Cristóvão Falcão

Edição da écloga 'Crisfal', Lisboa, 1619

Cristóvão Falcão de Sousa terá nascido em Portalegre entre 1515 e 1518 de uma família nobre. Seu pai era cavaleiro, tendo servido como capitão na Mina. Foi educado a partir dos nove anos no Paço, onde aprendeu as belas-artes. Por ter casado com uma menor em segredo, foi condenado e preso no castelo de Lisboa. Saído da prisão cinco anos depois, procurou a sua amada em Lorvão, começando entretanto a escrever o poema Crisfal, onde canta a arrebatadora paixão que o tomara. Em 1542, o rei D. João III, para evitar mais escândalos, enviou-o a Roma como seu agente particular. Regressado ao reino, é despachado em 1545 como capitão da fortaleza de Arguim, na África. Regressou a Portugal em 1547, tendo sido novamente preso devido à agressão a um fidalgo. Em 1551 obtém uma carta de perdão. Terá casado em 1553 com Isabel Caldeira, não se conhecendo mais nada sobre o que depois lhe sucedeu.

A écloga Crisfal (criptónimo de Cristóvão Falcão?) foi publicada de 1543 a 1546 numa folha volante. Em 1554, é publicada em volume por Ferrara. Em 1559 teve uma edição em Colónia baseada na de Ferrara. A. Epifânio da Silva Dias organizou a edição de 1893 e o brasileiro Sousa da Silveira a de 1933.

Até 1908 era opinião unânime de que a obra fora escrita por Cristóvão Falcão. Nesse mesmo ano, Delfim Guimarães publicou o livro Bernardim Ribeiro, o Poeta Crisfal e no ano seguinte Teófilo Braga e a Lenda do Crisfal, em que tentou demonstrar que o autor do écloga era Bernardim Ribeiro e não Cristóvão Falcão. No entanto, estudos mais recentes reafirmam a autoria de Cristóvão Falcão.


CRISFAL


1


Antre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n'água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amarom
como males lhe causarom
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidarom.

2

A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tam mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que não se viam,
se via na saudade
o que ambos se queriam.

3

Algüas horas falavam,
andando o gado pascendo;
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
piquena e, tinha cuidado
de guardar milhor o gado
o que lhe Crisfal dezia;
mas, em fim, foi mal guardado;

4

Que, depois de assi viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem pera mor dor,
em fim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem;
(mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém).

5

A qual, logo aquele dia
que soube de seus amores,
aos parentes de Maria
fez certos e sabedores
de tudo quanto sabia.
Crisfal não era então
dos bens do mundo abastado
tanto como do cuidado;
que, por curar da paixão,
não curava do seu gado.

6

E como em a baixeza
do sangue q e pensamento
é certa esta certeza –
cuidar que o mericimento
está só em ter riqueza –
enquerirom que teriam
e do amor não curarom;
em que bem se descontarom
riquezas, se faleciam,
por males que sobejarom.

7

Então, descontentes disto,
levarom-na a longes terras
esconderom-na entre üas serras,
onde o sol não era e visto
e a Crisfal deixarom guerras.
Além da dor principal,
pera mor pena lhe dar,
puserom-na em lugar
mau para dizer seu mal,
mas bom pera o chorar.

8

Ali os dias passava
em mágoas, da alma saídas,
dizer a quem longe estava,
e chorava por perdidas
as horas que não chorava.
Em vale mui solitário e
sombrio e saudoso,
send'o monte temeroso
pera o choro necessário
pera a vida mui danoso,

9

Dizer o que ele sentia,
em que queira, não me atrevo,
nem o chorar que fazia;
mas as palavras que escrevo
são as que ele dezia.
Ali sobre üa ribeira
de mui alta penedia,
donde a água d'alto caía,
dizendo desta maneira
estava a noite e o dia:

10

«Os tempos mudam ventura
bem o sei, pelo passar;
mas, por minha gram tristura,
nenhuns puderam mudar
a minha desaventura.
Não mudam tempos nem anos
ao triste a tristeza;
antes tenho por certeza
que o longo uso dos danos
se converte em natureza.

11

Coitado de mim, cuitado
pois meu mal não se amansa
com choro nem com cuidado!
Quem diz que o chorar descansa
é de ter pouco chorado;
que, quando as lágrimas são
por igual da causa delas,
virá descanso por elas;
mas como descansar hão
pois que são mais as querelas?

12

Com tudo, olhos de quem
não vive fazendo al,
chorai mais que os de ninguém,
que o que é para maior mal
tenho já para maior bem.
Lágrimas, manso e manso,
prossigam em seu ofício;
que não façam beneficio :
não servindo de descanso,
servirão de sacrefício.

13

Minhas lágrimas cansadas,
sem descanso nem folgança,
a minha triste lembrança
vos tem tam aviventadas
como morta a esperança.
Correi de toda vontade,
que esta vos não faltará.
Mas isto como será?
Pedi-la-ei à saudade,
e a saudade ma dará.

14

Todos os contentamentos
da minha vida passarom,
e em fim não me ficarom
senão descontentamentos
que de mim se contentarom.
Destes, polo meu pecado
(inda que nunca pequei
a e quem amo e amarei),
nunca desacompanhado
me vejo nem me verei.

15

Faz-me esta desconfiança
ver meu remédio tardar,
e já agora esperar
não ousa minha esperança,
por me mais não magoar.
Se por isto desmereço,
dê-se-me a culpa assim
e seja só com a fim,
que há muito que me conheço
aborrecido de mim.

16

Meu coração, vós abristes
caminho a meus cuidados,
pera virem a ser banhados
na água de meus olhos tristes,
tristes, mal galardoados.
Necessário é que vamos
algum remédio buscar
para se a vida acabar .
est'é bem que dessejamos,
est'é nosso dessejar.

17

Iremos pela estrada
por onde os tristes vão
porque nela, por rezão
deve ser de nós achada,
achada consolação.
Sobir-me-ei ao pensamento
qu'é alto; de ali verei
verei eu se poderei
ver algum contentamento
de quantos perdidos hei.

18

Mas o que poderá ver
quem já da vista cegou?
Porque quem me a mim levou
meu alongado prazer
nenhum bem ver me deixou.
Deixou-me em escuridade
um mal sobre outro sobejo,
pelo que triste me vejo
tam longe da liberdade
como do bem que dessejo.

19

Verei a vida, que em vida
bem vista tanto aborrece
aborrece a quem padece
tristeza mal merecida,
que minha fé mal merece.
Levarom-me toda a glória,
com quanto bem dessejei,
dessejei e alcancei;
ficou-me só a memória,
por dor, de quanto passei.

20

Lembrança do bem passado,
que não devera passar,
esta me há-de matar;
dá-me tal dor o cuidado,
que se não pode cuidar.
Nada, se não for a morte,
me dará contentamento:
segundo sei do que sento,
não sento prazer tão forte
que conforte meu tormento.

(...)


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