D. Tomás de Noronha

D. Tomás de Noronha nasceu em Alenquer, em data incerta, e terá falecido em 1651. Era filho de um fidalgo escudeiro do rei D. Sebastião. Casou com uma prima e, tendo enviuvado, casou pela segunda vez. Jacinto Cordeiro, no seu Elogio dos Poetas Lusitanos (1631), coloca-o entre os mais célebres poetas do seu tempo. Devido ao carácter satírico das suas composições poéticas, era conhecido como o «Marcial de Alenquer». Foi um dos primeiros poetas barrocos a sentir o ridículo do artificiosismo e a reagir contra ele. A sua produção poética conhecida vem compilada na Fénix Renascida e na colectânea que Mendes dos Remédios publicou em 1899.


ALGUNS POEMAS


Pragas se orar mais por uma dama cruel

Não sossegue eu mais, que um bonifrate,
De urina sobre mim se vaze um pote,
As galas, que eu vestir, sejam picote,
Com sede me dêem água em açafate.

Se jogar o xadrez, me dêem um mate,
E jogando às trezentas um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate.

Os licores que beba, sejam mornos,
Os manjares, que coma, sejam frios,
Não passeie mais rua, que a dos fornos.

E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V




Às poesias que se fizeram a uma queimadura da mão de uma senhora

Ó mão não de cristal, não mão nevada,
Mão de relógio sim, pois que pudeste
Nesta mísera terra em que naceste
Fazer dar tanta infinda badalada.

Que mão de almofariz enxovalhada
Foi tal, como tu foste, ó mão celeste,
Pois foste, quando mais resplandeceste,
Em tantas de papel tão mal louvada.

Nem de Cévola a mão negra e grosseira,
Queimada entre morrões publicamente,
Merecia tão míseras poesias.

Mas louvo-as de subtis em grã maneira,
Pois que para apagar a flama ardente
Se fizeram de indústria assi mo frias.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V




A uns noivos que se foram receber, levando ele os vestidos emprestados, e indo ela muito doente e chagada

Saiu a noiva muito bem trajada,
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.

Ela uma anágoa muito bem bordada,
Ele um capote muito bem bordado;
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastrada.

Folgámos todos os amigos seus
De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.

Disse-lhe o cura então: – Confia em Deus.
E respondeu o noivo: – E eu confio.
E respondeu a noiva: – E eu com fios.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V




A uma Dama com quem andava de amores

Jogando com Paulinha o toque-emboque,
Porque me punha em ré, usou de treta;
Um cabe me armou, coube a palheta,
Morre ela que de ilharga só lhe toque.

Eu disse: «– Cabe peço, toque-emboque.»
Mas antes que co' as bocas arremeta,
Por me falar à mão, diz: «– Não se meta,
Por culos, dois da minha que se emboque.»

Endireito a palheta em tão boa hora,
Sem buscar tijolinho, e segurei-me,
Dando-lhe ora por dentro, ora por fora.

Virou-se para mim, eu alegrei-me
Dizendo-lhe: «– Essa volta me namora.»
Toquei-lhe as bocas do aro e emboquei-me.




A duas Senhoras que abriam as amêijoas com vergonha

O subtil caranguejo, mais manhoso
Que todo o animal de água salgada,
Quando se vê com fome regalgada,
O buscar mantimento lhe é forçoso.

Duas pedrinhas toma mui airoso
E, encontrando a amêijoa bem fechada,
Esperando que se abra de pancada,
Dentro lhas bota com modo furioso.

Assim aberta, sem se fechar mais,
Meu conselho tomai que, mui contente,
Vos servirei a todas de focinhos.

Por mais cerrada a amêijoa que tenhais,
Eu fico vo-la abra facilmente
O caranguejo meu e os dois seixinhos.




A uma freira chamada Beatriz

Senhora Beatriz foi o demónio,
Este amor, esta trampa, esta porfia,
Que não durmo de noite nem de dia
Em cuidar neste seco matrimónio.

Já pus uma candeia a Santo António,
Mas vendo que vos Deus não alumia,
Ou cuido me negais a serventia
Ou que não obra em vós meu antimónio.

Parece-vos que fico bem honrado?
Pois só por não quebrar essa clausura
Me tem toda esta terra por capado.

Não sofro estes reveses da ventura;
Ou hei-de desistir do começado
Ou hei-de esgravatar na fechadura.




A um nariz grande

Hoje espero, nariz, de te assoar,
Se para te chegar a mão me dás,
Ainda que impossível se me faz
Chegar a tanto eu como assoar-te,
Porque é chegar às nuvens o chegar-te.
Das musas a que for mais nariguda
Manda-lhe que me acuda,
Que se a fonte
De Pégaso é verdade está no monte,
O mais alto de todos em ti está
Porque monte tão alto não no há.

Falta o saber, nariz, para o louvor
De que és merecedor.
Que hei-de dizer?
Para espantares tu hão-te de ver,
Porque nunca se pode dizer tanto
Que faça como tu tão grande espanto.
És tão grande, nariz, que há opiniões,
E prova-o com razões
Certo moderno,
Que em comprimento és, nariz, eterno,
Porque ainda que princípio te soubemos,
Notícia de teu fim nunca tivemos.

Cuido que sem narizes, por mostrar
Seu poder em acabar,
Sua grandeza,
Deixou gente sem conto a natureza,
Que assoas, Gabriel, quando te assoas,
Os narizes de mais de mil pessoas.

Aos mais narizes dás o ser que tem,
Nariz, e daqui vem
Que os nossos são
Os narizes em que há mor perfeição;
Que se os negros os tem esborrachados,
É porque estão em ti mais apartados.
Dos narizes todos é sabido
Terem um só sentido,
E é assi;
Mas em h, como corpo de per si,
Cinco sentidos há quem em conclusão,
És nariz que tem uso de razão.

E ainda que espante tanto nesta idade
Que por monstruosidade
Sejas tido,
Nariz, a muita gente tenho ouvido
Que ainda hás-de espantar mais na que há-de vir,
Porque ainda há muito em h por descobrir.

Vai-te, canção, e diz a este nariz
Que eu sou o que te hz.
E para lho dizeres
Daqui donde estás podes, se quiseres;
Não tens necessidade de abalar-te,
Porque este nariz está em toda a parte.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V




A uma mulher que sendo velha se enfeitava

Escuta, ó Sara, pois te falta espelho
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te deste modo,
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito, que em terra estás tornada.

Que importa, que algum tempo a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.

Se um tempo foram de marfim brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.

Viciando a natureza com tuas tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,
Deixa estes vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se alvorota
Máscara me pareces de chacota,
E se sem 6ntas, cuido neste passo
Que esta máscara está em calhamaço.

Como pretendes pois com mil enganos
Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no Inverno frio,
Aonde toda fruta perde o brio?
Parecendo teu rosto, e porque enfada,
Fruta, que se secou, noz arrogada.

Se feitura de Deus Eva não fora,
Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que agora tenho;
E concluindo enfim, a alcançar venho,
Pois alcançar não posso a tua idade,
Que deves de ser mãe da eternidade.

Parece que teus olhos por consciência
A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar, porque me choram
Não acerto com o beco, onde moram,
Porque o tempo os mudou seu passo, e passo
Da flor do rosto lá para o cachaço.

Se a meus olhos despida te ofereces,
Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo em osso,
Com essa cara posta em tal pescoço,
Me pareces, tirada a cabeleira,
Em cima de um bordão uma caveira.

Como ainda queres em desatinos
Dar a meninos mama:
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me gabo)
Que te alugou sem dúvida o diabo,
Invejando teu corpo, cara, e dedos
Para fazer a Santo Antão os medos.

Deixa, senhora, deixa o vão cuidado,
A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem desgosto,
Que eu quando vejo teu funesto rosto
Já também dele o seu conselho tomo,
Porque mudo me dá Memento homo.


D. Tomás de Noronha, Fénix Renascida, V

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