se no Zenit das modas, ficando dali a tiro de turco; e se o levar o Diabo, não faça caso disso, que esses são os progressos do bom faceira.


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