Luís Vaz de Camões terá nascido em Lisboa por volta de 1524, de uma família do Norte (Chaves). Viveu algum tempo em Coimbra onde terá frequentado aulas de Humanidades no Mosteiro de Santa Cruz onde tinha um tio padre. Regressou a Lisboa, levando aí uma vida de boémia. Em 1553, depois de ter sido preso devido a uma rixa, parte para a Índia. Fixou-se na cidade de Goa onde terá escrito grande parte da sua obra. Regressa a Portugal em 1569, pobre e doente, conseguindo publicar Os Lusíadas em 1572 graças à influência de alguns amigos junto do rei D. Sebastião. Faleceu em Lisboa no dia 10 de Junho de 1580. É considerado o maior poeta português, situando-se a sua obra entre o Classicismo e o Maneirismo. Obras: Os Lusíadas (1572), Rimas (1595), El-Rei Seleuco (1587), Auto de Filodemo (1587) e Anfitriões (1587).
Está disponível em CD-ROM a Vida e Obra de Luís de Camões publicada pela Porto Editora e que contém, além das obras integrais do poeta, numerosos textos de especialistas camonianos, uma grande quantidade de imagens, música da época e um jogo interactivo. Poderá adquirir o CD em qualquer livraria portuguesa ou então encomendando directamente à Porto Editora.
Outras páginas sobre o autor:
Os Lusíadas de Luís de Camões (programa)
Obras de Camões em CD-ROM
Estudo léxico-informático de 10 canções de Camões
O Itinerário do Sorriso (ensaio sobre Os Lusíadas)
A Casa de Camões
ÉCLOGAS
A üa Dama:
FRONDOSO e DURIANO, pastores
Cantando por um vale docemente,
deciam dous pastores, quando Febo
no reino de Neptuno se escondia.
De idade, cada um era mancebo,
mas velho no cuidado, e descontente
do que lhe ele causava parecia.
O que cada um dizia,
lamentando seu mal, seu duro Fado,
não sou eu tão ousado
que o ouse a cantar sem vossa ajuda;
porque, se a minha ruda
frauta, deste amor vosso for dina,
posse escusar a fonte cabalina.
Em vós tenho Helicon, tenho Pegaso;
em vós tenho Calíope, em vós Talia
e as outras sete irmãs do fero Marte;
em vós perde Minerva sua valia;
em vós estão os sonos de Parnaso;
das Piérides em vós se encerra a arte.
Coa mais pequena parte,
Senhora, que me deis da ajuda vossa,
podeis fazer que eu possa
escrever ao sol resplandecente;
podeis fazer que a gente
em mim do grão poder vosso se espante
e que vossos louvores sempre cante.
Podeis fazer que creça de hora em hora
o nome lusitano, e faça enveja
a Esmirna, que de Homero se engrandece.
Podeis fazer também que o mundo veja
soar na rude frauta o que a sonora
cítara mantuana se merece.
Já agora me parece
que podem começar os meus pastores
tratar de seus amores;
porque, ainda que presentes não estejam
as que eles ver desejam,
mudança do lugar, menos de estado,
não muda um coração de seu cuidado.
Já deixava dos montes a altera
e nas salgadas ondas se escondia
o sol, quando Frondoso e Duriano,
ao longo de um ribeiro que corria
pola mais fresca parte da verdura,
claro, suave e manso, todo o ano,
lamentando seu dano,
vinha já recolhendo o manso gado.
E um estando calado,
enquanto um pouco o outro se queixava,
após ele tornava
a dizer de seu mal o que sentia;
e, enquanto ele falava, o outro ouvia.
Vinham-se assi queixando aos penedos,
aos silvestres montes e aspereza,
que quase de seus males se doíam.
Ali as pedras perdiam sua dureza;
ali os correntes rios estar quedos,
prontos a suas queixas, pareciam;
e se as que podiam
estes males curar, que elas causavam,
o ouvido lhe negavam
por perderem de todo a esperança;
mas eles, que mudança
de amor com tantos males não faziam,
falando inda com elas lhes diziam:
FRONDOSO
Isto é o que aquela verdadeira
fé, com que te amei sempre, merecia,
sem nunca te deixar um só momento?
Como, cruel Belisa, te esquecia
um mal cuja esperança derradeira
em ti se tinha posto seu assento?
Não vias meu tormento?
Não vias tu a fé com que te amava?
Porque não te abrandava
este amor que me tu tão mal pagaste?
Mas, pois já me deixaste
coa esperança de ti toda perdida,
perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Se os males que por ti tenho sofrido
ó Silvana, em meus males tão constante! -
quiseras que algu' hora te dissera,
ainda que de duro diamante
fora tão cruel peito endurecido,
creio que a piadade te movera.
Já agora em branda cera
os montes são tornados e os penedos;
e os rios, que estão quedos,
sentiram meus suspiros, minhas queixas.
Tu só, cruel, me deixas,
que és, mais que montes e penedos, dura,
e fugitiva mais que a água pura.
FRONDOSO
Onde está aquela fala, que soía,
se com seu doce tom que me chegava,
a avivar-me os espíritos cansados?
Onde está o olhar brando, que cegava
o sol resplandecente ao meio-dia?
Onde estão os cabelos delicados
que, ao vento espalhados,
o ouro escureciam, e a mim matavam?
E a quantos os olhavam
causavam também novos acidentes?
Porque, cruel, consentes,
que goze outro a glória a mim devida?
Perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Não vejo bem já que a meu mal espere,
senão se é esperar que morte dura
enfim me venha dar tua saudade.
Vejo faltar-me a tua fermosura;
a vontade me diz que desespere,
contradiz-me a razão esta vontade.
Diz que nüa beldade
em quem mostrou o cabo a natureza,
não há tanta crueza
que um tão firme amor desprezar queira
e üa fé verdadeira;
mas tu, que de razão nunca curaste,
porque era dar-me a vida, ma tiraste.
FRONDOSO
A quem, Belisa ingrata, te entregaste?
A quem deste, cruel, a fermosura,
que só a meu tormento se devia?
Porque üa fé deixaste, firme e pura?
Porque tão sem respeito me trocaste
por quem só nem olhar-te merecia?
E o bem que te queria,
que nunca perderei senão por morte,
não é de maior sorte
que quanto a cega gente estima e preza?
Se a tua crueza
foi nisto contra mim endurecida:
perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Levaste-me meu bem num só momento;
levaste-me com ele, juntamente;
de cobrá-lo jamais a confiança;
deixaste-me, em lugar dele, somente
üa continua dor, e um tormento,
um mal em que não pode haver mudança.
Tu, que eras a esperança
dos males que me tu, cruel, causaste,
de todo te trocaste,
com Amor conjurada em minha morte.
Porém, se minha sorte
consente que por ti seja causada,
morte não foi mais bem-aventurada.
FRONDOSO
Não naceste de algüa pedra dura;
não te gerou algüa tigre hircana;
não foi tua criação entre a rudeza.
A quem, cruel, saíste desumana?
No Céu formada foi tua fermosura,
onde a mesma brandura e natureza;
esta tua dureza
donde teve princípio, ou a tomaste?
Porque, dura, enjeitaste
um verdadeiro amor que tu bem vias,
üa fé, que conhecias,
por outra de ti nunca conhecida?
Perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Vai-se co seu pastor o manso gado,
porque de amor entende aquela parte
que a bruta Natureza lhe ensina.
O rústico leão sen nenhüa arte
do instinto natural só ensinado,
aonde sente amor, ali se inclina.
E tu, que de divina
não tens menos que Vénus e Cupido,
porque sequer co ouvido
um amar verdadeiro não socorres?
Ou porque te não corres
que te vença o leão em piadade,
se Vénus não te vence na beldade?
FRONDOSO
A mim não me faltava o que se preza
entre os celestes deuses, que formaram
a tua mais que humana fermosura;
em mim os voluntários Céus faltaram;
em mim se perverteu a natureza
düa cruel, fermosa criatura.
Mas pois, Belisa dura,
que do mais alto Céu a nós vieste,
e em peito celeste
um tal contrário pôde aposentar-se,
não é contrário achar-se
tamanha fé tão mal agradecida.
Perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Por ti, a noite escura me contenta;
por ti, o claro dia me avorrece;
abrolhos para mi são frescas flores;
a doce filomela me entristece;
todo o contentamento me atormenta
com a contemplação de teus amores;
as festas dos pastores,
que podem alegrar toda a tristeza.
Em mim tua crueza
faz que o mal cada hora vá dobrando.
Ó cruel! Até quando
durará em ti um tal avorrecimento?
E a vida, em mi, que sofre tal tormento?
FRONDOSO
Fugiste de um amor tão conhecido,
fugiste de üa fé tão clara e firme,
e seguiste a quem nunca conheceste,
não por fugir de Amor, mas por fugir-me;
que bem vias que tinha merecido
o amor que tu a outrem concedeste.
A mim não me fizeste
nenhüa sem-razão, que bem conheço
que tanto não mereço;
fizeste-a àquele bem, firme e sincero,
que sabes que te quero,
em lhe tirar a glória merecida.
Perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Crece cada hora em mim mais o cuidado,
e vejo que em ti crece juntamente
cada hora mais de mim o esquecimento.
Ó Silvana cruel, porque consente
o teu feminil peito delicado
esquecer-lhe um tão áspero tormento?
Tal avorrecimento
merece um capital teu inimigo;
não j'eu, que só contigo
estou contente, e nada mais desejo,
se algüa hora te vejo.
Tu és um só bem meu, üa só glória,
que nunca se me aparta da memória.
FRONDOSO
Olhos que viram já tua fermosura;
vida que só de ver-te se sustinha;
vontade, que em ti era transformada;
üa alma que a tua em si só tinha,
tão unida consigo quanto a pura
alma co débil corpo está pegada,
e agora apartada
te vê de si com tal apartamento...
Qual será seu tormento?
Qual será aquele mal que tem presente?
Maior é que o que sente
o triste corpo na última partida.
Perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Regendo noutro tempo o manso gado,
tangendo minha frauta nestes vales,
passava a doce vida alegremente.
Não sentia o tormento destes males;
menos sentia o mal deste cuidado,
que tudo então em mim era contente.
Agora, não somente
desta vida suave me apartaste,
mas outra me deixaste
que, ao duro mal que sinto cá no peito,
me tem já tão afeito
que sinto já por glória minha pena;
por natureza, o mal que me condena:
Juntamente viver compridos anos
os Fadas te concedem, que quiseram
ajuntar-te com tal contentamento.
Pois para ti os bens todos naceram,
tormentos para mim, males e danos,
logra tu só teu bem; eu, meu tormento.
Nenhum apartamento,
Belisa, me fará deixar de amar-te,
porque em nenhüa parte
poderás nunca estar sem mim üa hora.
Consente pois agora
que, em pago desta fé tão conhecida,
perca, quem te perdeu; também a vida.
DURIANO
Veja-te eu, crua, amar quem te desame,
porque saibas que cousa é ser amada
de quem tu avorreces e desprezas.
Veja-te eu ser ainda desprezada
de quem tu mais desejas que te ame,
por que sintas em ti tuas cruezas;
sintas tuas durezas,
e quanto pode o seu cruel efeito
num coração sujeito.
Porque, em sentindo o mal que eu sinto agora,
espero que algu' hora
faça o teu próprio mal de mim lembrar-te,
já que não pôde o meu nunca abrandar-te.
FRONDOSO
Mil anos de tormento me parece
cada hora que sem ti e sem esperança
vivo de poder mais tornar a ver-te.
Sustenta-me esta vida tua lembrança;
a vida sobre tudo me entristece;
a vida antes perdera que perder-te.
Mas eu, se por querer-te,
um bem que em ti só tem seu firme assento
padece tal tormento
que inda espera por ti quem te desame,
ou ao menos te ame
com algum falso amor ou fé fingida,
perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Então, cruel, verás se te merece
com tamanho desprezo ser tratada
üa alma, que de amar-te, só se preza.
Mas como podes tu ser desprezada,
se o menos que em ti fora, se parece,
abrandar pode montes e aspereza?
Porque se a Natureza
em ti o remate pôs da fermosura,
qual será a pedra dura
que a teu valor resista brandamente?
Quanto mais fraca gente,
que ao humano parecer não se defende,
e a mesma Vénus deusa ao teu se rende?
FRONDOSO
E pois fé verdadeira, amor perfeito,
tormento desigual e vida triste,
junta com um contino sofrimento
e em mal, em que todo o mal consiste,
não puderam mover teu duro peito
a amostrares sequer contentamento
de veres meu tormento;
mas antes isto tudo desprezaste,
e a outrem te entregaste,
por não me ficar nada em que esperasse,
senão quando acabasse
a vida, que a meu mal e tão comprida,
perca, quem te perdeu, também a vida.
DURIANO
Longo curso de tempo, e apartado
lugar, a um coração que está entregue
não podem apartar de seu intento.
Porque foges, cruel, a quem te segue?
Não vês que teu fugir é escusado,
que sem mim nunca estás um só momento?
Nenhum apartamento
inda que a alma do corpo se aparte ,
poderá ausentar-te
desta alma triste que, continuamente,
em si te tem presente.
Torna, cruel; não fujas a quem te ama:
vem dar a morte ou vida a quem te chama.
A noite escura, triste e tenebrosa,
que já tinha estendido o negro manto,
de escuridade a terra toda enchendo,
fez pôr a estes pastores fim ao canto,
que ao longo da ribeira deleitosa
vinham seu manso gado recolhendo.
Se aquilo que eu pretendo
deste trabalho haver, que é todo vosso,
Senhora, alcançar posso,
não será muito haver também a glória
e o lauro da vitória,
que Virgílio procura e haver pretende,
pois o mesmo Virgílio a vós se rende.
Prosseguindo a passada, a D. António de Noronha:
A quem darei queixumes namorados
do meu pastor queixoso namorado:
a branda voz, suspiros magoados,
a causa por que na alma é magoado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fará devido gasalhado?
Por partes mil lançando a fantasia,
busquei na terra estrela que guiasse.
Só vós, Senhor, fermoso e excelente,
especial em graças entre a gente
meus rudos versos; em cuja companhia
a santa piadade sempre andasse,
luzente e clara, como a luz do dia,
que o rude engenho meu me alumiasse;
em vossas perfeições, grão Senhor, vejo,
cumprido inda além o meu desejo.
A vós se dêem, a quem junto se há dado
brandura, mansidão, engenho e arte,
dum esprito divino acompanhado,
dos sobre-humanos um em toda a parte.
Em vós as graças todas se hão juntado;
de vós em outras partes se reparte;
sois claro raio, sois ardente chama,
glória e louvor do tempo, asas da fama.
Enquanto aparelho um novo esprito,
e voz de cisne tal que o mundo espante,
com que de vós, senhor, em alto grito
louvores mil em toda a parte cante,
ouvi o canto agreste em tronco escrito,
entre vacas e gado petulante;
que, quando tempo for, em melhor modo
por vós me ouvirá o mundo todo.
As vãs querelas, brandas e amorosas,
sejam de vós tratadas brandamente;
verdades d'alma pouco venturosas,
saídas com suspiro vivo e ardente,
que em vossas mãos se entregam valerosas,
para despois viverem entre a gente,
chorando sempre a antiga crueldade,
e os corações moverem a piadade.
Já declinava o sol contra o Oriente,
e o mais do dia já era passado,
quando o pastor, co grave mal que sente,
por dar alívio em parte a seu cuidado,
se queixa da pastora docemente,
cuidando de ninguém ser escutado.
Eu, que o ouvi düa árvore, escrevia
as mágoas que cantou; e assi dizia:
«Ou tu do monte Píndaso és nascida,
ou mármore te pariu, fermosa e dura:
que não pode ser seja concebida
dureza tal de humana criatura;
ou és quiçais em pedra convertida,
ou tens de natureza tal ventura;
porém não fez em ti boa impressão
tomar-te só de mármore o coração.
Já esta minha voz rouca e chorosa
a gente mais remota moveria,
e se tocasse a veia lacrimosa
os tigres em Hircânia amansaria.
Se não foras cruel, quando fermosa,
meu longo suspirar te abrandaria;
mas suspirar por ti e bem querer-te
que fazem, senão mais endurecer-te?
Se deixaras vencer a crueldade
de tua tão perfeita fermosura,
um pouco viras bem minha vontade,
e viras esta fé tão limpa e pura,
porventura que houveras piadade
e tivera eu quiçais melhor ventura.
Mas nunca achei melhor tua beleza,
senão com ver-se em ti tua dureza.
Já um peito abrandara que não sente
meu duro e grave mal, segundo é forte;
se decera ao inferno fero e ardente
movera a piadade a mesma morte.
Se üa gota de água brandamente
abranda um penedo duro e forte,
como lágrimas tantas não farão
um pequeno sinal num coração?
Na testa tenho üa fonte viva d' água,
que por meus olhos tristes se derrame;
no peito está de fogo na viva frágoa,
que tudo em si converte e tudo inflama;
Amor, ao derredor, por maior mágoa,
voando, mais acende a ardente chama.
E, se qués ver se ardentes são seus tiros,
olha se são ardentes meus suspiros.
Quando rumor algum grande se sente,
que se acende fogo em casa, ou torre,
de pura compaixão vai toda a gente
gritando: «Água ao fogo!» e cada um corre;
assi anda meu peito em chama ardente,
e coa água dos olhos se socorre;
que quem me abrasa outra água me defende,
porque com esta o fogo mais se acende.
Quando o sol sai lá no Oriente
o seu antigo curso começando,
fermoso, intenso, puro e refulgente,
o monte, campo, mar, tudo alegrando;
quando de nós se esconde no ponente,
e noutras terras sai, alumiando;
sempre, enquanto dá ao mundo giro,
por ti meus olhos choram e eu suspiro.
Caminha o dia todo o caminhante,
vem, acabado, a noite em que descansa;
trabalha na tormenta o mareante,
goza o dia sereno e de bonança;
recobra o ano fértil e abundante
na terra o lavrador, se nela cansa:
mas eu, de meu trabalho e mal tão forte,
tormento espero, enfim, e crua morte.
Co ouvir meu mal, as rosas matutinas,
de dó de mim, se cerram e emurchecem;
co meu suspiro ardente, as cores finas
perdem o cravo e lírio, e não florecem.
Coa roxa aurora, as pálidas boninas,
em vez de se alegrarem, se entristecem;
deixa seu canto Progne e Filomena;
que mais lhe dói que a sua a minha pena.
Responde o monte côncavo a meus ais,
e tu, como áspide, cerras-lhe o ouvido;
as árvores do campo, os animais,
mostram sentir meu mal sem ter sentido;
e a ti, as minhas dores desiguais
não movem esse peito endurecido.
Por mais e mais que chamo, não respondes,
e quanto mais te busco, mais te escondes.
Naquela parte adonde costumavas
apacentar teus olhos e teu gado,
ali, onde mil vezes me mostravas
ser eu de ti o pasto desejado,
mil vezes te busquei por ver se davas
ainda algum descanso a meu cuidado.
No campo em vão te busco, e busco o monte,
qual o ferido cervo busca a fonte.
Este lugar de ti desamparado,
com cujas sombras frias já folgaste,
agora triste e escuro e já tornado;
que todo o bem contigo nos levaste.
Tu eras nosso sol mais desejado;
não temos luz despois que nos deixaste.
Toma, meu claro sol! Vem já, meu bem!
Qual é o Josué que te detém?
Despois que deste vale te apartaste,
não pace o branco gado, com secura;
secou-se o campo dês que lhe negaste
des teus fermosos olhos a luz pura;
secou-se a fonte donde já te olhaste,
quando melhor que agora, áspera e dura.
Nega, sem ti, a terra dando gritos,
pasto às cabras e leite aos cabritos.
Sem ti, doce cruel minha inimiga,
a clara luz escura me parece;
este ribeiro, quando Amor me obriga,
com meu chorar por ti contino crece.
Não há fera que a fome não persiga,
nem o campo sem ti já não florece;
cegos estão meus olhos, já não vêem,
pois que não podem ver meu claro bem.
O campo, como de antes, não se esmalta
de bobinas azuis, brancas, vermelhas;
não chove ao pasto já, que há de água
falta;
as mansas e pacíficas ovelhas
sem ti perecem e o Céu também lhes falta;
não acham flor as melífluas abelhas;
com lágrimas que manam dos meus olhos
produze a terra já ásperos abrolhos.
Torna pois já, pastora, a este prado,
e restituirás esta alegria;
alegrarás o monte, o campo, o gado,
alegrarás também a fonte fria.
Torna, vem já, meu sol tão desejado,
faze esta noite escura em claro dia;
e alegra já esta magoada vida,
toda em tua ausência consumida.
Vem, como quando o raio eminente
do nosso horizonte que, escondido,
deixa um certo temor à mortal gente,
que causa ver o orbe escurecido;
e quando torna a vir, claro e luzente,
alegra o mundo todo entristecido.
Assi é para mim tua luz pura
claro sol; e, ausente, noite escura.
Tu, esquecida já do bem passado e
e do primeiro amor que me mostraste,
teu coração de mim tens apartado,
e o lugar também desamparaste.
Não te quero eu a ti mais que a meu gado?
Não sou eu mesmo aquele que tu amaste?
Pois onde mereci tão grão desvio?
Ouve-me, pois me vês já morto e frio.
Bem vês que por Amor se move tudo,
e não há quem de Amor se veja isento:
o animal mais simples, baixo e rudo;
o de mais levantado pensamento;
até debaixo de água o peixe mudo,
lá tem d'Amor também seu movimento;
a ave, que no ar cantando voa
e também por outra ave se efeiçoa.
A música do leve passarinho,
que sem concerto algum solta e derrama,
saltando de raminho em raminho,
cantando com amor suspira e chama,
'té achar no amado e doce ninho
aquele a quem busca e a quem ama,
descansa do trabalho que tomara
tendo se seu descanso em quem achara.
A fera que é mais fera, e o leão
sempre acha outro leão, e outra fera,
em que possa empregar üa afeição
que lhe a conversação no peito gera;
também sabe sentir sua paixão,
também suspira, morre e desespera,
acena, salta, brada, ferve e geme
e, não temendo nada; Amor só teme.
O cervo que, escondido e emboscado,
temendo o cobiçoso caçador,
está na selva, monte, bosque ou prado,
ali onde está e vive, vive amor.
De amor e de temor acompanhado,
com justa causa, amor tem e temor:
temor de quem ali feri-lo vinha;
e amor a quem já ferido o tinha.
Se o animal insensível, que não sente,
também sente de amor a frecha dura,
porque te não abranda o fogo ardente,
que procede de tua fermosura?
Porque escondes a luz do sol a gente,
que nesses olhos trazes, bela e pura,
mais bela, mais suave e mais fermosa
que o lírio, o jasmim, o cravo, a rosa?
Pode ser, se me viras, que sentiras
ver desfazer um peito em triste pranto;
e bem pouco fizeras, se me viras,
já que eu só por te ver, suspiro tanto.
As mágoas e suspiros que me ouviras
te puderam mover a grande espanto,
a dor, a piadade, a sentimento;
e mais, que para mim é meu tormento.
Os pensamentos vãos, que o vento leve;
o suspirar em vão também ao vento;
o esperar a calma, a chuva, a neve,
e não te poder ver em só momento,
tormento é que somente a ti se deve.
E se pode inda haver maior tormento,
quem te viu e se vê de si ausente,
muito mais passará mais levemente.
Faz nossa a pedra dura em sua dureza
coa água que lhe toca brandamente;
abranda o ferro forte a fortaleza,
se lhe toca também o fogo ardente;
só em ti não conheço a natureza,
que a ser de pedra, ferro, ou de serpente,
já teu peito cruel fora desfeito
do fogo e das lágrimas que deito.
Quando a fermosa Aurora mostra a fronte,
alegra toda a terra, vendo o dia;
quando Febo aparece no horizonte,
manifesta também grande alegria;
contente como o gado ao pé do monte,
alegre vai beber a fonte fria.
Tudo contente está, alegre tudo;
eu só, só, pensativo, triste e mudo.
Se da alma e do corpo tens a palma,
e do corpo sem alma não tens dó,
há dó do corpo só, que está sem alma,
pois sem alma não vive o corpo só.
Na chama, no ardor, no fogo e calma,
na afeição, no querer eu sou um só;
não acharás vontade mais cativa;
nem outra como a tua tão esquiva.
Se te apartas por não ouvir meu rogo,
onde estiveres te hei-de importunar;
posto que vá por água, ferro ou fogo,
contigo em toda a parte me hás-de achar;
que a chama que me abrasa é de tal fogo
que, enquanto eu vivo for, há-de durar;
e o nó que me tem preso é de tal sorte
que não se há-de soltar em vida ou morte.
Neste meu coração sempre estarás
enquanto a alma estiver com ele unida;
meu spírito também possuirás,
despois que a alma do corpo for partida;
por mais e mais que faças, não farás
que não te ame nesta e na outra vida.
Impossível será que, eternamente,
estês de mim ausente, estando ausente.
Cá me acompanhará tua memória,
se o rio que se diz do esquecimento
da minha não borrar tão longa história,
tão grave mal, tão duro apartamento.
Até que eu te veja entrar na glória
viverei num contino sentimento;
inda então será se isto ser possa -
servir esta alma minha lá a vossa».
Aqui, com grave dor, com triste acento,
deu o triste pastor fim a seu canto;
co rosto baixo, e alto o pensamento,
seus olhos começaram novo pranto;
mil vezes fez parar no ar o vento
e apiadou no Céu o coro santo;
as circunstantes selvas se abaixaram
de dó das tristes mágoas que escutaram.
Com üa mão na face, e encostado,
em sua dor tão enlevado estava
que, como em grave sono sepultado,
não viu o sol que já no mar entrava.
Berrando anda em roda o manso gado,
que o seguro curral já desejava;
nas covas as raposas, e em seus ninhos
se recolhem os simples passarinhos.
Já sobre um seco ramo estava posto
o mocho co funesto e triste pranto,
a cujo som o pastor ergueu o rosto
e viu a terra envolta em negro manto.
Quebrando então o fio a seu gosto,
mas não quebrando o fio a seu pranto,
para melhor cuidar em seu cuidado,
levou para os currais o manso gado.
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