Bernardim Ribeiro

MENINA E MOÇA

1. Monólogo da Menina

Menina e moça me levaram de casa de minha mãi para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda piquena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que despois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, cuitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.

Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e cuidados há i algum) vir-me viver a este monte onde o lugar e a míngoa da conversação da gente fosse como já pera meu cuidado cumpria, porque grande erro fora, depois de tantos nojos quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que ele não deu a ninguém. Estando eu assi só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo, nunca, e do outro ágoas do mar que nunca estão que das, onde cuidava eu já que esquecia à desaventura por que ela e depois eu, a todo poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse achar lugar nova mágoa; antes tudo havia muito tempo, como há, que é povoado de tristezas, e com rezão. Mas parece que das desaventuras há mudança para outras desaventuras, que do bem não a havia para outro bem. E foi assi que, por caso estranho, fui levada em parte onde me foram diante meus olhos apresentadas em coisas alheas todas as minhas angústias, e o meu sentido de ouvir não ficou sem sua parte de dor.

Ali vi então, na piedade que houve de outrem, camanha a devera de ter de mim, se não fora demasiadamente mais amiga de minha dor do que parece que foi de mim quem me é a causa dela. Mas tamanha é a razão por que são triste, que nunca me veo mal nenhum que eu já não andasse em busca dele. Daqui me veo a mim parecer que esta mudança em que me eu agora vejo, já a eu então começava a buscar, quando me esta terra, onde me ela aconteceo. aprouve mais que outra nenhüa para vir nela acabar os poucos dias de vida, que eu cuidei me sobejavam. Mas em isto como em as outras cousas também me enganei, que agora já há dous anos que estou aqui, e não sei ainda tão-somente determinar pera quando me aguarda a derradeira hora. Não pode já vir longe.

Isto me pôs em dúvida de começar a escrever as cousas que vi e ouvi. Mas despois, cuidando comigo, disse eu que arrecear de não acabar de escrever o que vi, não era causa e para o deixar de fazer, pois não havia de escrever pera ninguém senão pera mim só, ante quem cousas não acabadas não havia de ser novo. Que quando vi eu prazer acabado ou mal que tivesse fim? Antes me pareceo que este tempo que hei-de estar assi em este ermo, como ao meu mal aprouve, não o podia empregar em cousa que mais de minha vontade fosse. Pois Deus quis, assi minha vontade seja.

Se em algum tempo se achar este livro de pessoas alegres, não o leam. Que, por aventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudáveis como os aqui contados, o seu prazer lhes será menos prazer. Isto, onde eu estivesse, me doeria, porque assaz abastava nacer eu pera minhas mágoas, senão ainda para as doutrem. Os tristes o poderão ler, mas aí não os houve mais homens, depois que nas mulheres houve piedade. Nas mulheres, sim, por que sempre nos homens houve desamor. Mas para elas não o faço eu, que, pois que o seu mal é tamanho que se não pode confortar com outro nenhum, é para as mais entristecer. Sem-razão seria querer eu que o lessem elas, mas antes lhes peço muito que fujam dele e de todalas cousas de tristeza. Que ainda com isto poucos serão os dias que hão-de poder ser ledas, porque assi está ordenado pela desventura com que elas nascem. Para üa só pessoa podia ele ser, mas desta não soube eu mais parte, depois que suas desditas e minhas o levaram para longes terras e estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum.

Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vós comigo e eu convosco, sós soíamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos para os de despois! A vós contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo se tornou tristeza, nem parece ainda senão que estava espreitando já que vos fôsseis. E porque tudo ainda mais me magoasse tão-somente não me foi deixado em vossa partida o conforto de saber para que parte de terra íeis, que descansaram meus olhos em levarem para lá a vista. Tudo me foi tirado, no meu mal nem remédio nem conforto houve aí. Para morrer asinha, me pudera isto aproveitar, mas para isto não me aproveitou. Inda convosco usou desaventura algum modo de piedade em vos alongar desta terra, pois que pera não sentirdes mágoas não havia remédio, para as não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando e não vejo ora eu que leva o vento as minhas palavras, e 'e que me não pode ouvir a quem falo!

Bem sei que não era eu para isto a que me quero ora pôr, porque escrever algüa cousa pede alto repouso, e a mim as minhas mágoas oras me levam para um cabo, oras para outro, e trazem-me assi, que me é forçado tomar as palavras que me elas dão, porque não são tão constrangida servir ao engenho como à minha dor. Destas culpas me acharão muitas neste livrinho, mas da minha ventura foram elas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpar nem desculpas, que o livro há-de ser do que vai escrito nele! Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem elas, e também por outra parte não me dá nada não o lea ninguém, que eu não o faço senão para um só, ou para nenhum, pois dele, como disse, não sei parte tanto há. Mas se ainda está para me ser em algum tempo outorgado que este pequeno penhor de meus longos sospiros vá ante os seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz.

Neste monte mais alto de todos que eu vim buscar pela soidade deferente dos outros que nele achei, passava eu minha vida como soía, ora em me ir pelos fundos destes vales que o cingem ao derredor, ora em me pôr do mais alto dele a olhar a terra como ia acabar ao mar, e depois o mar como se estendia logo após ela, para se ir acabar onde o ninguém visse. Mas quando vinha a noute, aceita a meus pensamentos, que via as aves buscar os pousos, üas chamarem as outras, parecendo que queria assossegar a terra mesma, então eu triste, com os cuida dos dobrados dos com que amanhecera, me recolhia para minha pobre casa, onde só Deus me é boa testemunha de como as noutes dormia.

Assi passava eu o tempo, quando, üa das passadas, pouco haveria, alevantado-me eu, vi a manhã como se erguia fermosa, estender-se graciosamente por entre os vales e deixar indo os altos. que já o Sol, alevantado até os peitos, vinha tomando posse nos outeiros, como quem se queria senhorear da terra. As doces aves, batendo as asas, andavam buscando üas as outras. Os pastores, tangendo as suas frautas e rodeados dos seus gados, começavam d'assomar já pelas cumiadas. Para todos parecia que vinha aquele dia assi ledo. Os meus cuidados sós, vendo como vinha o seu contrário, ao parecer, poderoso, recolheram-se a mim, pondo-me ante os olhos pera quanto prazer pudera aquele dia vir, se não fora tudo tão mudado, por onde o que fazia alegre todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste. E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura já ordenado, me começassem d'entrar pola lembrança de algum tempo que foi, e que nunca fora, ensenhorearam-se assi de mim, que me não podia já sofrer a par da minha casa, e desejava ir-me por lugares sós onde desabafasse em sospirar. E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que o senti) determinei ir-me pera o pé deste monte que de arvoredos grandes e verdes ervas e deleitosas sombras cheo é, por onde corre um pequeno ribeiro de ágoa de todo ano, que nas noutes caladas o rogido dele faz no mais alto deste monte um saudoso tom que mui tas vezes me tolheo o sono a mim, onde eu vou muitas vezes deixar as minhas lágrimas, onde também muitas infindas as torno a beber.

Começava então de querer cair a calma e no caminho, com a pressa que eu levava por fugir a ela, ou pola desaventura que me levava, três ou quatro vezes caí, mas eu, que depois de triste cuidei que não tinha mais que temer, não olhei nada por aquilo em que parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando à borda, olhei pera onde via maiores sombras e pareceram-me as que estavam além do rio. Disse eu então entre mim que naquilo se enxergava que era mais desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se passar a ágoa que corria ali mais mansa e mais alta que noutra parte. Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano, passei além e fui-me assentar de sob a espessa sombra de um verde freixo que para baixo um pouco estava e alguas das ramas estendia por cima da ágoa que ali fazia tamalavez de corrente e, empedida de um penedo que no meo dela estava, se partia para um e outro cabo, murmurando. Eu que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar como nas cousas que não tinham entendimento havia também fazerem-se üas às outras nojo, e estava ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal, que assi aquele penedo estava ali anojando aquela ágoa que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada. E crecia-me daquilo um pesar, porque a cabo do penedo tomava a ágoa a juntar-se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte, e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural que, como por força, ali estava.

Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da ágoa se estendia se veo apousentar um roussinol, e começou tão doce mente cantar que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crecia mais em seus queixumes, cada hora parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então. A triste da avezinha que, estando-se assi queixando, não sei como, caío morta sobre a ágoa, e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela! E pareceo aquilo sinal de pesar àquele arvoredo seu caso tão desestrado. Levava-a após si a ágoa e as folhas após ela. Quisera-a eu tomar, mas por a corrente que ali fazia grande, e por o mato que dali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se me alongou da vista. Mas o coração me doeu tanto então em ver tão asinha morto quem antes, tão pouco havia, que vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.

Certo que por cousa deste mundo, depois que eu perdi outra cousa, não me pareceo a mim que chorasse assi de vontade. Mas em parte este meu cuidado não foi em vão porque, ainda que por a desaventura daquela avezinha fossem causadas minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras minhas lembranças tristes. Grande pedaço de tempo estive assi, embargados meus olhos antre os cuidados que muito tempo havia que me tinham já então, e inda terão, té quando venha o tempo que algüa pessoa estranha, de dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas. Estando assi olhando para donde corria a ágoa, senti bolir o arvoredo. Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo, mas olhando para lá, vi que vinha üa molher e, pondo nela bem os olhos, vi que era de corpo alto, desposição boa, o rosto de senhora, dona do tempo antigo. Vestida toda de preto, no seu manso andar e seguros meneos do corpo e do rosto e olhar, parecia d'acatamento. Vinha só, na semelhança tão cuidosa, que não apartava os ramos de si, senão quando lhe empediam o caminho ou lhe feriam o rosto. Os seus pés trazia per antre as frescas ervas, e parte do vestido estendido por elas. E antre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma. Sendo junto de mim, que me vio, ajuntando as mãos à maneira de medo de molher, um pouco ficou como que vira cousa desacostumada, e eu que também assi estava, não de medo, que a sua boa sombra logo mo não consentio, mas da novidade daquilo que ainda ali não vira, havendo muito que por meu mal tinha continuado aquele lugar e toda aquela ribeira.


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