António Cabral

MEMÓRIA DELTA


Ao regressar da capoeira com uma tigela que levara cheia de milho, Olímpia senta-se numa paredita do quintalório e embica os olhos para a via férrea donde vem um silvo engasgado, é o comboio, lá está ele, coberto de fumo, fumo a rodos, a ficar para trás, esfarripado pelas agulhetas dos pinheiros. Cruza a pernaça e deixa cair o que lhe resta da alma aos trambolhões, tlim, tlim, por ali abaixo. A bem dizer, nunca gozara a vida ou não a soubera gozar. Casada aos 17 anos, por força das circunstâncias, aquela noite quente de S. Pedro, ficou sem o marido aos 18, morto numa pedreira, e desde então foi sempre uma trabalheira de torcer o pescoço aos apetites, que os tinha sempre bem relas e pimpões, à espreita duma escorregadela. Mas ela, mau, mau, vamos a recolher à toca, meus safados, e deixai-vos de guinchos. Dum lado, o padre, altar abaixo e no confesso. Doutro lado, as vizinhas a bombearem-lhe as mamas, com olhos putos, como sovelas, e a esguardarem os maridos e os filhos. E ainda a mãe, um sacatrapo empastelado de rezas e bruxarias: alembra-te da Conceição, o mundo lo deu, o mundo lo comeu. E virava-se para o trabalho, rapariga de boa têmpera, sublimando-se em habilidades e cantoria. Arrumava a casa e sachava a horta, com o rigor e a perfeição com que fazia casaquinhos de malha para o filho de 5 anos ou ensaiava o coro do rancho folclórico. Bem sabia que as mulheres não gostavam dela e defendia-se, pensando gostosamente que ninguém vai gabar aquilo que se deseja, que não se consegue e alguém conseguiu. A sua pele circundava tudo aquilo que lhe pertencia, a casa ou os leiros, e todos os lugares por onde andava: os homens aspiravam-na e as mulheres tapavam-lhe os poros. E como ela tinha necessidade de se libertar, sacudir os atafais, nanja em Carrazedo, mas numa saída para os lados da Régua ou de Vila Real! Deixava-se comprimir pelos dois lados, o de dentro e o de fora, mas era ainda muito nova para não saber que algumas coisas quanto mais comprimidas mais valentes se tornam. Claro, claro, não queria ser como a pólvora que, de tão apertada, basta um fogachozito para a fazer explodir. E daí... se explodisse? Seja o que Deus Nosso Senhor quiser, pensa Olímpia, o sentimento a oscilar-lhe entre duas vertigens, o tempo basto semeado de receios, aperreando-a, derrubando-a a seguir dum ramo de laranjeira, projectando-a contra o comboio que era aquilo que ela todos os dias via passar, arrascanhar-lhe a beleza, arrancá-la como um malmequer e levá-la para longe, muito longe, aonde ela, Olímpia, nunca poderia ir.

Um dia, dera-lhe para espantar os guardiões do templo, embora nem todos como vamos ver. Fazia uma caloreira que enchia o vale de transparências pardas, os olhos mal podiam olhar, os zilros tinham fugido para qualquer lado, com medo de que o raspar no sol lhes incendiasse o carvão, os homens acoitavam-se sob os ramos de loureiro, à entrada das tascas, e bebiam copos, uns atrás dos outros. Olímpia, logo de manhã e antes de ir dessedentar a horta, mirradinha de todo, estufara um coelho, apurando-o com uma malagueta já vermelhinha como a piroca dum cão, achara piada àquilo. Ao almoço, naturalmente, foi duas vezes ao pipo. Quando a mãe a viu regressar da loja com a segunda pichorrra, ofegante, a blusa molhada nas axilas, disse-lhe quase à puridade, para o neto, que era reguila, não topar: olha que essa coisa põe cócegas nos chumaços, vê lá, filha. Punha mesmo cócegas, ainda as sentia depois da sesta que fizera, a bem dizer ao léu e a sonhar com o impossível.

Depois de atravessar a linha férrea, aí lembrou-se de Jorge, não era a primeira vez, meteu pela rua principal abaixo, em direcção à horta. A mãe perguntara-lhe o que ia fazer àquela hora, com tal vernoeira, e ela explicou que ia tomar banho no tanque, era aconchegado e ninguém lhe ia roubar a prenda. Não gostou a mãe que ela arrepanhasse os cabelos sobre um ombro, à espanhola, e fosse, a bem dizer, toda aos relâmpagos, aparada como um lápis. Camisoleca cingida, aquilo badalava como as palmeiras da Casa Grande, e, apesar dos machos bem abertos a um e outro lado da saia, as pernas afiguravam-se, fumegantes, em V maiúsculo, ateando foguinhos nos ramos de loureiro e nos olhapins, eram mil, um milhão, que encostados às ombreiras sentiam inevitáveis cresceduras e perguntavam uns aos outros de que lado vinha o sol. Ela sentia as olhadelas, sentia-as estalar como castanhas, gozava, vingava-se das mulheres que fechavam as janelas, o desaforo, que desaforo, e, rodeada só de si, nem reparava que o João Nocas tinha saltado a uma cortinha, como um raio, e acompanhava-a de longe, cosendo-se com arbustos e paredes.

Nocas era um galfarro, um entre os muitos que há por todo o lado, pouco dado à lavoura, comedor de iscas por um serviçozito qualquer, limpar uma coelheira, tocar os arcos a uma pipa. Nem para emigrar servia. Um sarrafaçal. Olímpia chamara-o já para endireitar uma ramada: devolvia-lhe os focinhos pinguepongueados com raquetadas de má catadura, pagava-lhe e pronto. Um dia toscou-o em cima de uma oliveira, a olhar-lhe lá para o quarto, estava ela na toilette: aproximou-se da janela, chamou-o com os olhos revirados, desceu, ele a aproximar-se, foi uma tapona monumental que o fez ir aos trambolhões pela caleja abaixo. Desde então, comia-a de longe, insofrido, atormentado.

Ao chegar à horta, Olímpia tirou a rolha do tanque, cirandou por ali como náiade opulenta, enquanto a água saía, voltou a pôr a rolha, a água caía límpida dum tufozinho de mentrastos e urtigões e, quando o tanque estava já cheio, atirou-se para dentro, vestida. O Nocas espiolhava detrás dum carrasco, muito perto, mas logo que ela entrou na água perdeu-lhe a vista: o tanque ficava num chãozinho acima daquele em que se encontrava. Pensou em deslocar-se para o calço onde estava a nascente, mas ali não havia vegetação que o acobertasse, para além do ervaçal. Era uma chatice e teria de esperar que a deusa saísse do banho, com a roupa colada ao corpo a destacar-lhe as exuberâncias. Já era bom, óptimo, óptimo, pensou. Quando nisto, viu-a a atirar, peça por peça, primeiro a camisola, depois a saia e a roupa mais delgadinha, a caírem de manso sobre um estendalzinho de relva onde a luz rebrilhava. Tremeu todo e as ideias acudiram-lhe aos tropeções à boca do pensamento. Ir lá, vê-la nem que fosse de relance e fugir, depois, fugir pelos montes? E se ela o soubesse ali e aqueles modos fossem um desafio, oportunidade única, oh!, única? Impossível, não, não podia ser. Esperaria, nem que fosse até à hora da Lua, e ela havia de emergir, radiante, de pé sobre o bordo do tanque, a escorrer água, mãos no cabelo, estátua de muitas laranjas. Até que começou a rastejar por um carreirito entre dois bardos de videiras. O desejo e o medo sufocavam-no, mas teve tino para, sem o mais leve rumor, sacar a rolha ao tanque, juntar com uma só mão as peças de roupa e regressar ao carrasco. Um prazer de vingança, diabólico, dava-lhe picadinhas por todo o corpo, excitava-o mais e começou a masturbar-se.

Como se nada se tivesse passado, Olímpia ergueu-se, subiu para uma das guardas da piscina, levou uma das mãos ao cabelo e espreguiçou-se toda, seios impantes, soberbos, apontados e musicais como búzios, o púbis incandescente, nas coxas ardiam moitas de alecrim. João de boca aberta a engolir ventos. Afrodite saltou para a relva e deitou-se ao sol, depois de arrolhar o tanque novamente. O ruído da água a gorgolejar percorria o silêncio, enchendo-lhe o cabelo de pratas. Tanque já a transbordar, Olímpia levanta-se, ata uma vide farta de folhas à cinta, outra ao peito e chama:

– João Nocas, faz o favor de me trazer a roupa, depressinha.

Surpreendido pelo anzol diamantino daquela voz, o lorpa nem pestanejou e abeirou-se da sacerdotiza, como um sacristão, rafeiro:

– Aqui tens. Desculpa.

Com a mão esquerda, ela filou-lhe um braço, com a outra rasgou-lhe a camisa, as calças, as cuecas e pregou com ele dentro do tanque, estava murchinho de todo, tiritava, agarrou-lhe o cabelo e manteve-lhe a cabeça debaixo de água, até ficar cheio como um odre. Isto feito:

– Suba aqui para cima – disse.

E ele, cambaleante, a zichar água pela boca, pelo cu, pelo nariz, pelos olhos, pela gaita, lá subiu para cima da pedra, curvado como os velhos que tinham espreitado a casta Susana. Olímpia foi-se então a uma abóbora, rachou-a e pespegou com ela no baixo ventre do Nocas que caiu de costas, desamparado, a gemer como um carro de bois.

– A ver se tomas juízo, galipante de merda – disse ela, com a sua roupa na mão e a deitar a do outro, mais adiante, num poço fundo. Foi-se vestir por debaixo duma cerejeira onde um melro, ao vê-la, começou a assobiar a Maria da Fonte. O João Nocas lá se homiziou como pôde, entre umas giestas, e só altas horas da noite é que regressou a casa.

Olímpia era doce como um bombom, mas, uma vez por outra, o bombom explodia, como se tivesse dentro dinamite – sonhava Jorge ao embalo do comboio que já tinha chegado ao Entroncamento. Tenho de a levar para a Delegação, tenho de a levar para a Delegação, tenho de a levar para a Delegação, para Vila Real, para o meio da gente fina, a D. Otília vai ficar cheia de inveja, se vai, quando me vir de braço dado com ela, e, em casa do engenheiro Melo, no jardim, ao vê-la sair da piscina, perguntará:

– Quem é aquela deusa disfarçada de tigre, ó gorducho?

Tenho de a levar para a Delegação, tenho de a levar, hei-de amansá-la, na Pousada do Marão, nas Fisgas de Ermelo, és um favo, um favo de urtigas, urze brava, licor de medronho, coitanaxa, coitanaxa, Cassandra, os teus olhos são como tigres, coitanaxa, ó lince vigia o meu fogo, coitanaxa, hei-de fazer de ti uma dona, dar-te-ei um casaco de vison, melhor do que o da Conceição, mas tu não hás-de ter o fim da Conceição, o vison sou eu, a pele é a minha pele, eu a cobrir-te, a contornar-te, lince, Cassandra, olhos de tigre, tigre, coitanaxa.

O monograma da maleta, sempre tão atento, cuidadoso, avisou Jorge de que estava ali um cobrador e ele acordou assarapantado, tão assarapantado que, em vez do bilhete do comboio lhe passou para a mão o escrito de Olímpia, desculpe, senhor Pound, ou antes, senhor Malhadinhas, Jorge esfregou os olhos e, então sim, acordou de vez. O cobrador saiu, a pensar que o homem devia estar drogado. Quase.

Jorge abriu a maleta e tirou algumas cartas. Depois de as ter na mão, durante algum tempo, depois de ter lavado a cara com um punhado de freixos que pingavam dum morro, começou a ler, finalmente, a fazer o que devia ter feito umas horas antes, isso evitar-lhe-ia alguns devaneios, erros de cálculo, dissabores. A algarvia, com toda a sobranceria de uma tenista que atira com a bola à rede e a recupera, disposta a dar o golpe de misericórdia, entra e senta-se, perna cruzada, sem dizer água vai. Jorge olha-a de soslaio, impreparado para o jogo, Olímpia tinha-lhe destruído a raqueta, e prossegue na leitura da correspondência.

– É assim tão importante?

– O quê?

– Isso, a leitura disso.

– São cartas.

– E isso é importante?

– Claro.

– Não acha que para um homem como você, tão solitário, eu sou mais importante?

– Talvez – disse Jorge.

E continuou a ler, abrindo umas cartas, fechando outras, com um semblante respeitável, como no gabinete, às vezes levava o lábio inferior à base do nariz, fazia uma carantonhazita, voltava ao ar sério, ia fumando, estava calmo. A algarvia sentou-se-lhe ao lado.

– Chamo-me Ana Lúcia.

– Ah.

Rais pelira o gaijo que é como o era e não era. Jorge tinha a correspondência em cima da maleta e esta entre si e a algarvia. Lida uma carta, mudava-a para o lado da janela e foi numa dessas ocasiões que ela botou a unha a um envelope, sem ele topar nada, meteu-o atrás das costas, trauteou uma canção de Suzanne Vega e saiu para o corredor, desaparecendo no sentido do bar.

Esgotada a leitura, o ainda delegado emaçou as cartas com jeitinho, alinhou-as num dos lados, bateu com elas, pancadinhas doces, em cima da maleta, o monograma ria-se, riso a ficar embaciado, Jorge percebeu, levantou-se, correu o vidro da janela, respirou ar puro, ar, o ar, foi com os olhos de barco, foi indo sobre a planura até uma serra distante, a serra, parecia uma vaga, azul defumado, e ao regressar empunhou bem o maço das cartas, hasteou-o como bandeirola, panículo de gorduras moles, fofas, inúteis, e atirou-o para fora, as cartas debatiam-se como borboletas desajeitadas contra um canavial, só uma se elevou ligeiramente e de asa meio caída voou contra a serra, adeus, Zildinha. É pena, padre Lourenço, que me tenham indeferido o pedido de subsídio para o teu maravilhoso Auto da Paixão, qualquer dia converto-me; é pena, senhores professores do Ensino Primário, que eu não tenha compreendido o vosso sofrimento, caminhos enlameados, caminhos pedregosos, escolas do outro lado do mundo; é pena que uns ganhem muito e outros ganhem pouco – trabalho igual, salário igual, diziam-me e eu ripostava hipocritamente, relógio de repetição, relógio; é pena que eu tenha caído ingenuamente na teia de aranha, apontam-me agora a dedo com toda a certeza, nenhum argumento me salvará; é pena, ó Teixa, que o Centro fique na corda bamba, como eu. Como eu?! – gritou Jorge. Se a algarvia entrasse, ficaria decerto escandalizada, preparando logo as almofadinhas do seu triunfo. Fechou a janela e sentou-se, mandando à tabua fantasmas e chatices, sentindo-se conduzido gradualmente a um estado de insensibilidade total, deve ser assim a beatitude, ser oco por dentro, não ter lá nada, além da glória de ser dentro, e mostrar no exterior o reflexo dos outros, espelho do que os outros idealizam para si.

Adormeceu.

Mas quem te disse, Jorginho, que mesmo a dormir tu deixas de ser quem és, o que foste e o que estás para ser?

O monograma entrou no gabinete, de mansinho, e perguntou:

– Dá-me licença, senhor delegado?

– Claro, claro, entre.

É pena, menina Julinha, que eu a tenha perdido para sempre. Como eu me lembro da manhã em que a senhora me entrou no gabinete com uma caixinha branca, enlaçada de azul como a sua vénia em que sempre havia um laço de ternura, de verdade, enfeite que não era propriamente um enfeite, pois ocupava o lugar certo. Disse-me, como se eu fosse um menino, que era um presentinho de cristas de galo, doce regional, bom, oh, muito bom, recheado de doce de ovos e amêndoa. Eu olhava para si com uma piedade estúpida, a piedade de quem vai dizer que sim para não ferir, sem pensar que os pastelinhos, se os comprasse, lhe custariam quase um dia de trabalho no serviço e, se os fizesse de propósito para mim, isso significaria mais, muito mais. E tinha-os feito de propósito, como vim a saber no dia seguinte, ainda a caixinha estava no gabinete, em cima de uma estante, ao lado dum bibelot. Não lhe atribuíra a mínima importância e, se quer que lhe diga, tinha um certo escrúpulo, vou dizer a palavra exacta, nojo, em comer o que lhe viesse das mãos – devido aos seus achaques, à sua miséria. Cruel, além de estúpido, eis o que eu era e nessa manhã, quando a senhora, ó menina Julinha, reparou que o presentinho ainda ali estava não teve sequer uma palavra de reprovação. E desculpou-me com os meus cuidados e afazeres, com tanta responsabilidade que nem sequer me dava tempo para me deliciar com um petisco dos anjos. Levei então o caso para a galhofa, depois de lhe mentir: se levasse os docinhos para o hotel, havia lá um malandrão que mos devorava enquanto o diabo esfrega um olho. E, a propósito do petisco dos anjos, perguntei-lhe se os querubins e os serafins precisavam de manjar tão especial, cristas de galo, para quê, os anjos são todos do sexo masculino, se houvesse anjas... Aí a menina Julinha riu-se da minha lembradura: o senhor doutor tem cada uma!, olhe que essa dos anjos e das anjas tem piada. O que eu quis dizer... olhe, já agora vou dizer tudo: lá em casa do senhor engenheiro às vezes põem na mesa cristas de galo, muito bem, sabe quem as faz?, eu – dizendo, batia com a mão no peito –, eu que tenho de aproveitar as horitas da noite para ganhar umas lecas para os livros da Mafaldinha, mas canté estas, canté estas cristas, senhor doutor, aí lhe garanto que têm ovos caseiros e amêndoa da melhor, que ma traz a minha cunhada Micas, que la dá um primo do Castedo, uma terra do Douro, coisa fina, ora aí tem, senhor doutor, coma à vontade, farte-se, que disto não há melhor. Ouvi, ouvi, com tanta devoção como ela devia ouvir a missa e fiquei quebrado. Durante dois dias comi cristas de galo ao pequeno almoço, almoço e jantar, comi-as como se comungasse, a terra a entrar-me nos remoinhos da cabeça, a verdejar, varria-me de brisas.

António Cabral, Memória Delta, Lisboa, Editorial Notícias, 1990, pp. 151-159.


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