Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) nasceu em Lisboa e estudou em Paris, abandonando os estudos e dedicando-se inteiramente à literatura. Com Fernando Pessoa, Luís de Montalvor, Armando Côrtes-Rodrigues, Alfredo Guisado e outros, fundou a revista Orpheu, vindo esta a ter um papel fundamental na renovação da literatura portuguesa do século XX. Sofrendo uma crise existencial grave, suicidou-se num quarto de hotel em Paris. Obras poéticas: Dispersão (1914), Indícios de Oiro (1937). Obras de ficção: A Confissão de Lúcio (1914) e Céu em Fogo (1915).

Outras páginas sobre o autor:

  • Notas ao poema «Como eu não possuo» de Mário de Sá-Carneiro
  • Versão integral da obra Poesias Completas
  • Versão integral da obra A Confissão de Lúcio


    POESIAS (extracto)


    ESTÁTUA FALSA

    Só de ouro falso os meus olhos se douram;
    Sou esfinge sem mistério no poente.
    A tristeza das coisas que não foram
    Na minha'alma desceu veladamente.

    Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
    Gomos de luz em treva se misturam.
    As sombras que eu dimano não perduram,
    Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

    Já não estremeço em face do segredo;
    Nada me aloira já, nada me aterra:
    A vida corre sobre mim em guerra,
    E nem sequer um arrepio de medo!

    Sou estrela ébria que perdeu os céus,
    Sereia louca que deixou o mar;
    Sou templo prestes a ruir sem deus,
    Estátua falsa ainda erguida ao ar...

    Dispersão, Paris, 5 de Maio de 1913



    CARANGUEJOLA

    Ah, que me metam entre cobertores,
    E não me façam mais nada!...
    Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
    Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

    Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
    Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
    Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
    Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

    Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
    Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
    Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
    Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

    Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
    E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
    Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
    Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

    Se me doem os pés e não sei andar direito,
    Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
    Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
    Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

    De que me vale sair, se me constipo logo?
    E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
    Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
    E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

    Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
    Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
    Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
    Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..

    Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
    Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
    De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
    E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

    Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
    Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
    Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
    Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.


    Últimos Poemas, Paris, Novembro 1915



    MANUCURE

    Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
    Súbita sensação inexplicável de ternura,
    Tudo me incluo em Mim – piedosamente.
    Entanto eis-me sozinho no Café:
    De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
    De volta, as mesas apenas – ingratas
    E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
    Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
    Fora: dia de Maio em luz
    E sol – dia brutal, provinciano e democrático
    Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
    Nem podem tolerar – e apenas forcados
    Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
    Se ofende com este dia que há-de ter cantores
    Entre os amigos com quem ando às vezes –
    Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
    Que escrevem, mas têm partido político
    E assistem a congressos republicanos,
    Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
    De peros ou de sardinhas fritas...
    E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
    E de as pintar com um verniz parisiense,
    Vou-me mais e mais enternecendo
    Até chorar por Mim...
    Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
    Brumosos planos desviados
    Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
    Chegam tenuamente a perfilar-me
    Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
    Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
    Todos os cenários que entretanto Fui...
    Eis como, pouco a pouco, se me foca
    A obsessão débil dum sorriso
    Que espelhos vagos reflectiram...
    Leve inflexão a sinusar...
    Fino arrepio cristalizado...
    Inatingível deslocamento...
    Veloz faúlha atmosférica...

    E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
    Por inúmeras intersecções de planos
    Múltiplos, livres, resvalantes.

    É lá, no grande Espelho de fantasmas
    Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
    Se desmorona o meu presente,
    E o meu futuro é já poeira...

    Deponho então as minhas limas,
    As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
    Os polidores da minha sensação –
    E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
    Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
    Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –
    Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
    Alastra e expande em vibrações:
    Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito!...

    Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
    Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
    Que hélices atrás dum voo vertical!
    Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
    Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
    Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
    Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
    Num grande palco a Oiro!
    – Que rendas outros bailados!
    Mário de Sá-Carneiro - Desenho de Almada Negreiros


    Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
    Que vértices brutais a divergir, a ranger,
    Se facas de apache se entrecruzam
    Altas madrugadas frias...
    E pelas estações e cais de embarque,
    Os grandes caixotes acumulados,
    As malas, os fardos – pêle-mêle...
    Tudo inserto em Ar,
    Afeiçoado por ele, separado por ele
    Em múltiplos interstícios
    Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...

    – Ó beleza futurista das mercadorias!

    – Sarapilheira dos fardos,
    Como eu quisera togar-me de Ti!
    – Madeira dos caixotes,
    Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
    E os pregos, as cordas, os aros... –
    Mas, acima de tudo,
    Como bailam faiscantes,
    A meus olhos audazes de beleza,
    As inscrições de todos esses fardos –
    Negras, vermelhas, azuis ou verdes –
    Gritos de actual e Comércio & Indústria
    Em trânsito cosmopolita:

    FRÁGIL! FRÁGIL!

    843 – AG LISBON

    492 – WR MADRID

    Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
    O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
    À minha volta. E a que mágicas, e m verdade, tudo baldeado
    Pelo grande fluido insidioso,
    Se volve, de grotesco – célere,
    Imponderável, esbelto, leviano...
    – Olha as mesas... Eia! Eia!
    Lá vão todas no Ar às cabriolas,

    Em séries instantâneas de quadrados
    Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...
    E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
    E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
    Das bancadas de veludo vermelho
    Que, ladeando-o, correm todo o Café...
    E, mais alto, em planos oblíquos,
    Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
    Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
    Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
    Vá lá, se erguem também na sarabanda...

    Meus olhos ungidos de Novo,
    Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
    Não param de fremir, de sorver e faiscar
    Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
    Toda essa Beleza-sem-Suporte,
    Desconjuntada, emersa, variável sempre
    E livre – em mutações contínuas,
    Em insondáveis divergências...
    – Quanto à minha chávena banal de porcelana?

    Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
    Ascende num vértice de espiras
    Que o seu rebordo frisado a oiro emite...

    É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...

    ...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
    Agora, chegam teorias de vértices hialinos
    A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
    Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
    Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
    Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.


    Poemas Dispersos, Lisboa – Maio de 1915





    CRISE LAMENTÁVEL

    Gostava tanto de mexer na vida,
    De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe...
    E não há forma: cada vez perdida
    Mais a destreza de saber pegar-lhe.

    Viver em casa como toda a gente
    Não ter juízo nos meus livros – mas
    Chegar ao fim do mês sempre com as
    Despesas pagas religiosamente.

    Não Ter receio de seguir pequenas
    E convidá-las para me pôr nelas –
    À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
    Numa palavra, e não fazer mais cenas.

    Ter força um dia pra quebrar as roscas
    Desta engrenagem que empenando vai.
    – Não mandar telegramas ao meu Pai,
    – Não andar por Paris, como ando, às moscas.

    Levantar-me e sair – não precisar
    De hora e meia antes de vir prà rua.
    – Pôr termo a isto de viver na lua,
    – Perder a frousse das correntes de ar.

    Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
    Por casa dos amigos que frequento –
    Não me embrenhar por histórias melindrosas
    Que em fantasia apenas argumento

    Que tudo em é fantasia alada,
    Um crime ou bem que nunca se comete
    Por meu Azar ou minha Zoina suada...


    Poemas Dispersos, Paris – Janeiro




    O FANTASMA

    O que farei na vida – o Emigrado
    Astral após que fantasiada guerra,
    Quando este Oiro por fim cair por terra,
    Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?

    (De que Revolta ou que país fadado?)
    – Pobre lisonja, a gaze que me encerra...
    Imaginária e pertinaz, desferra
    Que força mágica o meu pasmo aguado?

    A escada é suspeita e é perigosa:
    Alastra-se uma nódoa duvidosa
    Pela alcatifa – os corrimões partidos...

    – Tapam com rodilhas o meu norte,
    – As formigas cobriram minha Sorte,
    – Morreram-me meninos nos sentidos...


    Paris – 21 Janeiro 1916.




    EL-REI

    Quando chego o piano estala agoiro
    E medem-se os convivas logo, inquietos –
    Alargam-se as paredes, sobem tectos:
    Paira um Luxo de Adaga em mão de moiro.

    Meu intento porém é todo loiro
    E a cor-de-rosa, insinuando afectos.
    Mas ninguém se me expande... Os meus dilectos
    Frenesis ninguém brilha! Excesso de Oiro...

    Meu Dislate a conventos longos orça:
    Pra medir minha Zoina, aquém e além,
    Só mística, de alada, esguia corça.

    Quem me convida mesmo não fez bem:
    Intruso ainda – quando, à viva força,
    A sua casa me levasse alguém.


    Paris – 30 Janeiro 1916.




    AQUELOUTRO

    O dúbio mascarado o mentiroso
    Afinal, que passou na vida incógnito
    O Rei-lua postiço, o falso atónito;
    Bem no fundo o covarde rigoroso.

    Em vez de Pajem bobo presunçoso.
    Sua Ama de neve asco de um vómito.
    Seu ânimo cantado como indómito
    Um lacaio invertido e pressuroso.

    O sem nervos nem ânsia – o papa– açorda,
    (Seu coração talvez movido a corda...)
    Apesar de seus berros ao Ideal

    O corrido, o raimoso, o desleal
    O balofo arrotando Império astral
    O mago sem condão, o Esfinge Gorda.


    Paris – Fevereiro 1916.




    ÚLTIMO SONETO

    Que rosas fugitivas foste ali:
    Requeriam-te os tapetes – e vieste...
    – Se me dói hoje o bem que me fizeste,
    É justo, porque muito te devi.

    Em que seda de afagos me envolvi
    Quando entraste, nas tardes que apareceste –
    Como fui de percal quando me deste
    Tua boca a beijar, que remordi...

    Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
    Que seria entre nós um longo abraço
    O tédio que, tão esbelta, te curvava...

    E fugiste... Que importa ? Se deixaste
    A lembrança violeta que animaste
    Onde a minha saudade a Cor se trava?...


    Indícios de Oiro, Paris – Dezembro 1915



    DISTANTE MELODIA

    Num sonho de Íris morto a oiro e brasa,
    Vem-me lembranças doutro Tempo azul
    Que me oscilava entre véus de tule -
    Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

    Então os meus sentidos eram cores,
    Nasciam num jardim as minhas ânsias,
    Havia na minha alma Outras distâncias -
    Distâncias que o segui-las era flores...

    Caía Oiro se pensava Estrelas,
    O luar batia sobre o meu alhear-me...
    – Noites-lagoas, como éreis belas
    Sob terraços-lis de recordar-me!...

    Idade acorde de Inter-sonho e Lua,
    Onde as horas corriam sempre jade,
    Onde a neblina era uma saudade,
    E a luz – anseios de Princesa nua...

    Balaústres de som, arcos de Amar,
    Pontes de brilho, ogivas de perfume...
    Domínio inexprimível de Ópio e lume
    Que nunca mais, em cor, hei-de habitar...

    Tapetes de outras Pérsias mais Oriente...
    Cortinados de Chinas mais marfim...
    Áureos Templos de ritos de cetim...
    Fontes correndo sombra, mansamente...

    Zimbórios-panteões de nostalgias,
    Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
    Escadas de honra, escadas só, ao ar...
    Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias...

    Lembranças fluidas... Cinza de brocado...
    Irrealidade anil que em mim ondeia...
    – Ao meu redor eu sou Rei exilado,
    Vagabundo dum sonho de sereia...


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