Frei Bernardo de Brito

Frei Bernardo de Brito (1569-1617) nasceu e faleceu em Almeida. Antes de professar votos na Abadia de Alcobaça, chamava-se Bartasar de Brito e Andrade. Estudou em Roma e em Florença, tendo-se doutorado em Teologia pela Universidade de Coimbra. Nomeado cronista-mor de Portugal depois da morte de Francisco de Andrada, seu predecessor, começou a trabalhar no projecto de escrever a história de Portugal desde as suas origens mais remotas em oito partes com o título génerico de Monarquia Lusitana. Conseguiu redigir duas partes, a primeira publicada em 1597 e a segunda em 1609. Foi acusado por historógrafos e historiadores postoriores de ter falsificado documentos. A sua obra foi continuada, após a sua morte, por Frei António Brandão, que redigiu e publicou a terceira e quarta partes da Monarquia Lusitana. Além da Monarquia Lusitana, Frei Bernardo de Brito escreveu ainda a Primeira Parte da Crónica de Cister (Lisboa, 1602), o Elogio dos Reis de Portugal (Lisboa, 1603) e Sílvia de Lisardo (obra poética publicada em Lisboa em 1597).

António Quadros, em Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista (Lisboa, Guimarães Editores, 1982 vol. 1: O Sebastianismo em Portugal e no Brasil), diz que «o principal discípulo de Paulo Orósio, no âmbito da cultura portuguesa, é sem dúvida Frei Bernardo de Brito, o primeiro que supera o parcelarismo monográfico e apologético da crónica e cuja historiografia singular merece uma atenção que os sarcasmos de Herculano, automaticamente repetidos sem crítica por gerações e gerações de historiadores, tem dificultado. Contestável é evidentemente o terreno lendário e mítico no qual o historiógrafo alcobacense assenta a sua interpretação dos factos nos primeiros livros da Monarquia Lusitana» (p. 35).

Até finais do século XIX, a «Primeiro Parte» da Monarquia Lusitana foi a principal fonte histórica em português a informar com bastantes pormenores sobre o período da pré-fundação de Portugal. Alexandre Herculano fez tábua rasa desse período histórico, considerando os fundamentos do país com a doação do condado Portucalense a D. Henrique. António Quadros refere que «Um Garrett, um Teófilo Braga, um Oliveira Martins reagiram contra a crítica de Herculano a Frei Bernardo de Brito, se bem que não atingindo ainda onde se situava exactamente a injustiça do autor dos Opúsculos. Para o primeiro, a positividade de Herculano aniquilaria a poesia da nossa história; para o segundo, é preciso entender o valor etnológico dos mitos, expressões vivas da personalidade nacional; para o terceiro, não se faz história sem imaginação, faculdade capaz de discernir arcanos mentais e espirituais a que a razão discursiva não acede» (pp. 38-39).

«O que nos embaraça, ao ler a Monarquia Lusitana», diz António Quadros, «não é tanto a constante emergência da lenda e do mito, como a forma rudimentar e "inocente" como trata a teoria das causas, implicitando tranquilamente que tudo se passa providencialmente para o triunfo dos Portugueses e para a vitória escatológica do reino de Deus» (Ibidem: 40). António Quadros contrapõe Fernão Lopes ao historiógrafo de Alcobaça: «o que se evidencia em Fernão Lopes é a apologia do Mestre de Avis e da revolução social e política que este representava, sem fugir ao género de vassalagem de todos os cronistas. Este género de vassalagem só desapareceria com Frei Bernardo de Brito, cronista-mor do Reino em tempo de ocupação castelhana que, ardoroso patriota, se sentia moralmente desvinculado das obrigações para com a dinastia reinante dos Filipes» (pp. 49-50).


MONARQUIA LUSITANA

CAPÍTULO X

E, vendo üa noite a gente do exército quieta e a tenda do Capitão desocupada de soldados, se partiram todos três, como quem ia a consultar algüa cousa com ele, para o que havia franca licença a qualquer hora que fosse; e, achando-o dormindo sobre a terra, armado de todas peças, com a celada junto a si e o escudo por travesseiro, o degolaram dum golpe, deixando-o do próprio modo que o acharam; e, saindo-se da tenda o mais secretamente que puderam, se puseram em fugida para o exército de Cepião, cuidando que recebessem dele, à própria hora, as riquezas e senhorios de terras que lhe prometera. Mas enganou-os a sorte, porque, além de lhe não dar nada e os remeter a Roma quase em som de presos, lá os trataram de trèdores e homicidas de seu Capitão, dizendo que nunca o Senado romano dera galardões de vitórias, adquiridas por tão infames meios.

E, deixando os aleivosos com a pena merecida, tornemos a contar o que os nossos portugueses fizeram, quando ao dia seguinte acharam menos aquela coluna do povo lusitano; porque, vendo como tardava em sua tenda mais do costumado e não ousando de o acordar, tendo para si que dormia, ao fim chegaram alguns capitãis onde ele estava e, achando-o revolto em seu sangue da maneira que os trèdores o deixaram, se levantou no real um pranto comum, doendo-se todos tanto, como era razão se doesse quem perdia um capitão de tanto esforço e tão benévolo para seus soldados, que mais os tratava com amor de pai, que com rigor de capitão. Porém, vendo como as lágrimas e pranto não eram de proveito em tal tempo, mudaram o sentimento em raiva, e a quantos cativos romanos tinham consigo guardaram para oferecer em seu enterramento, que foi um dos mais sumptuosos que se celebraram até aquele tempo em Lusitânia e se fez do modo seguinte.

Levantaram no meio de um campo um grande monte de lenha seca, composta com boa ordem, e no mais alto dela fizeram um assento de madeira em que puseram o corpo de Viriato, armado com todas as armas que trazia nas batalhas, e ao redor dele arvoraram muitas bandeiras e insígnias honrosas, que ganhara ao inimigo, junto com outras suas. Depois se subiu no monte de lenha um agoureiro ou sacerdote dos ídolos; e, chamando a grandes vozes a alma do defunto, degolou alguns cativos romanos diante dele, com o sangue dos quais lhe rociou as armas e insígnias militares; e, acabada esta cerimónia, se deceu abaixo e pôs fogo à lenha, que começou a desfazer aquele corpo invencível, tão amado dos seus e tão temido dos contrários, quanto nunca o foi homem de sua condição. E, no tempo que o fogo ardia, andava a gente de guerra ao redor dele, cantando em som baixo e triste as grandezas que acabara vivendo e os muitos inimigos que matara em defensão de seu povo, com todas as mais circunstâncias pertencentes à sua glória. Nem foi pouco notável o extremo a que chegou sua gente nestas obséquias, pois, como dizem os autores alegados, depois de acabado de consumir o corpo e de apanhar as cinzas dele, houve muitos soldados seus que, para celebrar mais a pompa funeral e engrandecer as obséquias, saíram a pelejar, dous a dous, até se matarem, tendo por cousa mui honrada irem suas almas em companhia de varão tão insigne e destes há um letreiro pouco distante de Monverde, que foi a celebrada Sagunto, em cuja comarca devia ser tudo isto.

pp. 236 vº-237


Voltar à página inicial