Francisco Rodrigues Lobo

Frontispício da primeira edição

AO SENHOR D. DUARTE,
MARQUÊS DE FRECHILHA E DE MALAGAM

Depois que faltou a Portugal a Corte dos Sereníssimos Reis, ascendentes de V. Exª (da qual as nações estrangeiras tinham tão grande satisfação e as velhinhas tão igual inveja), retirados os títulos pelas vilas e lugares do Reino e os fidalgos e cortesãos por suas quintãs e casais, vieram a fazer Corte nas Aldeias, renovando as saudades da passada com lembranças devidas àquela dourada idade dos Portugueses; e até V. Excelência, que, na de Espanha, podia avantajar toda a sua grandeza, escolheu para morada essa cidade de Évora, que já el-rei D. João, com o Infante D. Duarte, avô de V. Excelência, e os mais príncipes seus irmãos habitaram; cujos caídos muros e edifícios, desamparados paços e incultos jardins parece que, agradecidos à assistência e favores de V. Excelência, ressuscitam agora; e não somente os mosteiros antigos, a que faltava aquela grandeza que os enobrecia, se reedificaram à sua sombra, mas ainda, encostados ao amparo dela, se fabricaram outros de novo, com maior perfeição.

Com a mesma confiança busca a V. Excelência esta Corte na Aldeia, composta dos riscos e sombras que ficaram dos cortesãos antigos e tradições suas, para que V. Excelência a ampare como protector da língua e nação Portuguesa, honre como relíquia do sangue Real deste Reino e a acredite como espelho e exemplo da virtude e partes soberanas dos Príncipes passados. Aqui ofereço a V. Excelência uma conversação de amigos bem acostumados, umas noites de Inverno melhor gastadas que as que se passam em outros exercícios prejudiciais à vida e consciência; finalmente, uma Corte que, como bonina do mato, a que falta o cheiro e a brandura das dos jardins, ainda que na aparência e cores a queira contrafazer, é contudo diferente. Se os ditos destes aldeãos cheirarem a corte, acreditarão o título do livro, e, se souberem ao monte, também nele se confessa por Corte de Aldeia; e com muito maior razão o será quando chegar à vista de V. Excelência, em que se podem reformar de polícia as que são na Espanha mais apuradas. V. Excelência a ampare com a sua humanidade, lembrando-se que, como não pode haver Corte sem Príncipe, que esta o não podia parecer sem que tivesse por si a V. Excelência, e que, como em noite de Inverno, ficara muito às escuras este livro sem a luz e a graça que espera comunicar de sua clareza. E se alguém me julgar por atrevido em tratar de cousas de Corte nascendo em idade em que já a de Portugal era acabada, sabendo que na de V. Excelência fui muitas vezes favorecido de mercês suas, e honrado com elas na do Excelentíssimo Senhor Duque D. Teodósio, irmão de V. Excelência, não condenará minha ousadia com justa razão e achará algumas com que dê a estes Diálogos merecimento, que posto que lhes faltem muitos para serem ofertas dignas de tão grande Príncipe, nesse pouco que pode dar por fruito o meu engenho pago com a vontade o em que para outras obras faltaram a natureza, a arte e a ventura. E ante quem em tudo é tão grande, nada o pode parecer senão esta confiança, fundada na benignidade com que V. Excelência sempre autorizou minhas obras, que me assegura que assim aceitará agora este pequeno serviço, pois não é menor grandeza obrigar-se dos humildes que fazer a todos grandes mercês. Nosso Senhor guarde a V. Excelência muitos anos.

De Leiria, o 1 de Dezembro de 1618.

FRANCISCO RODRIGUES LOBO


DIÁLOGO I

Argumento de toda a obra


Perto da Cidade principal da Lusitânia está uma graciosa Aldeia que com igual distância fica situada à vista do mar Oceano, fresca no Verão, com muitos favores da natureza, e rica no Estio e Inverno com os fruitos e comodidades que ajudam a passar a vida saborosamente; porque, com a vizinhança dos portos do mar por uma parte e da outra com a comunicação de uma ribeira que enche os seus vales e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do ano o que em diferentes lugares costumam buscar a necessidade dos homens; e por este respeito foi sempre o sítio escolhido, para desvio da Corte e voluntário desterro do tráfego dela, dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos ou heranças, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da Cidade.

Um Inverno em que a Aldeia estava feita Corte com homens de tanto preço que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior deles em casa dum amigo morador daquele lugar, que também o fora em outra idade da casa dos Reis, donde, com a mudança e experiência dos anos, fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida; grande acerto de quem colhe este fruito maduro entre desenganos. Ali, ora em conversação aprazível, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo, se gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de Novembro e se amparavam contra os frios rigorosos de Janeiro.

Entre outros homens que naquela companhia se achavam eram nela mais costumados, em anoitecendo, um Letrado que ali tinha um casal e que já tivera honrados cargos de governo da justiça na Cidade, homem prudente, concertado na vida, Doutor na sua profissão e lido nas histórias da humanidade: um Fidalgo mancebo, inclinado ao exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da pátria, em cujas histórias estava bem visto; um Estudante de bom engenho, que, entre os seus estudos, se empregava algumas vezes nos da poesia; um velho não muito rico, que tinha servido a um dos Grandes da Corte, com cujo galardão se reparara naquele lugar, homem de boa criação, e, além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao Doutor, Lívio, ao Fidalgo, D. Júlio, ao estudante, Píndaro, ao velho, Solino. Fora estes havia outros de quem em seus lugares se fará menção, que, assim como os mais, não eram para enjeitar em uma conversação de poucas perfias.

Uma noite de Novembro, em a qual já o frio não dava lugar a que a frescura do tempo convidasse ao sereno, estando ainda Leonardo à mesa, porém no fim das iguarias, bateram à porta Píndaro e Solino, aos quais o velho mandou abrir com grande alvoroço e festa, porque a de o buscarem era o que mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento e cortesia. Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da casa:

– Pesa-me que não viésseis mais cedo, que me pudéreis acompanhar neste trabalho tão necessário da velhice. Mas se ainda virdes na mesa alguma coisa do vosso gosto, lançai mão dela, que de mistura achareis a minha boa vontade.

– Eu sei (disse Píndaro) a que tendes de me fazer mercê; mas venho ceado e também Solino, a quem tive hóspede, cuja conversação me dobrou o gosto das iguarias.

– Eram elas tão boas (respondeu Solino) que a mim me davam graça. Porém o serdes vós tão miúdo nas cortesias me deu muita pena; e já que sois tão discreto, e tão meu amigo, daqui adiante emendai-vos nas cerimónias da mesa e adverti ao vosso moço que não acompanhe com os olhos os bocados dos hóspedes té o estômago: porque apostarei que me contou todos os da ceia, e ainda tão destro no apartar das brigas que ainda bem não desvio um prato do outro quando me dá xaque em ambos e me deixa em casa branca. E não vos pareça que é isto dizer que venho faminto; que, se assim fora, pode ser que o cumprimento do senhor Leonardo não ficara solto e livre; antes é fazer-vos lembrança que, pois dais tão bem de comer, não tenhais um moço Harpia, que descomponha o sabor dos manjares.

– Bem sei (respondeu Píndaro) que, ainda farto, não haveis de deixar de roer. O meu moço é de uma destas aldeias vizinhas; há pouco que me serve; por isso, e por ser criado de estudante, lhe devíeis perdoar o erro e a mim, o remoque; porém a vossa condição não se sujeita a respeito, nem a desculpas.

– É tão saborosa a murmuração de Solino (disse Leonardo) que também na mesa se pode estimar como boa iguaria; e, se a eu tivera muitas vezes, dera vida ao apetite que para as outras me falta.

– Se o ela fora (tornou Solino) em mais ocasiões me valera das em que a vós podeis desejar. Mas, não tratando de vo-la oferecer, nem de a desculpar com meu amigo, como ceaste hoje tão tarde e não vieram mais cedo o Doutor e D. Júlio?

– Antes (disse o velho) me mandaram já recado e não devem tardar. Eu o fiz com a ceia porque os homens de serviço me não deram lugar senão a esta hora; mas ouço que batem à porta e devem ser eles.

A este tempo mandou juntamente alçar a mesa e levar a luz á escada. Subiram o Doutor e D. Júlio; saudaram-se com muita alegria; e, sentados perto do fogo, disse o velho:

– Muito deveis ambos a Solino porque, vindo a esta casa com Píndaro, de quem foi convidado na ceia, e tendo a minha em estado que se podia aproveitar de alguma coisa dela, vos achou menos e perguntou a causa da tardança; sinal é este de amor e da pouca razão com que o temos por desobrigado de toda a afeição dos amigos.

– Não é Solino tão descuidado do que lhe eu mereço (tornou D. Júlio) que se esqueça de mim e de quanto sentirei perder horas suas; e pelo interesse das da conversação do Doutor o tivera em menos conta se as não desejara; e, além disso, posso afirmar que está pago da lembrança que teve com a diligência que fizemos por o trazer connosco, que voltámos pela sua porta e eu tirei uma pedra à janela, donde me disseram que ceava com Píndaro; e cada um dos dois me fez inveja.

– Ah! senhor D. Júlio (respondeu ele) tão grande trovoada de cumprimentos secos não podia de deixar de lançar pedra. Eu tenho feita a conta e sei que não posso pagar o que vos devo, além dessa honra e mercê, senão com a humildade com que a todas reconheço por vossas. Dai-vos por satisfeito de meus desejos e de pôr aqui ponto nos cumprimentos, porque não tenho pólvora mais que para a primeira salva.

– Já eu me quisera meter em meio (disse o Doutor) porque, se vos ateardes em cortesias, não haverá quem as pague, se não for Píndaro, que tem uma corrente tão arrebatada que não dá vau a nenhuma retórica do mundo.

– Agora (arguiu Leonardo) levaste três de um tiro; não me dou por seguro neste lugar, inda que é de minha casa; porém, não tendes razão contra Píndaro, que, cada vez que o ouço, me parece um livro de cavalarias. Se ele tivera encantamentos escuros, castelos roqueiros, cavaleiros namorados, gigantes soberbos, escudeiros discretos e donzelas vagabundas, como tem palavras sonoras, razões concertadas, trocados galantes e períodos que levam todo o fôlego, pudera pôr a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo e ainda o mais pintado de todos os que nesta matéria escreveram; e já estive em o persuadir que se metesse em uma empresa semelhante, porém receio que se me ensoberbeça com a altivesa de seu estilo e despreze aos amigos.

– Não merecia eu, senhor Leonardo, a vós, nem ao Doutor (disse Píndaro) que tomásseis meus defeitos por matéria de vossa galantaria; falo como sei, e cada um se estende conforme a roupa com que se cobre. Não sou tão filósofo como o Doutor, tão cortesão como vós, nem tão engraçado como Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola; porém se abrisse as asas para compor livros, não houveram de ser de patranhas. Por isso fiai mais de meus pensamentos.

– Nunca o tive de vos ofender (respondeu o velho) nem me parece com razão a vossa desconfiança, nem podeis fazer tão pouca conta dos livro de cavalarias e dos famosos autores que os escreveram e que mostraram neles a sua boa linguagem com toda a perfeição: a graça de tecer e historiar as aventuras, o decoro de tratar as pessoas, a agudeza e galantaria das tenções, o pintar as armas, o betar as cores, o encaminhar e desencontrar os sucessos, o encarecer a pureza de uns amores, a pena de uns ciúmes, a firmeza em uma ausência, e outras muitas cousas que recreiam o ânimo e afeiçoam e apuram o entendimento. Se vós tendes por desprezo compor livros de cavalarias, eu vos desengano que pertencem mais cousas ao bom autor deles que a um dos Letrados, Filósofos ou Juristas com que desejais de vos parecer, porque lhe importa saber a geografia dos Reinos e províncias do Mundo, para encaminhar por elas a sua história; ter notícia dos nomes e coisas que usam naquelas partes donde faz naturais os cavaleiros; saber estilo de Corte para mesuras, gasalhados e cortesias, conforme as pessoas introduzidas; conhecer da justiça, do torneio e do serão, a ordem, as leis e as gentilezas; entender da bastarda e da gineta o que convém para pintar o encontro, a queda, o acerto, o desar, o brio ou descuido de um cavaleiro, debuxar o cavalo nas cores, concertá-lo nas rédeas, no pisar, no arremesso, na fúria, na destreza, nas carreiras, chaças e rodeios; e, sobre o conhecimento de todas as ciências e disciplinas, também há-de ter alguma notícia dos nigromantes antigos para os encantamentos que servem de bordão e valhacouto aos historiadores.

– Tenho por mal empregado (disse então o Doutor) tanto cabedal em cousa de tão pouco interesse e não sou de voto que o autor, que tiver as partes que vós dizeis que são necessárias para essa composição, se ocupe nela. De que servem livros de cavalarias fingidas? E se há ociosos que os leiam, porque há-de haver algum que os escreva, ou que espere algum fruito de trabalho tão vão?

– Mas que certeza tão grande (tornou Leonardo) que cada um aprova o que segue, sendo assim que ninguém se contenta do que tem. Desejáveis agora que todos os livros e todos os homens tratassem somente da vossa profissão e fossem Juristas e Filósofos? Pois, ainda que eu sou Bacharel em linguagem, me atrevo a contradizer essa opinião adquirida em latim: porque para recreação, polícia e bom estilo se não deve menor lugar a estes que aos vossos de trapaças e opiniões, e outros a que chamais conselhos, que o dão às vezes bem ruim a quem se fia de sua leitura.

– Eu era de parecer (disse D. Júlio) que poupássemos esta matéria para gastar a noite, pondo-a em maneira de disputa. E se a todos parece assim, cada um diga a sua opinião nos livros que mais lhe contentam e das razões que tem para os aprovar; e deste modo, ou afeiçoados ou convencidos, saberemos os que são de maior gosto e utilidade.

– A isto (respondeu Solino) atègora estive calado contra minha natureza; porque me houve por incapaz de fazer terço com o Doutor e Leonardo; mas, pois o voto é que se jogue com toda a baralha, digo que é esta a melhor matéria que se podia escolher para passar o tempo. E já pode ser que algum dos que aqui estão, que deseja deixar no mundo memória de seu engenho, saiba nesta ocasião o em que o pode empregar melhor.

– Pelo que a mim toca (disse o Doutor) comecemos logo; e a vós, Senhor D. Júlio, é bem que dêmos a mão a troco do alvitre; e, não tratando dos livros Divinos, nem dos necessários, dos de recreação nos podeis dizer quais e por que razões vos contentam.

– A minha inclinação em matéria de livros (disse ele), de todos os que estão presentes é bem conhecida; somente poderei dar agora de novo a razão dela. Sou particularmente afeiçoado a livros de história verdadeira, e, mais que às outras, às do reino em que vivo e da terra onde nasci; dos Reis e Príncipes que teve; das mudanças que nele fez o tempo e a fortuna; das guerras, batalhas e ocasiões que nele houve; dos homens insignes, que, pelo discurso dos anos, floresceram; das nobrezas e brasões que por armas, letras, ou privança se adquiriram. O que me inclinou à escolha desta lição que tive alguma de um homem muito douto em o que o deve desejar de ser e parecer o que é nascido; ao qual ele dizia que o que mais convinha que soubesse era o apelido que tinha, donde lhe veio, quem foram seus passados, que armas lhe deixaram, a significação e fundamento da figura delas, como se adquiriram ou acrescentaram, os Reis que reinaram na sua pátria, as crónicas deles, os princípios, as conquistas, as empresas e o esforço dos seus naturais; porque, falando deles nas terras estranhas, ou na sua com estrangeiros, saiba dar verdadeira informação de suas cousas. E, alcançadas estas, lhe estará bem tudo o que mais puder saber das alheias. E, na verdade, nenhuma lição pode haver que mais recreie e aproveite que a que sei que é verdadeira, e, por natural, ao desejo dos homens deleitosa.

– Não é essa a minha opinião (disse Solino) porque contra o gosto me assombram muito cousas passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. E, no que toca à verdade, certo que à conta dos enterrados se escrevem algumas vezes tão grandes mentiras que lhes não levam vantagem os fingimentos de histórias imaginadas. E havendo um homem de ler o que não é, ou o que sai tão caldeado e tão batido da forja dos autores que mudado traz o metal, a cor e a natureza, estou melhor com os livros de cavalarias e histórias fingidas, que, se não são verdadeiros, não os vendem por esses; e são tão bem inventados que levam após si os olhos e os desejos dos que os lêem. E não estima um autor matar mais dous mil homens com a pena para fazer valente o seu cavaleiro com a espada, sem estar receando os ditos das testemunhas que ficaram da batalha, que por iguais respeitos pende cada uma para seu cabo. Pois se é caso em que um historiador queira passar adiante, como Ariosto, não matou mais gente a peste grande em Lisboa que Rodamonte nos muros de Paris.

– Essa é uma das razões por que eu os reprovo (tornou o Doutor); porque a fábula é uma cousa falsa, que podia contudo ser verdadeira e acontecer assim como se fingiu. Porém a isto não dão lugar os livros de cavalarias como esses excessos e outros encantamentos, fazendo casas e torres de cristal, edifícios, lagos e colunas impossíveis, pirâmides de alabastro e casas de pedraria, cuja riqueza podia empobrecer a fortuna. E em nossos tempos, na Índia Oriental, sabemos que o Rei Mogor andou muitos anos fabricando uma casa de esmeraldas, por cujo respeito se passavam deste Reino à nossa Índia as da Ocidental. E enfim morreu sem a acabar; e não há livro de cavalarias em que qualquer cavaleiro de um castelo não acabe cousas maiores. E, deixando isto, é graça e galantaria comparar histórias verdadeiras com patranhas desproporcionadas, que gastam o tempo mal a quem nelas se ocupa, quando as outras servem de exemplo para imitar, de lembrança para engrandecer e de recreação para divertir. A quem não anima ler as histórias de seus passados? A quem não move o desejo de igualar a fama que lê de suas obras? O governo da paz, a ordem da guerra, o trato dos homens, o comércio das províncias, donde se conserva, alcança e sabe senão pelas histórias verdadeiras? Porque nelas sabe cada um felizmente pelos sucessos alheios o que se deve seguir. Donde Marco Túlio chamou à história mestra da vida.

– Vós, senhor Doutor (disse Solino) achareis isso nos vossos cartapácios; mas eu ainda estou contumaz. Primeiramente, nas histórias a que chamam verdadeiras, cada um mente segundo lhe convém, ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir; porque se não forem estas tintas, é tudo tão misturado que não há pano sem nódoa, nem légua sem mau caminho. No livro fingido contam-se as cousas como era bem que fossem e não como sucederam, e assim são mais aperfeiçoadas. Descreve o cavaleiro como era bem que os houvesse, as damas quão castas, os reis quão justos, os amores quão verdadeiros, os extremos quão grandes, as leis, as cortesias, o trato tão conforme com a razão. E assim não lereis livro em o qual se não destruam soberbos, favoreçam humildes, amparem fracos, sirvam donzelas, se cumpram palavras, guardem juramentos e satisfaçam boas obras. Vereis que as damas andam pelas estradas sem haver quem as ofenda, seguras na sua virtude própria e na cortesia dos cavaleiros andantes. E, quanto ao retrato e exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom entendimento traçou e seguiu com muito tempo de estudo que no sucesso que às vezes se alcançou por mão da ventura, sem a diligência e engenho meterem nenhum cabedal. Não digo que os livros tenham excessos desatinados que não sejam semelhantes à verdade, nem os encantamentos tão escuros e disconformes que não tenham alguma maneira de enganar o juízo; porém os livros bem fingidos, como verdadeiros obrigam. Um curioso em Itália (segundo um autor de crédito conta) estando com sua mulher ao fogo lendo o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto sentimento que lhe acudiu a vizinhança a saber o que era. E, no que toca ao exemplo, um Capitão valoroso houve em Portugal, que o não teve melhor o Império Romano, que, com a imitação de um cavaleiro fingindo, foi o maior dos seus tempos, imitando as virtudes que dele se escreveram. Muitas donzelas guardaram extremos de firmeza e fidelidade, costumadas a ler outros semelhantes nos livros de cavalarias. Na milícia da Índia, tendo um Capitão nosso cercado uma cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que albergavam juntos, traziam entre as armas um livro de cavalarias, com que passavam o tempo. Um deles, que sabia menos que os mais daquela leitura, tinham tudo o que ouvia ler por verdadeiro (e assim há alguns inocentes que cuidam que se não pode mentir em letra redonda); os outros, ajudando a sua simpreza, lhe diziam que assim era. Veio ocasião de um assalto em que o bom soldado, invejoso e animado do que ouvia ler, lhe apareceu ensejo de mostrar seu valor e fazer uma cavalaria de que ficasse memória: e assim se meteu entre os contrários com tanta fúria e os começou a ferir tão rijamente com a espada que em pouco espaço se empenhou de sorte que, com muito trabalho e perigo dos companheiros e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida, recolhendo-o com muita honra e poucas feridas. E repreendendo-o os amigos daquela temeridade, respondeu: Ah! deixai-me, que não fiz a metade do que cada noite ledes de qualquer cavaleiro do nosso livro. E ele dali adiante o foi mui valeroso.

Muito festejaram todos o conto, e logo prosseguiu o Doutor:

– Tão bem fingidas podem ser as histórias que merecem mais louvor que as verdadeiras; mas há poucas que o sejam; que a fábula bem escrita (como diz Santo Ambrósio), ainda que não tenha força de verdade, tem uma ordem de razão, em que se podem manifestar as cousas verdadeiras. Xenofonte, querendo pintar uma República perfeita e regimento político, por modo de história, fingiu o governo de Ciro, Rei dos Persas; D. António de Guevara, em nome de um Imperador Romano, escreveu o que ele queria dizer em Espanha; e outros que ainda em modo mais estranho ensinaram aos homens, como Esopo nas suas fábulas e Lúcio Apuleio no seu Asno de Ouro; e todos os livros que em seu género são bons e se podem chamar perfeitos. Resta agora que o que escreve história seja verdadeiro; e não terá Solino de que o repreender nela. O que compõe fábulas seja verosímil, e não terei eu razão de o reprovar. O que trata de ciência, alegue razões. O que fala de artes, experiência. E o que quer ensinar princípios, mostre autoridade. E posto que eu tenha muitas que alegar em favor da vossa opinião, Senhor D. Júlio, vós estais no caso, e todos os mais, que a história verdadeira apascenta os doutos, adelgaça os grosseiros, encaminha os moços, ensina os mancebos, recreia os velhos, anima os baixos, sustenta os bons, castiga os maus, ressuscita aos mortos, e a todos dá fruito a sua lição. E por que esta não seja mais comprida, diga Píndaro agora a sua opinião.

– Apostarei eu (disse Solino), que, se a Píndaro lhe armarem com poesia levantada sobre os bons conceitos e versos, que, com serem amorosos, sejam arrogantes, que o tomaram como pássaro em visco.

– Para isso (disse o Doutor) arredar-lhe as ocasiões, e vá com declaração que não tratamos de poesia.

– Essa condição (acudiu Píndaro) logo ao princípio ficou declarada; que, como exceptuaste livros Divinos, nesse número devem estar os dos Poetas que mereceram este nome; e o que eles antigamente tiveram, e ainda agora lhe dão os latinos, assim o deixa entender. E Platão, quando deles escreve, lhes chama divinos intérpretes dos deuses, possuídos de espíritos celestes; donde Marco Túlio tirou os louvores com que os trata. Orígenes afirma que a poesia é uma virtude espiritual, que inspira em os Poetas e lhes enche o ânimo e o entendimento de uma divina força. Santo Agostinho lhes chama teólogos para cantarem os louvores divinos. Diziam os filósofos antigos que, se os deuses falassem, seria em verso, trazendo exemplo do oráculo de Apolo e das Sibilas. Cassiodoro diz que a poesia tomou princípio da Divina Escritura. De maneira que, por autoridade de tão grandes varões, nunca os livros de poesia podem vir em competência, com os de que até agora trataste; que doutro modo já estivera concluída a diferença.

– O que eu vejo (tornou D. Júlio) que, ainda que o doutor vos cerrava a porta, que metido de ilharga dissestes tudo o que cumpria ao vosso intento por junto, e quanto para mim estais declarando; e com o desejo de ouvir a opinião de Doutor, não digo o mais que me parece.

– Ora (respondeu ele) não quero que a essa conta fique o meu voto às escuras; e digo, não falando em poesia, que não escolhe lição de historiadores verdadeiros, nem tenho por melhore a dos fingidos; porque uns servem de conservar a memória, os outros, de enganar o entendimento; e serão melhores os livros que deleitem a memória e a vontade e apurem e levantem o entendimento, como os de recreação que, com alguma engenhosa novidade, tratam de matérias políticas e engraçadas: de Corte, de Aldeia e de qualquer sujeito aprazível; há destes muitos bem recebidos, aprovados e proveitosos na república, cuja variedade e doutrina é para mim uma lição mui saborosa.

– Não estou mal com essa opinião (disse o Doutor) e quase que vós e eu estamos em um mesmo pensamento; senão que deixaste de declarar o que agora me fica para dizer: porque atèqui falámos do modo de compor e escrever livros, e não das matérias que, escritas, serão agradáveis. E, deixando em dúvida o vosso parecer para se conferir com atenção, o meu é que o melhor modo de escrever são os diálogos escritos em prosa, com figuras introduzidas que disputem e tratem matérias proveitosas, políticas, engraçadas e cheias de galantaria, sendo a primeira figura da obra o Autor dela; e esse que vá guiando e introduzindo as mais, que sejam apropriadas àquelas matérias de que hão-de tratar entre si. E, além de ser este estilo mais alto, mais vulgar, mais excelente, inclui em si a lição de todos os outros modos de escrever, como são os da história verdadeira e fingida, das artes liberais e mecânicas, das ciências e disciplinas necessárias, das profissões particulares, da razão, do governo da vida política ou privada. E quando este modo de escrever não tivera por si mais que autoridade dos que nele escreveram, como foi Platão, Xenofonte, Túlio e outros infinitos, essa bastara para acreditar os diálogos. Além disto, eu tenho para mim que aquela é melhor escritura que, com mais perfeição e viveza, imita a prática e conversação dos homens; porque assim como a melhor pintura é a que mais se parece com obra de natureza, a que a quer contrafazer, assim a melhor escritura é a que retrata com mais semelhança a fala e conversação dentre os amigos. Nos poemas tinham os poetas antigos que o mais levantado era a tragédia por a imitação natural da prática, com introdução de figuras, junto com a gravidade, peso e tristeza dos sucessos trágicos. E porque também a variedade é a que mais costuma entreter e deleitar o ânimo dos homens, e esta é mais certa e mais própria nos diálogos, me parece que no gosto deles serão melhor recebidos.

– Pois assim é (disse D. Júlio) que a principal razão por que aprovais os diálogos é porque mais familiarmente se parecem com a prática, desejo saber qual é mais nobre causa: se a prática, se a escritura; porque a mim me parece que há escritura se deve o melhor lugar, e que antes merecia a prática por se parecer com ela; o que agora encontra a vossa opinião.

– Nenhuma dúvida há (respondeu o Doutor) que a prática seja mais nobre, mais antiga e mais excelente; porque, além de a fala ser a operação natural dos homens, e acto em que eles fazem vantagem e diferençam todos os animais, a escritura não é mais que uma escrava e servente das palavras, e o escrever não é outra cousa mais que suprir com um instrumento, por meio da arte e das mãos, o que com a voz não se pode exprimir e alcançar com os ouvidos, ou por distância de lugar, como quem escreve aos ausentes, ou por discurso de tempo, como quem escreve para os vindouros. E porque nunca a escrava é tão nobre como a senhora a quem serve enquanto escrava, nem o que substitui em lugar doutrem se lhe pode preferir no mesmo lugar, assim nunca a escritura pode igualar a nobreza e a perfeição da prática.

– O contrário me parece a mim (replicou o Fidalgo) porque nem por a prática ser mais antiga e primeira que a escritura, é mais perfeita, antes ela foi a perfeição da prática; e posto que seja própria operação do homem o falar, não é nele menos nobre o acidente de escrever, antes me parece mais digno o que ele alcançou por arte que o que adquiriu por uso; e quase que ousaria a dizer que é operação sua o falar, dada a respeito de haver de escrever, pois esse é o meio de se perpetuar, sustentando no entendimento dos presentes e na lembrança dos futuros a memória das coisas passadas. Assim que nem por a primeira razão merece a prática melhor lugar, nem a escritura, por servente e ministra sua, é menos nobre. Porque o Sol serve de monstrar as cousas criadas, que lhe são muito inferiores, e de dar luz e nutrimento a outras de menor qualidade, e nem por isso elas se lhe podem antepor. E quanto a substituir a escritura em lugar da voz, ela o faz por tão excelente maneira que lhe tem muita vantagem, pois o que a voz não pode exprimir juntamente em diferentes lugares e a diversas pessoas em um mesmo tempo, o faz a escritura com grande perfeição, podendo muitas pessoas, em diferentes lugares, ler em um mesmo tempo a própria cousa; pelo que me parece que, ainda que a vossa escolha fosse boa, não fundastes bem a razão dela.

– Certo (disse Leonardo) que de ambas partes destes tão boas razões que fica duvidosa a melhoria. Porém concedendo à prática a excelência, a acção, o modo e a graça de falar, que é uma viveza a que se não iguala outra nenhuma semelhança, a escritura tem tantas grandezas que parece igualmente necessária para a vida, pois ficava o mundo às escuras sem a luz da lição escrita, e só na tradição dos homens se salvaria a memória das cousas, e, nas principais, dominaria a ignorância com mero império. Porém, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e agudeza está tocado o que baste, quero que passemos adiante e, por me fazerdes mercê, que me ensinais se na prática, em voz, e na escritura considerada, tem bom lugar a nossa língua Portuguesa: porque ouço de má vontade a alguns naturais que tratam mal dela e a condenam por grosseira e limitada.

– Uma cousa vos confessarei eu, senhor Leonardo (disse a isto D. Júlio), que os Portugueses são homens de ruim língua, e que também o mostram em dizerem mal da sua, que, assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras é língua excelente. Mas há alguns néscios que não basta que a falem mal, senão que se querem mostrar discretos dizendo mal dela; e o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião, e os que falam bem desacreditam a ela e a eles.

– Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) pelas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade. E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

– Folguei estranhamente de vos ouvir (disse Solino) por não ficar tão covarde, como atégora estava, em ouvindo murmurar da língua Portuguesa; e não ousava, ou não sabia dizer a minha opinião, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e que cada um tem às suas cousas como o corvo aos filhos, e Píndaro às suas trovas. Porém quando um homem tão bem fundado na razão como o Doutor, e tão autorizado em seu parecer, sustenta esta parte, nenhuma haverá já tão rija que me tire o atrevimento.

– Nem a língua (disse Píndaro), pois não há amizade que vos faça perder o costume.

– Perdoai-me (tornou ele) que vos feri por não perder o golpe. E, tornando ao que aqui se tratou para recordar o que começamos, averiguou o Doutor que a melhor maneira de escrever eram os diálogos (ficando meu direito reservado nos livros de cavalarias); tocaram-se louvores da prática e escrituras com muito engenho; declarou-se como a língua Portuguesa não desmerece lugar entre as melhores, para nela se escreverem matérias levantadas, aprazíveis, proveitosas e necessárias. Que falta entre vós para que destas noites bem gastadas, destas dúvidas bem movidas e destas razões melhores praticadas, se faça um ou muitos diálogos que, sem vergonha do mundo, possam aparecer nas praças dele à vista dos curiosos e ainda dos murmuradores?

– Tem Solino muita razão (disse D. Júlio) e se assim forem os diálogos como se podem formar com a prática de alguns que estão presentes, bem se autorizara a opinião do Doutor, posto que a minha fique vencida com a vantagem que aqui tem a prática das escrituras alheias. E pois se aproveitam tão bem as noites deste lugar, razão é que por meio deles se comuniquem a quem se aproveite da doutrina e interesse delas.

– Se eu não dormi a tão poucas horas da passada (disse o doutor) ainda houvera de prosseguir adiante e responder a isso; mas com vossa licença me vou recolher e amanhã acudirei mais cedo.

– Acompanhemos ao Doutor (disse o Fidalgo) e, levantando-se ele, se despediram todos com muita cortesia, deixando ao senhor da casa magoado de se acabar tão depressa a conversação; que quem sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento das horas que dela perde.

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