Gonçalo Fernandes Trancoso

Gonçalo Fernandes Trancoso nasceu em Trancoso na segunda década do século XVI e faleceu em 1596. Terá sido professor de Humanidades. Vivia em Lisboa quando a cidade foi assolada pela peste em 1569, tendo-lhe morrido nessa altura a mulher, dois filhos e um neto. Escreveu Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575). As suas histórias comungam em certa medida da tradição de Chaucer e Boccaccio. É um dos primeiros contistas portugueses. A sua obra teve grande sucesso, sofrendo múltiplas reimpressões até ao século XVIII.



Contos e Histórias de Proveito e Exemplo

CONTO I

DA PRIMEIRA PARTE

No princípio desta obra, me pareceu bem dizer que, ainda que é muito bom, como o é, rogar aos Santos que roguem por nós e nos sejam advogados diante do Senhor, para nos alcançar o que desejamos, todavia é necessário, nós, de nossa parte, fazer o que podemos para haver o que queremos. Porque, se nós fazemos o contrário do que rogamos, nunca o haveremos. E quadrou-me um exemplo que disse um padre da Companhia, que ensinava no Colégio de Santo Antão, de Lisboa, que é:

Num ermo, morava um virtuoso ermitão ao qual se chegou um salteador de caminhos, dizendo-lhe:

– Vós rogais a Deus por todos. Rogai-lhe que me tire deste ofício que trago, senão hei-de matar-vos.

E, ido dali, tornava a fazer o mesmo que dantes. E outra vez tornava ao padre, dizendo:

– Vós não quereis rogar a Deus por mim. Pois hei-de matar-vos.

Tantas vezes fez isto, que uma veio determinado para matar o padre, o qual lhe pediu e disse:

– Já que me queres matar, tiremos primeiro ambos uma laje que tenho sobre a minha sepultura e, morto, lançar-me-ás dentro sem muito trabalho.

Ele o aceitou e, assim, foram ambos a erguer a laje. Porém, como o salteador trabalhava quanto podia por erguê-la, assim trabalhava o padre ermitão por que não se erguesse e, dessa maneira, ambos não faziam mudança da laje. Atentou o salteador no caso e disse assim:

– E se vós não ajudais, como posso eu erguê-la? Que ainda que eu erga da minha parte, vós fazeis da vossa com que não aproveite o que faço.

Antes que passasse adiante, lhe disse o padre ermitão:

– Vês aí, irmão, o que eu te digo? Que me presta, a mim, rogar a Deus por ti, pedindo-lhe que te tire do pecado e mau ofício que trazes, se tu não te queres tirar e estás muito de propósito perseverando nele?

Quis o sábio mestre com isto dizer a seus discípulos que, além das lições e ensino que ele lhes dava, eles, por sua parte, haviam de trabalhar de estudo, por aprender, para lhe aproveitar o que ele ensinava. E, assim, eu ainda que tenha desejo de escrever, este mês, trinta histórias ou ditos, para desenfadamento dos que gostarem de os ouvir, trabalhando de noite, ou para recreação dos que os contarem, caminhando de dia, não basta desejá-lo eu, nem pedir ao glorioso apóstolo S. Pedro, cujo freguês sou, a quem peço que ele me alcance, do Senhor, graça para que tudo o que fizer seja bom. E que, para seu serviço e louvor, venha esta obra à luz, senão, que com isso que é muito bom. E que, para seu serviço e louvor, venha memória, estude e, tomando a pena na mão, escreva o que aprendi, ouvi ou li. E trabalhando eu por minha pessoa, pondo-me a isto, ajudar-me-ão os rogos do Santo e, por eles, me dá o Senhor graça com que esta obra venha a efeito. E, assim, todos os que quiserem dos Santos que lhes alcancem, de Deus, nosso Senhor, alguma coisa, peçam-lha fazendo da sua parte conforme ao que pedem, que Deus lho concederá, se for seu serviço. E, não lho concedendo, será para seu maior merecimento. Que eu, com esta confiança comecei esta obra, espero em Deus acabá-la em seu louvor e para seu santo serviço.

CONTO II

Uma virtuosa dona de boa vida tinha uma filha de tão má inclinação que não queria tomar os nobres conselhos da mãe, nem a aprender seus louvados costumes; mas em tudo seguia seu próprio parecer, sem obediência de pessoa alguma, nem correição de vizinha, nem parenta, porque era preguiçosa, gulosa, andeja, muito faladeira e de outras feias manhas. A mãe, como mãe desejosa de seu bem, e de lhe dar marido antes que aqueles viços a levassem a torpe pecado, determinou dar a um mancebo tudo o que a pobre velha tinha porque casasse com a filha, tendo para si que o marido lhe faria fazer, com castigo, o que ela não podia com ensino, repreensões e exemplos. E, concertada com ele no dote, quis o mancebo que não dessem conta à moça até que ele a fosse ver, o dia seguinte, seguindo o conselho do rifão que diz: Antes que cases olha o que fazes.

Foi a velha contente e disse que assim faria. Porém, porque a filha estivesse sobreaviso e não caísse em alguma fraqueza a tal tempo, crendo que, para casar, tomaria seu conselho, lhe descobriu aquela noite tudo o que passava, dizendo-lhe:

– Filha, toda tua vida seguiste tua opinião, sem querer entender meus conselhos. Agora te rogo que, este dia, me oiças e aceites o que te disser.

E, com discretas palavras, lhe admoestou que o dia seguinte não se erguesse de um lugar, que sempre estivesse calada, fiando, ou, ao menos, com a toca na cinta, porque, pois o futuro marido a queria ver, a achasse quieta e ocupada em virtuoso exercício, coisa que as moças sempre deviam de fazer, porque a inquietação e a ociosidade nelas, comummente as leva a mui perigosos pensamentos, contrários da virtude, boa fama e honesta vida. E, para mais ajuda, a velha, aquele serão, quase até meia noite e, pela manhã, pôs-lhe à filha uma grande rocada na cinta e deixou-lhe as maçarocas que fiara no regaço. Fê-la assentar, tal que à vista dos olhos a quem a não conhecera, parecia uma diligente fiandeira, quase uma das Parcas que fiam a vida. Porém, como aquele não era seu costume, tanto que a mãe desceu à porta (porque havia de esperar ali o mancebo), a moça deixou a roca e, com diligência, fez lume e nele uma honesta tigela de papas. E porque se esfriassem, prestes as lançou em cinco ou seis escudelas que logo chegou derredor de si e, soprando e fervendo, estava a pobre moça mui apressada por acabar sua obra, antes de ser sentida. A este tempo chegou o mancebo à porta e, ainda que o viu a velha, pelo que tinham concertado, não se falaram, mas ele subiu manso, por ver em que se ocupava a que ele queria receber por mulher. E a velha o deixou ir, tendo para si, acharia a filha, ao menos com a roca na cinta, como a deixara. Mas, ainda que ele subiu dez ou doze degraus da escada, ela, de ocupada, não no sentiu, nem posto que meteu a cabeça em casa o não viu. Mas ela foi dele muito bem vista e, notando o ofício em que estava, disse entre si:

– Nunca nos faremos boa matalutagem porque, quem tanto e com tal pressa madruga a comer, pouco prol pode fazer. Não é esta a que me arma.

E, sem falar, se desceu. E a velha, vendo-o vir tão prestes, lhe perguntou:

– Que vos parece, filho, que cuidado de moça?

E querendo-lha gabar, porque imaginava que estaria fiando e mais, com a roca cheia, lhe disse:

– Viste a pressa que tinha e a habilidade de suas mãos e o que já tinha despachado? Pois eu vos prometo que daquelas enche e vaza sete no dia.

Querendo a velha dizer as rocadas da roca, mas o mancebo, sem descobrir o que lhe vira fazer, respondeu:

– Senhora, não me arma, que, se ela é tal, não na posso sustentar. E assim esteja em vossa casa e, se as vazar e encher tantas vezes, seja embora de vossa farinha e não já da minha.

E foi-se. A mãe, ouvindo isto, foi ver o por que o dissera e achou a filha como contámos e disse-lhe:

– Sem açúcar, filha, espera! Dar-te-ei um pequeno.

E com grande fúria, sem atentar o que fazia, que era grande pecado, tentada do demónio, tirou de uma boceta um pouco de solimão e polvorejou-lho por cima, que a moça comeu, crendo

que era açúcar, tão cega estava. Mas, antes de muito, com o ardor e angústias mortais, deu o espírito antes de dar fim à sua obra.

Este conto se escreveu para exemplo das filhas que sejam obedientes a suas mães e virtuosas.


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